Capítulo Seis: Espelhos Da Alma

49 8 53
                                    

Certa vez eu tive um sonho. Particularmente estranho, se assim posso dizer. Eu estava encostado no parapeito da janela observando a cidade como de costume, e meu olhar repousou sobre uma pequena movimentação na esquina onde ficava uma igreja que abriu recentemente. Tive a sensação de que mesmo que todos pareçam tão distantes de seus próprios sentimentos, era notável o desespero por encontrar a si mesmos. Então todos vivem assim? Cheios de amargor? Um desejo de viver uma vida longe de si por não suportarem a complexidade do ato de existir? Eles ao menos questionavam a si mesmos as razões pelas quais eles fazem o que fazem, dizem o que dizem e pensam o que pensam?

Talvez não estejam todos preparados para encarar uma existência tão complexa a ponto de termos tantas perguntas e tão poucas respostas, e então, encarar o abismo e vê-lo encarar de volta poderia levá-los para um local sombrio, isolado e sem cor. Talvez fosse imprescindível ao ser humano ver a si mesmo isolado em alguma parte escura de sua própria mente após explorar suas próprias questões, mas... e se não for apenas isso? E se o isolamento e a escuridão for parte de um processo para uma visão mais ampla das coisas ao nosso redor? Uma liberdade ao qual nos veremos presos, mas após entendermos nossa condição, então saberíamos lidar melhor do que se nos mantermos na ignorância.
Às vezes sinto a minha vida escorrer por entre meus dedos, e tudo o que posso fazer é vê-la. Quais lembranças eu levaria comigo no leito de minha própria morte? Sinto a vida como algo tão efêmero, mas eu não quero morrer, apesar de entender que estamos condicionados a uma finitude que nos obriga a pensar nossas escolhas e o sentido de estarmos vivos.

Suspirando pesadamente, apoio minhas mãos no parapeito me empurrando com delicadeza para me levantar, então viro meu corpo sobre meus calcanhares e... Mas o que é... Quem está deitado no sofá?

Encaro uma pessoa com características físicas incrivelmente parecidas com as minhas, cabelos desalinhados, roupa amarrotada e tênis sujos. Mas o que estava acontecendo? Quem ou o que era aquela coisa? Mas apesar do choque, a visão que eu tinha de mim mesmo não ressoava como algo fora do comum, e sim como um sentimento familiar de me sentir fora de mim. Desprendido, solto, livre, sozinho. Sozinho. Por que tal palavra ressoa com tanto impacto dentro de mim? Por que minhas pernas tremem quando penso estar só neste mundo? Minha respiração falha e o suor escorre de meu pescoço até o tronco, e sinto meu abdômen contrair. Por que tenho essas sensações? Eu estou pronto para entender a mim mesmo? Eu deveria me livrar desse medo?

A figura, ou o outro eu, se levanta e permanece sentado no sofá, observando-me com seus olhos atentos enquanto seu rosto demonstra um sentimento de estranheza de forma quase caricata, ou terrivelmente confusa, seja lá o que estivesse se passando na cabeça daquela coisa. Mas se aquele deveria ser eu, por que eu não sabia o que ele estava pensando? Não é porque era a mesma pessoa que teria os mesmos pensamentos, teria? Será que eu estava tão diferente a ponto de não me reconhecer?

- E então, após encarar... A mim mesmo, eu acordo. - Estávamos sentados sob a mesa, iluminados pela luz de uma manhã brilhante que atravessava a vidraça da janela. O dia estava frio lá fora... Pelo menos foi que disse Elena após voltar da banca de jornal.

- Eu não sei o que pensar. - Com a xícara de café requentado em repouso sobre a mesa e com metade de biscoito que em sua mão enquanto mastigava a outra parte, o olhar dela me pousava sobre mim com atenção. Talvez não conseguisse imaginar a cena. - Existe algum significado para um sonho assim?

- Não sei, talvez. - Com a xícara de café que eu segurava pela alça com meus dedos, encosto meus lábios e o bebo. Apesar de requentado, Elena não era apenas uma ótima detetive, mas também sabia fazer um ótimo café. - Será que existe algo além do sentimento de solidão?

- Como assim?

- Digo, é possível que a solidão seja apenas o caminho das pedras para então conseguirmos enxergar as coisas de uma maneira mais ampla?

- Talvez. Encarar a solidão como processo para o crescimento pessoal parece arriscado, apesar de nossos sentimentos serem apenas nossos e, portanto, tornando o ato de pensarmos a respeito de nossos sentimentos uma viagem solitária. Mas é como eu disse anteriormente, precisamos compartilhar nossas experiências para tirarmos o peso que colocamos sobre nós mesmos, pois mesmo que a solidão seja inerente a nós, nos fecharmos para os outros ainda é uma escolha dentre tantas outras.

- Foi assim que você superou sua voz interior?

- Sim. Ao compartilhar minhas frustrações com alguém que realmente se preocupava comigo, pude vislumbrar minhas questões de uma outra perspectiva. Eu sentia, e sinto falta da minha mãe, mas viver uma vida presa ao meu passado, imaginando como seria minha vida se ela não tivesse morrido foi uma escolha que eu tomei, mas sem tomar consciência dos meus atos. Deixei-me levar pelo desespero e então me via presa a mim mesma.

- Presa a si mesma. - Por alguma razão senti a necessidade de repetir aquelas palavras. Elas ecoaram dentro de mim de tal forma que senti que Elena estivesse fazendo uma descrição a respeito da minha situação. - Às vezes sinto que estou ocupando o lugar de uma outra pessoa, como se eu fosse um impostor. - Talvez, só talvez, repetir essa mesma frase, dita anteriormente para meu psiquiatra, me rendesse uma resposta diferente agora que Elena está me ouvindo.

- Sente-se desconectado de si mesmo, ao que parece. Sei como é se sentir assim, como se estivesse vivendo a vida da maneira errada, mas não existe um jeito certo de vivermos nossa vida, Daniel. Não pense que esteja no lugar de outra pessoa, você merece estar vivo e seus sentimentos são válidos. Apenas dê um tempo a si mesmo.

- E como eu faço isso?

- Dar um tempo a si mesmo?

- Sim.

- Bom, Edmundo disse isso para mim quando eu estava passando por um momento ruim, e na época eu entendi que devemos dar uma chance para nós mesmos de provar que não somos quem pensamos ser.

- Mas como você lidou com sua voz? Eu só queria poder arranca-la de mim.

- Infelizmente não somos capazes de fazer isso, mas podemos cultivar uma segunda voz.

- Uma segunda voz?

- Sim. Uma segunda voz que diga algo gentil e pondera sobre as coisas ditas pela voz mais agressiva. Apesar da agressividade, a voz agressiva carece de lógica, e a segunda voz irá revelar essa deficiência.

- Como assim?

- Quando insistimos em questionar nossa voz agressiva, chegará um momento em que seus argumentos não possuirão mais lógica alguma, e então seu único argumento será "porque sim".

- Então eu tenho a chance de ser alguém melhor? - Meu coração acelerava e eu sentia meus olhos marejados, e apesar de eu não entender exatamente o que eram aquelas sensações, não podia deixar de notar uma fagulha de esperança surgindo dentro de mim. Depois de anos, aquela foi a primeira vez que eu não sentia desprezo por mim mesmo. Eu não me sentia só, e... Poderia dizer que eu finalmente pertencia a algum lugar. Eu ainda carregava muitas dúvidas, mas eu me sentia forte o suficiente para não desistir de minha jornada.

O Despertar do AbismoWhere stories live. Discover now