Capítulo 1: O Despertar no Abismo

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Eu estava deitado no divã, minhas costas afundavam na superfície acolchoada e minha cabeça repousava sobre um travesseiro acoplado à cadeira. A sala tinha um tamanho adequado para nos comportar de maneira agradável, apesar de meu psiquiatra nunca aparentar sentir-se à vontade ao dividir o espaço comigo. Como todo bom consultório da área da saúde mental, as paredes eram brancas, algo que gerava a ilusão do espaço ser maior do que aparenta, aumentando, acredito que de forma contraditória, um estranho sentimento de estar preso dentro de mim mesmo. Um desejo, ou até mesmo uma questão mal resolvida com minha própria mente surgia nesse ambiente, deixando-me diante de um abismo que me engolia aos poucos.

- Então, Daniel... - Ele suspirava, e seu olhar parecia alheio à mim, deixando-me com a sensação de estar incomodando. Essa sensação me persegue durante longos dois anos, e talvez seja por isso que eu ainda tenha dificuldade de lembrar o nome dele. Se não me engano começa com mar, ou algo próximo disso. - O que você nos traz hoje? - O psiquiatra sentava-se em uma cadeira de madeira com almofadas no assento e no encosto. Sua perna direita repousava sobre a sua perna esquerda, enquanto ele se apoiava sobre seus cotovelos. Até mesmo sua pose parecia transmitir apatia diante da minha situação, um estado de alienação que me perturbava, mas... Ele era o único profissional nessa área na cidade onde moro.

- Não muito... Digo... Eu não tenho certeza sobre as coisas que tenho feito ultimamente. Sinto-me à parte de minha própria vida, como se minha existência não passasse de uma terrível incógnita. Como se eu fosse um hospedeiro indesejado ocupando um espaço que deveria ser de outra pessoa. Um impostor... Uma anomalia.

Apesar da apatia e das atitudes alheias às minhas queixas, o psiquiatra realmente parecia estar confuso diante de meus discursos. Esse era apenas mais um monólogo sobre minhas experiências.

- E quanto ao conteúdo de seus sonhos?

- Meus sonhos são confusos. Estou sempre correndo de algo, fugindo de alguma coisa... Não ouço vozes, nem gritos ou qualquer sinal de ameaça... Mas eu sei, eu sinto que algo me observa. Eu não sou bem vindo, não sou desejado. Não faço parte desse mundo... Uma sensação de vazio crescente que causa-me até mesmo náuseas.

Com um movimento sutil, o psiquiatra repousa seu pequeno caderno de anotações no criado mudo, retira seus óculos e os coloca em seu colarinho. Ele me encara como se estivesse prestes a dizer uma notícia ruim, mas ao mesmo tempo... Ele parece tão distante. Uma expressão de preocupação forçada e um olhar vazio completavam o visual do homem que cuidava da minha situação.

- Em ocasiões normais, eu diria que você está suprimindo algo dentro de si. Um desejo, um medo... Enfim. Entretanto, seu caso é excepcional, logo não consigo enxergar nem tão pouco compreender o que se passa com você. Nesse caso, acho que o melhor que podemos fazer é retomar o tratamento através do uso de medicamento.

- Eu... Tenho minhas dúvidas quanto a isso.

- Bem, vou entender isso como um sim. - Com um rápido movimento com sua caneta na superfície pálida do papel, o psiquiatra anotava a receita dos meus medicamentos. - Apesar de não entendermos o que se passa com você, nós ainda podemos tratá-lo.

- Às vezes sinto que isso não vale de nada. - Minha garganta secou e meu abdômen tremeu quando eu disse aquilo. Eu estava confrontando a única pessoa que ainda estava tentando me ajudar. Mas por alguma razão, eu realmente sentia que nossas seções não pareciam ajudar em nada.

- É natural se sentir assim. Não desista do tratamento, nós daremos um jeito.

Levantei-me do divã e me dirigi até a porta. Caminhei sem nem ao menos enxergar o caminho. Abrigava-me dentro de minha própria mente, como uma criança fugindo de uma realidade doentia e que parecia pesar sobre mim. Durante minha caminhada, observo alguns elementos presentes na rua... Carros, sirenes, pessoas, carros, sirenes, barulho, carros, sirenes, mais pessoas... Uma loucura. Depois encontrei a mim mesmo sentado na cama de meu quarto em meu apartamento, observando a paisagem através da vidraça suja de minha janela. O que eu faço aqui? Como cheguei? Onde estou? Eram perguntas recorrentes que ecoavam em minha mente. Eu deixo meu corpo cair na cama, então eu me balanço junto com as molas.

Minha pálpebras pesam e meu olhar embaça. Então eu durmo, sonhando com o silêncio absoluto e uma escuridão intensa. Meu corpo afunda um pouco mais no colchão, e então eu relaxo.

Não sei quanto tempo havia se passado. Uma, duas horas? Aparentemente eu adormeci, e acordei sentindo algo pingando em minha testa. Pensei que fosse goteira, então lembrei que havia mais alguns andares acima do meu. Meus olhos abriram e eu vi uma mancha escura no teto. O cheiro era forte, parecia sangue. Coloquei meus dedos sobre a gota que caiu em minha testa, e quando vi o líquido carmesim manchando meus dedos, me levantei rapidamente. O que estava acontecendo? Por que havia sangue no teto? Eu comecei a ouvir batidas abafadas e fortes, como se alguém estivesse batendo em um corpo com algum tipo de martelo. Enquanto as batidas soavam, eu ouvia um grito desesperado. Não sei de onde vinha, eu só sabia que algo de ruim havia acontecido.

Ao mesmo tempo em que um trovão anunciava o início de uma tempestade, o som de janelas se quebrando e um corpo batendo contra o chão chegaram aos meus ouvidos. Eu caminhei lentamente sentindo cada músculo de minhas pernas a cada passa dado até a janela do meu quarto, abrindo-a cuidadosamente. Coloquei a cabeça para fora, e pude sentir a água da chuva escorrer da minha cabeça, descer pelo pescoço e molhar minha roupa. Em meio às gotas de chuva que escorriam pela minha testa e escorregavam até a ponta do meu nariz, pude ver o corpo do que parecia ser um homem estirado no chão. Havia sangue ao redor, e as pessoas que estavam por perto se juntaram para ver enquanto suspiravam horrorizadas.

Fechei a janela e, caminhando lentamente de costas, em choque com a cena, sentei-me forçosamente na cama, observando a chuva bater na vidraça enquanto eu imaginava no que acabava de presenciar. Um assassinato? Isso está realmente acontecendo? E se acharem que eu sou o culpado? Eu saberia dizer? Eu não devo ter feito nada, o crime praticamente aconteceu agora a pouco, mas e se... Eu seria capaz de cometer algo do tipo e não me lembrar de nada? Eu devo contar ao psiquiatra sobre o ocorrido? E se ele não acreditar em mim? Talvez eu deva apenas tentar deixar isso de lado, fingir que nada aconteceu.

Em meio a um turbilhão de pensamentos, eu retiro o remédio guardado dentro da gaveta do criado mudo, e o engulo enquanto bebo um pouco de água. Talvez assim eu consiga dormir. Amanhã isso será resolvido. Eu espero.

O Despertar do AbismoWhere stories live. Discover now