Assim que ouço o fim de sua sentença, sei que não está falando da mutilação nos meus braços. Ele não está se referindo a nada além do dia em que fui para a ponte e decidi que nada mais importava. Eu sei que todos na cidade ficaram sabendo, foi ainda pior por isso, mas não imaginei que um dia logo ele me diria algo que mencionasse aquele dia.

Quero gritar com ele, dizer que não tem o direito de falar sobre aquilo, que se eu quero ou não morrer em uma droga de ponte ninguém tem nada a ver com isso. Quero gritar com ele e dizer que a culpa é dele por tornar os meus dias ainda mais difíceis nessa droga de mundo, quero dizer que por culpa dele perdi minha única amiga, que ele é a pior pessoa que conheço e que não quero vê-lo nunca mais. Mas meu coração quer tudo, menos essas coisas. Quero abraçá-lo como costumava fazer quando era criança, perguntar porque ele se tornou tão amargo, saber porque seu coração foi corrompido pela crueldade, saber se algo aconteceu, se foi tão ruim que ele não teve coragem de contar para mim, sua velha amiga.

Enquanto penso entre lágrimas silenciosas se deveria perguntar essas coisas a ele, o vejo tentar tocar suas costas por cima do ombro e arquejar esbanjando um semblante de dor. Dou um passo à frente mas ele recua e põe o braço entre nós, em seguida caminha de volta para os prédios disciplinares me deixando sozinha. O vejo se afastar cada vez mais, mas algo me chama atenção, sua camisa branca está ficando marcada em vermelho nas costas, como se bem na altura de suas costelas tivessem surgido dois cortes enormes.

• • •

Odeio que me perguntem o que aconteceu, que me perguntem se estou bem. Odeio que questionem o meu estado, que queiram saber como estou por dentro. Porque a resposta sempre será a mesma, mas o sentimento também permanecerá sendo o mesmo. Continuarei dizendo que não é nada, que estou bem, quando na verdade estou passeando dentro do caos que sou eu mesma, quando na verdade já não sei o que fazer e estou de mãos atadas, prestes a desistir novamente. Do que adiantaria falar? O que mudaria? O que tornaria a situação diferente? Um abraço? Um breve "vai ficar tudo bem"? Desculpe se pareço a pessoa mais cruel do mundo, mas o que essas coisas mudam? Exatamente, nada! Vou continuar me sentindo perdida, vou continuar sentindo essa maldita dor vazia que me faz preferir dançar nas chamas do inferno, vou continuar querendo morrer.

          Ando sozinha pelas ruas durante todo o dia depois das aulas, já não tenho motivos para me apressar, não tenho trabalho para ir é muito menos família me esperando em casa. Decido esqueci esquecer o que Josh disse mais cedo, me convenço de que aquilo foi só uma armadilha para algo maior que ele esteja planejando, se realmente se importasse, ele não teria me maltratado tanto para começo de conversa.

          Caminho até minhas pernas doerem, talvez tenha andado pela cidade toda no dia de hoje, pois tenho a sensação de que todos os rostos que vi ao longo do caminho são estranhos para mim. Nem sei que horas são quando estou um pouco mais perto de casa, mas a julgar pela falta de pessoas nas ruas e a lua brilhante a poucos metros do horizonte, deduzo que estamos entrando no início da madrugada. Passo pela ponte que sempre atravesso para chegar em casa e paro no meio dela, a água do rio lá embaixo dança ao som do vento, consigo ouvir tudo nesse silêncio humano. A natureza é bonita, mas talvez não o suficiente para que eu a veja como um motivo de continuar aqui. Toco a grade e sinto o ferro gelado em contato com as minhas mãos, isso me faz perceber o quanto minhas pernas estão doendo, o quanto o meu corpo está cansado.

          Da última vez que estive aqui com intenções semelhantes, acabei acordando no hospital depois de me jogar nesta mesma água. Não sei como fui parar naquele lugar, pois antes de pular tomei um turbilhão de comprimidos e durante a queda já estava quase totalmente sem consciência. Lembro apenas  em flashes quando busco na memória, algo escuro me envolvendo, mais escuro que a noite, parecia um enorme tecido majestoso, tão bonito e firme que nem me importei em olhar para o resto.

         Não tenho para onde voltar, não há lugar que eu possa ir. O que vinha me mantendo aqui todo esse tempo era a falsa responsabilidade que eu tinha com as pessoas ao meu redor, mas já que não tenho nada mais a me agarrar, não vejo motivo para permanecer nesse lugar. Ergo o corpo e sento sobre a grade de costas para o rio, continuo segurando o ferro, uma mão de cada lado do corpo.

         Espero que desta vez não hajam interrupções, preferiria que não achassem o corpo, evitaria que Betty ou Taehyung soubessem o que aconteceu, mesmo depois de hoje sei que eles são humanos o suficiente para lamentarem a morte de uma pessoa, não importa quem ela seja. Bom, sinto muito pela humanidade deles, mas já não suporto mais ser humana por mim. Solto as mãos da grade gélida e abro os braços enquanto ergo as pernas, o desequilíbrio é quase que imediato. O vento frio ajuda a me empurrar para trás e aperto os olhos quando viro para cair de tão alto.

        Estou caindo em direção ao rio, com todas as minhas lembranças sendo levadas pela brisa suave do resto da noite. O rosto da minha mãe surge em flashes para mim e estou quase me arrependendo, quase. Sinto algo se chocar contra a minha coluna e a dobra traseira dos meus joelhos, chego a pensar que já parti dessa para melhor, mas não sinto a água, ela não inunda meus pulmões. Me concentro na audição quando ouço algo bater contra o vento, algo pesado e poderoso, então abro os olhos e vejo que estou suspensa no ar, com braços carregando-me enquanto voo. As batidas do meu coração estão desenfreadas e acho que terei uma parada cardíaca quando noto que atrás do corpo que me carrega, cortam o vento enormes asas negras, mais escuras que a noite.

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⏰ Última atualização: Nov 26, 2023 ⏰

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