Capítulo 10: Conversa com os mortos.

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Rei Fajardo

Bruno sempre foi um impedidor do meu consumo ao tabaco. Não apenas ele, mas Dandara, Carla, a Rosângela e até mesmo o meu falecido professor Ivan. Todos eles faziam ações e arremetiam palavras das quais pediam para que eu não repetisse. "Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço."

Babacas.

Sempre foram um pêndulo conturbado entre a boa e a má influência. Mas um dos aprendizados mais coerentes que todos me deram foi uma afirmação da minha infância. "Todos os homens são cinzas." Nem bons, a ponto de considera-los puros. Nem maus, ao ponto de considera-los pecadores. Cinzas, com seus requintes de amor e crueldade em todos os aspectos. Os mesmo que eram capazes de matar um semelhante, também conseguiam presentar uma criança com doces e amor.

A humanidade, não passa... De um cenário falso de afetos vazios.

Virei o rosto para trás. Ali, naquele cemitério quente e silencioso. Ficava cortejando a sepultura do meu antigo mestre. Estava sentado no mármore que colocaram para ele. Ivan sempre foi odioso com arquiteturas, ainda mais para representar a morte de um ente. "Ele odiaria saber que gastaram dinheiro para isso." Assim constatei. Abri um pequeno portal da dimensão das sombras do lado da minha mão esquerda. Dele retirei uma lata de cerveja. — Não existe ninguém agora que possa me impedir de ser eu.

Olhei para os lados. Observando o nome de todos ali jazidos. Até que uma certa tristeza penou em meus olhos. Não tive vontade de chorar, mas olhei ao chão mesmo assim. — Liam... Foram tão cruéis com a sua honra, que você nem foi enterrado. — O corpo dele devia estar jogado num lixão. Comido pelos ratos, baratas e vermes.

Não é todo preto que recebe o respeito da morte digna. Isso já me havia ficado claro.

— Se te verem falando sozinho. Vão achar que você enlouqueceu. — Era impossível de desconhecer essa voz.

— E eu não estou? Me vejo a dialogar com um morto agora. Ivan. — O respondi. Ele estava sentado na sepultura a frente.

— Ao notar seu olhar, e sua confiança com o resto da vida. Não está muito longe da dimensão que habito. — Sempre inteligente e respondão. Como de costume.

— Sinto tua falta, mestre. — Soltei o ar preso no peito. — Tenho sentido o peso de proteger estas comunidades. Dá vontade de... — Notei a magia das sombras florescer nas mãos. — Destruir todas as ameaças.

— Então é por isso que me invocou para a conversa? Quer o meu aval.

— Não o invoquei... Você está morto. Eu só estou maluco.

Nesse momento meu mestre invocou na ponta dos dedos uma pequena centelha da magia das sombras. Ele apontou para mim e deixou a magia correr como um tiro em linha reta. O ataque cortou minha bochecha. Um golpe de raspão que me fez ficar alerta. Fiquei travado pela surpresa.

— Você ainda desconhece muito da própria magia... — respondeu. — Já leu sobre Maquiavel? Algum livro ou filosofia dele?

Balancei a cabeça em negação. Sabia que ali vinha outro sermão. E sinceramente, nunca fiquei tão animado em ouvir, pois a saudade era incomparável.

— O príncipe... Maquiavel é um pragmático. Ele acredita que algumas condicionantes estabelecem os parâmetros do tanto que um homem pode almejar poder. E sempre que ele estiver o poder como disposição, ele irá atrás desse poder.

— Esse papo de "os fins justificam os meios?" — Questionei. Dei um gole na latinha.

— Não posso afirmar. Mas para ele não existe valor nenhum na bondade do homem, ao menos que seja para estabelecer ou reafirmar poder. — Ivan ficou em silêncio por alguns minutos. — Se você fosse mais forte do que é, ou mais forte do que acredita ser agora, o que faria?

— ... — Fiquei em profundo silêncio.

Ivan sorriu. Ele sentia que dentro de mim havia plantado uma semente vigorosa. Bastava a mim agora regá-la e a transformar numa árvore vistosa.

— Para Maquiavel. — Continuou. — Independente das tuas escolhas. Suas ações sempre te levariam ao estado de ir atrás do poder que você acredita merecer. — Ergueu as mãos em deboche. — Armas bélicas. Magos poderosos. Magias anormais. Não é isso que define alguém como o detentor do trono.

— É o quanto está disposto a sujar as mãos... — completei.

Levantei, confiante das ações que tomaria daqui para frente. Não haveria volta, mas na verdade, desde que Liam começou a tomar conta de mim. Nunca houve.

— Mestre. Terei de abandonar a Vila do João. Espero que me perdoe.

— Vamos até onde somos capazes de ir, garoto. Nenhum homem é destinado a permanecer preso como as raízes de uma árvore. Eu permaneci ali pois me achava incapaz. Não precisa seguir os mesmos passos de um homem frágil.

— Não seguirei. — Sorri. — Obrigado por tudo, mestre.

A sombra dele sumiu. Assim como eu comecei a desaparecer do cemitério. Precisava começar as minhas ações de imediato. Apareci no Centro do Rio, mais especificamente no prédio dos Protetores.

Estava do outro lado da rua, mas os carros passavam vagamente. Caminhei até ele.

— Ei! — Um berro alto do topo do prédio. Uma mulher loira se refrescava no teto da estrutura. — Dê qualquer outro passo e eu te mato. Deu para sentir suas intenções a quilômetros de distância.

Ela fumava um cigarro. Fumantes... Malditos incômodos.

— Vim pegar uma coisa. Nada que lhe é de chateação.

— Rei Fajardo. Mago das sombras. Só existe um no mundo a cada um século. Irmão de Liam Fajardo, criminoso de nível Estadual. Filho de Antônio Fajardo, alcunhado como Barão. Coronel da polícia militar. — Ela sabia minha biografia melhor do que eu. — Quando eu notei a presença da sua magia no corpo de Gael e Bruno, fiquei feliz por sentir um aliado tão poderoso. Mas agora... Sinto que não está aqui para tentar amizade.

— Já vim aqui antes. Só estou vindo pegar algo que me é importante. — Eu não sabia mentir, mas gostava da sensação do sarcasmo.

— Sinto há alguns dias uma variação na quantidade de magia que vêm dos olhos que selavam o Imperador. — Maldita. — Algo me diz que a morte de Ivan, ou o próprio, tem realocado a magia dele ali para que voltem a ser utilizáveis. E que você também sentiu isso.

Fiquei em silêncio.

— E isso já responde toda minha teoria. — Ela riu pausado. — Estava com medo de estar maluca.

— Pelo jeito que detalhou tudo. Tenho a leve impressão de que não tem a intenção de dá-los de bom grado.

— É uma pena ter de te matar. Mago das sombras.

Um braço vermelho perfurou meu peito. Ele segurava, ainda presa pelas veias, o meu coração onde um dia foi minhas costas. Babava sangue. Meu corpo estava fraco, mas tentei me segurar naquele braço para que pudesse me manter de pé.

Uma mana espessa e escura como sangue começou a se reunir, ela se unia ao braço para finalizar o corpo daquele que havia me atacado. Era ela. A maga loira que estava em cima do prédio.

— O que é isso?

— O braço de um dos demônios que eu tenho contrato. — Cuspiu a fumaça na minha cara. — Se tornou o meu braço também.

— Que interessante. — Sorri.

Meu corpo começou a se liquefazer. Como o líquido preto das sombras que deixava o rastro da minha magia. No momento oportuno, pude sentir nela o desamparo da surpresa. Ela não esperava, mas se recompôs de maneira vil.

— Não achou que um truque patético desses me anularia. — Na outra ponta da rua, a questionei.

— Quis apenas me fazer de burra? Senhor Fajardo.

— Não. — A encarei. — É que eu sou terrivelmente apaixonado por qualquer mulher que passe a sensação de que pode me matar a qualquer momento.

Um raio surgiu atrás de mim. — Diana. Juntos.

Era Henrique. Ótimo. Teria de lidar com mais de um único incômodo.

DEUSES DE SANGUE - VOLUME 2Kde žijí příběhy. Začni objevovat