Zuri

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"Me solta!", gritou a mulher com o rosto e o dorso prensados na mesa. "Já mandei tu calar a boca, porra!", replicou o homem que, com o zíper da calça aberto, levantou a saia e penetrou-a, dolorosamente, enquanto ela gritava.
Como que voltando a si, ouvindo o eco de uma frase ao fundo, Zuri indaga: "O quê?" E a amiga Cláudia, que estava saindo com ela da faculdade, repete: "Os protestos. Te perguntei como você acha que serão". "Sim, os protestos! Tem que ir pra rua mesmo! Vamos tirar esse filho da puta de lá ou ele acaba matando a gente!" "Você está tão estranha ultimamente!" Sinaliza Cláudia. "Desculpa, Claudinha! Tô meio preocupada com umas coisas aí! Mas vai ficar tudo bem!"  As duas se despedem. Cláudia foi para casa de carona com alguns amigos de outro curso, já Zuri seguiu para a Estação Socorro para pegar o ônibus.
Negra, pobre, com um vultoso cabelo black power, um dos símbolos maiores de seu empoderamento, Zuri, que já contara quarenta invernos em sua jornada e ainda assim continuava com um corpo longilíneo e cheio de curvas, realmente estava preocupada, mas a razão para isso não era estranha, ou melhor dizendo, desconhecida. Aquela cena não a deixava em paz: o ex-marido, Josemar, estuprando-a, amiúde, como se ela não tivesse o direito de decidir se e quando queria ter sexo. Tudo isso causara-lhe dissabores e traumas que, talvez, nunca pudessem ser curados
Mas no começo ele não era assim. Era carinhoso. Se mostrou um homem amável, romântico até. Mas com o tempo, foi se transformando. Algumas frases mais rudes foram surgindo, depois cenas vexatórias em público até chegar ao ponto em que a violência sexual contra a própria esposa começou a se tornar uma constante. A partir daí, Zuri percebeu que teria que tomar uma atitude, antes que algo mais trágico ainda viesse a acontecer. Depois de tantos anos de casamento - onze para ser mais exato - e temendo por sua vida e pelas vidas de seus quatro filhos, decidiu se separar.
É claro que o marido não aceitou isso assim, possessivo que era. Frases como “Tu é minha” ou “Mulher minha não faz essas coisas” eram sempre usadas por Josemar para deixar claro que Zuri não era uma pessoa livre. Não era nem uma pessoa. Era uma coisa que ele carregava para cima e para baixo e usava quando tinha vontade. Vontade de meter casa adentro e trancá-la. Vontade de meter a porrada. Vontade de meter...
Zuri não queria mais se sentir um objeto em suas mãos ou mesmo sentir medo de quem jurou amá-la e protegê-la. Pegou os filhos e  foi embora. Josemar foi atrás. Disse que iria matá-la. Tentou. Não conseguiu. Chamou de vagabunda. Chamou de puta. Chamaram. A sociedade chamou. Os vizinhos. Os amigos. Amigos? A igreja chamou de puta, mas não assim. Puta na igreja é mais bonito. Adúltera. Apesar de todos os xingamentos, toda a pressão, ameaças e quase morte em vários momentos, ela resistiu, resiste, se livrou e se livra de todos eles, todos os dias, a cada minuto, sobrevivendo às investidas dos olhos que julgam sem cessar o seu existir, a sua essência, descobrindo, aos poucos, a força que possui.
Forte. Talvez esta seja a palavra que melhor a descreva. Zuri é uma forte. Mulher forte, mãe forte, pessoa forte. Em todas as dimensões, sem dúvida, uma forte.
Mas, como vimos, ninguém adquire tamanha força, tamanha resistência sem pagar um preço. Sofrer tem sido uma constante na vida e no cotidiano desta polivalente guerreira. Entretanto, é como dizem por aí: “O sofrimento é o preço do crescimento”. Posto isso, confirmando-se que a máxima dada é verdadeira, Zuri cresce mais e mais a cada dia, em graça, força e sabedoria, com potencial para se agigantar infinitamente.

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