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- Toma.

É a primeira coisa que ele diz quando ponho meus para pés fora do quartinho. Oferece-me um copo americano cheio, com uma rodela de limão dentro.

As músicas do Rappa não foram suficientes para me acordar, mas os tiros de fuzil expulsaram todo o resquício de sono que eu e César poderíamos ter. Fiquei acordada, encolhida na rede em que dormi, esperando para descobrir se estava havendo confronto com a CORE de novo. Não falamos nada, nem eu e nem meu assistente, mas permanecemos alertas. Quinze minutos passaram, e tudo o que ouvi foram três batidas na porta e a voz de Kabul, "cinco e meia, na minha casa passarinho canta antes da alvorada!" foi o que ele disse.

Corremos, eu e César, ele saiu da maneira que estava e eu precisei de mais alguns minutos para me trocar e pôr a mente em ordem. Agora que saí, encaro aquele copo de batida misteriosa com perplexidade. O dia lá fora ainda é cinza, e o cheiro de café e carne frita rescende por toda a casa.

- O que é isso? - pergunto, sentindo-me ainda como uma gata que tomou um banho de água fria.

Encaro os olhos de Kabul, que balança o copo e insiste para que eu o pegue. Só agora consigo ter dimensão do quão mais alto ele é, porque se desse mais uns passos à frente, seu queixo estaria tão acima que nem encostaria no topo da minha cabeça. Ele veste uma camiseta verde escura com as mangas cortadas, calça e coturnos, e a mesma correntinha dourada escorre em seu pescoço.

- É cachaça com limão e mel, pra gripe - diz simples, dando de ombros como se tomar cachaça às cinco da manhã e de estômago vazio fosse comum.

- Não precisava - digo baixinho, mas pego o copo da mão dele com a delicadeza de quem teme recusar a preocupação de alguém com muito potencial para ficar ofendido - Mas obrigada... -

- Não toma agora, só depois do café - ele específica, e essa é a primeira vez que Kabul pode me dar uma boa olhada de perto. O que não dura muito, uma vez que ele se afasta e então se encaminha para o fogão - Senta aí moça, teu amigo já comeu -

Só então eu olho para os arredores, me dando conta de que César simplesmente não está ali, e eu não faço ideia de onde pode estar. Kabul parece prever minha pergunta e então me olha com o canto do olho enquanto remexe a frigideira que esperava no fogo, manuseando uma espatula.

- Botei ele pra varrer quintal - diz, o que eu sinto que tem uma ponta de sarcasmo que Kabul esconde em sua expressão séria.

- Ah... Entendi - digo meio sem jeito, me voltando para mesa de madeira onde me sentei ontem à noite. Deixo o copo ao meu lado, e encaro o tampo de madeira para evitar encarar Kabul terminando de cozinhar.

Penso com meus botões que para ele deve estar sendo muito divertido expôr eu e meu parceiro à um estilo de vida novo, nos forçando silenciosamente a experimentar aquilo que ele vive. Talvez seja uma estratégia para o livro, talvez seja apenas sadismo, talvez seja uma enorme rigidez de hábito que não suporta nem mesmo ter contato com uma rotina diferente. Ou talvez seja a minha idiotice em achar que sou uma querida hóspede aqui. Não sou.

Acordo do devaneio com o estalo do prato de vidro que ele põe na minha frente. Eu ajeito a postura e me afasto da mesa, enquanto Kabul recolhe dois ovos da frigideira, e para a minha surpresa, põe no meu prato um pedaço enorme de bife logo em seguida.

- Carne? - eu pergunto franzindo o cenho involuntariamente, sentindo meu estômago recuar na fome que se insinuava.

- Por que? Só come salada? - Kabul pergunta, mas não soa agressivo.

- É que é meio cedo né - murmuro encarando a comida. Ele me estende o garfo e uma faca velhos, sigo a trilha por seu braço até olhá-lo covardemente nos olhos. Há uma rigidez quase paternal em seu rosto.

SANTOS, art. 33Onde histórias criam vida. Descubra agora