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O cheiro de mato molhado, petricor da floresta de mangue nas planícies de inundação de São Vicente. Essa talvez seja o detalhe mais vívido do qual posso me lembrar em meus sentidos, porque hoje na capital, quando há chuva, essa memória distante volta. A rabeta, como chamam os barcos pequenos motorizados que andam pelos do mangue Santos, cortava o rio de água barrenta do Boturoca no meio da madrugada, apenas uma lanterninha apontava o caminho, minha capa de chuva preta já não protegia coisa alguma e nenhum de nós três falava coisa alguma, nem eu e nem César, o meu assistente, e muito menos Pixador, o moleque de vinte e poucos anos, de cabelo baixinho e riso frouxo que o Partido/Comando, mandou para nos guiar nessa merda de investigação.

Quando comecei a cursar jornalismo, sempre soube que seria do tipo de jornalista louca. Do tipo que se enfia em zonas de guerra, que morre em campo, do tipo que procura problemas malucos nos quais se enfiar. Mas eu não imaginava que conseguiria seguir tão à risca essa lei, e começo a me arrepender, do jeito que me arrependi enquanto fazia as malas. Não estou aqui sob a proteção da redação em que trabalho, meu redator acredita que estou de férias, minha família acha que estou escrevendo uma resenha sobre um novo hotel de luxo que abriu em alguma praia de Santos.

O único que sabe meu verdadeiro paradeiro é César, que foi quem conseguiu fazer as conexões necessárias para que eu estivesse aqui, prestes à encarar frente a frente um dos homens mais perigosos da maior facção do país. Um homem condenado a 90 anos de prisão, o homem que sozinho matou dois policiais, sozinho baleou soldados das operações especiais e sozinho derrubou um helicóptero. César era jornalista recém formado, o primeiro da família a cursar o superior, um menino criado no Humaitá. Foi ele quem compartilhou comigo em tom de fofoca as lendas que cercavam o tráfico da região, e fui eu quem, obcecada e insana, insisti para que ele procurasse por mais informações

A história era boa demais para ser verdade, e absolutamente ninguém estava falando sobre as toneladas de coca que saiam de Santos para a Europa. Ninguém estava falando sobre o exército de um homem só que morava escondido nas matas de Santos. Era assunto para fazer carreira, e eu tratei de convencer César disso e deslumbrá-lo com a ideia. Depois de uns meses, ele, através dos amigos de infância que seguiram o caminho do crime, conseguiu fazer uma ponte "segura", entre mim, e a estranha figura misteriosa conhecida como Kabul.

Apartir desse dia, tudo saiu de controle.

Poucas coisas eu sabia sobre Kabul. Sabia que tinha nascido na comunidade do Humaitá, sabia que sua habilidade tática provinha do treinamento que fizera com guerrilheiros comunistas num país vizinho. Sabia que ele era, sobretudo, um soldado, e que ele se sentia pessoalmente representado sob o vulgo de uma cidade devastada no Afeganistão. Sabia também que dentro do tráfico brasileiro, não havia ninguém tão profissional quanto ele.

Ao longo dos meses eu me debrucei sobre a existência desse homem tão singular, ao ponto de pôr a cabeça no travesseiro para dormir e me perguntar onde Kabul estaria dormindo naquele momento, me dando conta de que muito provavelmente, não estava nem perto de dormir. O que eu não previa era que Kabul também se dedicaria de maneira muito particular a saber tudo o que podia sobre mim, mais especificamente, sobre o meu trabalho. Semanas atrás, quando César falava com algum dos amigos faccionados, deixou a ligação no viva voz para que eu ouvisse a conversa que me perseguiu por todos os dias seguintes.

"- Firmeza chefia, o chefe bateu um olho no trabalho da mina aí. Leu uns artigos e pá, disse que a loirinha escreve bem pá porra e fala bem que só, viu o insta dela, e não é jornalistinha merda. Como o que cês quer não é oficial e nós tá desenrolando isso aí porque os trabalho tá parado mesmo, o homem tá no descanso, tá meio ruim - disse o menino o qual não descobri o nome.

- Meu. Deus. - murmurei de olhos arregalados. César prontamente me mandou calar a boca.

- Meio ruim? Xii fiote, manda logo, qual que é a fita?

SANTOS, art. 33Where stories live. Discover now