|CAPÍTULO 5|

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Na manhã do dia seguinte, o casarão da fazenda dos Tebet estava a poucos passos de se parecer com um pandemônio. Uma verdadeira balbúrdia com a mistura incongruente de vozes alteradas. O desjejum se tornou intragável quando Coronel Ramez começou a falar e todos só fizeram silêncio outra vez no momento em que o patriarca da família deu um forte tapa sobre a mesa, causando alarde com o barulho da louça e da prataria tremendo.

"Simone Nassar Tebet! Já chega! Estou sendo muito maleável com você." A voz dele soou esganiçada apesar de grave. A rebeldia - como ele mesmo intitulava - de Simone tirava-o do sério. "Você voltou de São Paulo para cumprir um propósito. Não permitirei que se desvie dele." Continuou dizendo.

Um dos gêmeos, Ramez II, pronunciou baixinho e como estava ao seu lado, foi fácil para Simone escutar: "Como se minha irmã não fosse mestre em desviar dos caminhos do Senhor." A morena esticou o pé por debaixo da mesa e deu um pisão forte no que deduziu ser o pé do irmão. Ele levantou o joelho com toda a força, batendo no tampo da mesa, assustando os alheios.

O Coronel fez menção em se levantar, mas Fairte, a única que ainda conseguia domá-lo, mesmo que minimamente, segurou gentilmente em sua mão, acariciando-o. Ele olhou para a mulher, perdendo-se em seus olhos suplicantes, até Simone os interromper.

"Papai... Poderíamos negociar um meio termo?" Ela o encarava fixamente. Como sempre, quando esperava pelos argumentos de Simone, ele ficou em silêncio, almejando que ela seguisse em frente com seus pensamentos. "Eu aceito participar das tarefas propostas por minha mãe... Consigo uma vaga como professora na escolinha da vila e..."

"E...?" O Coronel Ramez perguntou impaciente. Nada disso importaria se Simone não cumprisse com os desejos de seu pai para si.

"Prometo me casar. Mas não com Eduardo. Quero casar por amor." A voz de Simone surgiu como uma lamúria. Talvez, seu pai acabasse se lembrando de quando se apaixonou por sua mãe e fez de tudo para se casar com ela. Talvez, ele fosse tocado em seus sentimentos, talvez seu coração se compadecesse. O que Simone não sabia era que Ramez havia enterrado tais coisas em um buraco muito, muito profundo.

"Com um homem." Ramez frisou.

"É óbvio que sim, meu pai." Rodrigo soou confuso ao afirmar, como se aquela fosse a sentença mais patética que já escutou. E de fato era, certo?

"Eu aceito as duas primeiras condições desde que tente ao menos conhecer o Eduardo." Ramez disse. Simone abriu a boca para protestar e ele levantou a mão, interrompendo-a, calando-a. "É isso ou deserdo você. E uma mulher brasileira sem um dote não terá onde cair morta. Te renegarei como filha." As palavras rasgaram o coração de Simone.

"Ramez!" Fairte protestou. O homem mais velho em sua postura ereta viu a esposa parar de conter as lágrimas nos olhos. Viu Simone chorar também, sendo consolada por Eduarda, que se levantou de sua cadeira para abraçar a mais velha. Simone secou rapidamente as lágrimas que escorreram pelas bochechas usando o dorso das mãos. Chorar na frente de seu pai era seu último desejo, mas não pôde evitar.

"Eu aceito esses termos, meu pai." Por fim, respondeu. Sua voz ressentida até causou algum impacto no Coronel mas ele estava crente que aquilo era o melhor para o futuro de sua menina. Sabe quando os fins justificam os meios? Era assim que ele pensava.

"Foi o que eu imaginei." O Coronel murmurou e a senhora Tebet se levantou, caminhando para longe do marido. Em seu coração, Fairte sabia que Simone não se casaria e a ideia de perder sua filha para sempre a atormentou severamente naquela manhã. Por este motivo, trancou-se no quarto.

Do outro lado de Campo Grande, uma preguiçosa Soraya acordava. Sentiu seus braços e pernas levemente rígidos por passar grande parte da noite deitada na mesma posição. Ela se sentou e esticou-se para garantir um pouco mais de mobilidade. A toalha ainda envolta em seu corpo escorregou para a cintura e fez a loira lembrar-se imediatamente da sucessão de fatos da noite passada. Deitou-se tão atordoada que não teve tempo nem de colocar sua camisola.

Aproveitou-se do restante de água de jasmim e se higienizou, arrumando os cabelos presos e colocou no corpo um de seus vestidos do dia a dia. O que Simone lhe emprestou ainda estava estendido ao lado oposto de sua cama, como se a morena tivesse dormido ao seu lado naquela noite. Só de pensar, Soraya sentiu um calafrio.

Dobrou a roupa com muito cuidado e trouxe-a para perto do rosto por pura curiosidade. O cheiro de Simone estava entranhado no vestido. O mesmo cheiro que ela sentiu quando a morena a colocou contra a parede.

"Nós nem estávamos tão próximas assim..." Thronicke pensou em voz alta. Quase que no meio da frase, ouviu duas batidinhas em sua porta e logo ela se abriu. Era sua mãe, com um semblante muito preocupado.

"Bom dia, menina." Ilda disse, passando o olho pelo quarto rapidamente. "Seu pai e seus irmãos esqueceram de levar o almoço. Vou separar as marmitas e você vai lá entregar."

"Sim, senhora." Soraya respondeu e não teve muito tempo de se aprontar. Apenas levou consigo uma sacola de tecido, onde guardou dois exemplares dos livros que pegou emprestado na biblioteca central na semana passada. Sua mãe enrolou as marmitas em um pano de prato bem amarrado e a garota seguiu seu caminho até a estação de trem, onde os três trabalhavam na descarga de mercadorias.

Enquanto Soraya atravessava o comércio da cidade para encontrar seu pai e irmãos, Simone tentava respirar um pouco de ar puro na área externa do casarão. Passou pela fonte e imediatamente a imagem daquela mulher completamente molhada veio em sua mente. Soraya Thronicke. Pensou que não teria que vê-la tão cedo após o ocorrido mas, desde que a reunião familiar desastrosa acabou, uma só coisa martelava em sua mente: Fairte havia sugerido - na intenção de amenizar a situação, não amenizando coisa nenhuma - que Simone participasse do clube do livro de mulheres que a dita cuja pensava que liderava. Quando Fairte falou o nome de Soraya na mesa, duas pessoas reagiram: Rodrigo e Simone. Sendo a morena a última pessoa que deveria reagir.

Tebet se sentou no mesmo batente que a loira se sentou antes de cair. Ela olhou para cima, para o céu. O sol estava ameno, escondido entre uma nuvem clara. Quando abaixou a cabeça e olhou em volta, para a água limpa, franziu o cenho ao vislumbrar uma presilha média de pérolas. Simone afundou a mão até o cotovelo na água e a pegou, retirando um fio de cabelo dourado emaranhado nela. Era de Soraya. Eu preciso devolver. Ela pensou e praguejou céus e terra por nutrir algum desejo pela loira. Uma atração fortíssima que com muito teimosia, fazia Simone ignorar sua aversão.

Estar em um clube do livro rotineiramente com Soraya a levaria de encontro à tudo o que seu pai estava tentando evitar, como se fosse uma aberração. Apesar de ter convicção de que não era, pensou muito em sua mãe e na ameaça de seu pai. Resistir àquela lá vai ser muito difícil. Tebet se levantou do batente e foi para seu quarto. E nem lá tinha paz. Continuava vendo a mulher somente de calcinha na ponta de sua cama como uma assombração.

Correio Aurora [Simone x Soraya]Where stories live. Discover now