Espíritos

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Aonung tinha as costas perfuradas pela espinha afiada repleta de tinta escura de lula. O ancião da tribo marcava-o desde parte do peito, até o pescoço, ombro e costas, e ele sangrava no processo. 

Tentou se controlar o máximo que pode. Naquele momento sagrado, onde deveria se transformar em um homem, não podia demonstrar fraqueza. 

Entretanto, quando começou a ser tatuado, não pode evitar que uma singela lágrima descesse, mas contrário do que as pessoas pensavam, não era o processo doloroso que o fazia chorar. Ter sua pele cortada milhares de vezes não era nada comparado a dor de ver o garoto que ele amava chorando ali, tão perto, mas tão inalcançável.

Queria abraça-lo. Envolve-lo e proteger o menino de toda a dor. Todo o sofrimento que ele mesmo havia causado. 

Mas não podia. Não podia condenar a si mesmo e toda a família do seu amante. Enviá-los a morte e colocar a si mesmo em apuros. Tudo que ele podia fazer, era ficar ali, parado, contemplando Neteyam chorar por um ferimento que não sarava. Por isso, ele chorava em silêncio. 

A cerimônia das marcas parecia que se estendia por um tempo infinito, e enquanto sua pele absorvia a tinha preta, os guerreiros da tribo entoavam canções e batiam os tambores com força. Ele sentia seu coração sendo esmagado por ver Neteyam sofrendo, e a pior parte ainda se aproximava.

Depois de duas horas, o ancião levantou a mão, ordenando silêncio. O velho se levantou e saiu, tendo o seu lugar tomado pelo Olo'eyktan e a Tsahik. Ambos colocaram uma das mãos em cada um dos ombros do filho, e Tonowari começou.

— Agora, perante todos aqui presentes, Aonung torna-se um dos caçadores do recife. Seu sangue foi derramado diante de todos, e ele é um homem agora. Que seus feitos sejam grandes, e que ele encontre felicidade em sua jornada! — A voz do líder inspirava os presentes, que comemoravam com uivos e bater de palmas. 

— É chegada a hora dele escolher aquela com quem dividirá sua vida. Perante o Olho de Eywa, Aonung deverá selecionar uma parceira para viver junto até o fim — A Tsahik anunciou com as palavras carregas de orgulho. Ela lançou um olhar para Neteyam imbuído de desdém, com um tom quase vitorioso por ter vencido uma batalha contra o rapaz que só acontecia em sua cabeça — Diga, meu filho, com quem você se unirá?

Havia chegado a hora. 

O coração de Aonung acelerou, sua respiração era incapaz de prover ar suficiente aos seus pulmões. Todo seu corpo parecia fraco, sua visão era turva. Todos os rostos a sua frente se cofundiam. Todos, menos um. 

Neteyam encarava o garoto com os mesmos sintomas. Então era isso. Aonung iria escolher uma esposa. De repente, tudo o que tiveram parecia só uma aventura, algo a ser esquecido. De repente, todo silêncio e distância que o Metkayina lhe dera fazia sentido. Ele era só um caso, algo passageiro. Neteyam teve seu coração dominado por ressentimento.

No final, ele jamais o escolheria. 

A voz de Aonung embargou. Ele não conseguia dizer nenhuma palavra. O único nome que ele poderia pronunciar lhe era proibido. Qualquer outro pensamento soava sujo, impuro. Ele não poderia fazer isso com Neteyam, consigo mesmo. 

Ali, de joelhos a frente de todo clã, ele era incapaz de mentir. 

— N... — Ele iniciou tropegamente. Sua mente parecia derreter e cada parte do seu corpo colapsava dentro de si — N-Não escolhi ninguém, ainda — Foi o que sua boca falou. Ele não sabia de onde aquelas palavras haviam saído. Mas cuspi-las havia machucado sua boca, como um ácido amargo.

Ronal olhou para o marido furiosa e ia começar a falar algo, mas Tonowari foi mais rápido e sua voz soou mais alto.

— O garoto ainda tem muito tempo pela frente. Ele é jovem e não precisa escolher agora — Era isto. A mulher não poderia ir contra a palavra do Olo'eyktan. Estava decidido, Aonung não uniria o seu espírito ao de ninguém aquela noite. Aquele peso em seus ombros não o esmagaria naquele momento.

Perdido no seu Azul│Aonung X Neteyam │Tahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon