1x19 - A Curva Impossível (Parte I)

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- Se acalma, meu filho. - disse Dona Benta, afagando-lhe o rosto. - O que importa é que vocês tão aqui agora. Eu vou descer pra preparar um banho pra você, pra gente te tirar dessas roupas imundas e pôr gase nesses machucados. Fica de olho na Lucinha, tá bom?

Pedrinho acenou um sim com a cabeça, sem desgrudar os olhos de Narizinho. Ao que Dona Benta os deixou, Pedrinho chegou mais perto da cama. Sua vontade era de deitar ao lado dela, abraçá-la, protegê-la, mas sabia que não poderia fazer isso sem emporcalhar a ela e aos lençóis de Dona Benta com lama e sangue. A visão de Narizinho tão fragilizada, jazendo pálida e lívida como uma doente, sem que ele nada pudesse fazer para ajudá-la, lhe partia o coração.

Pensando bem, aquela era a pior dor de todas.

Ao menos, Narizinho parecia estar se recuperando. A tosse e a tremedeira perdiam força, e estava respirando melhor. Pedrinho não queria nem imaginar o que poderia ter acontecido se não tivesse regressado do rio exatamente naquela hora. Causava-lhe um arrepio a ideia de Narizinho estatelada no chão, completamente sozinha, golfando e sufocando como se estivesse... como se estivesse...

Um pensamento terrível cruzou a mente de Pedrinho.

Um instante depois, Narizinho estava sobre ele.

A investida fora tão repentina que Pedrinho ficou sem reação. Narizinho simplesmente pulou em sua direção, como se tivesse levado um choque, e agarrou-se à dobra de sua camiseta suja. Havia algo de muito errado no rosto da menina. Os olhos estavam arregalados e suplicantes, a boca aberta tentava dizer alguma coisa, mas só emitia um ruído gutural.

As pequeninas mãos continuavam a pressionar a roupa de Pedrinho, mas era mais do que isso. Pareciam tentar esmagar o tecido, esmiuçá-lo, rasgá-lo com as pontas dos dedos. Narizinho aproximou o rosto da cintura de Pedrinho, fungando como um animal que fareja algo no ar. Então, súbito como havia despertado, deitou-se e fechou os olhos outra vez.

Ainda chocado, Pedrinho levou as mãos para dentro da camiseta, deparando-se com algo que por pouco não esquecera que estava ali. A folha quase se desmanchara por conta de sua queda nas águas do rio, mas parte de seu conteúdo ainda estava legível.



"Ela é de verdade. Ela diz que quer ser minha amiga para sempre. Eu também quero."



Pedrinho esmigalhou entre os dedos o que restava da página. Algo lhe dizia que Dona Benta não iria querer mais aquilo.

- Pedrinho, vem que a água já tá quente! - gritou a senhorinha, lá de baixo.

O banheiro principal da Casa Grande até possuía um chuveiro moderno, mas como não havia rede elétrica passando pelo sítio, a boa e velha combinação de balde com água quente e uma vasilha era ideal para manhãs mais frias como aquela. O toque ardente na ferida aberta em suas costas causou-lhe certo incômodo, ainda assim, Pedrinho não teve pressa. Apenas deixou que a água escorresse demoradamente da testa aos calcanhares, limpando seu corpo de toda aquela lama e sangue.

Os olhos fechados não lhe permitiram ver o pequeno vulto passando pela porta do banheiro.

Terminado o banho, Pedrinho, vestindo apenas uma bermuda dada por Dona Benta, sentou-se à sala para que fosse tratado de seu ferimento. O unguento que ela aplicou em suas costas era ardido e tinha um forte cheiro de álcool. Contudo, uma vez que Dona Benta começou a cobri-lo com gaze, a ardência foi pouco a pouco dando lugar a uma agradável sensação de formigamento.

- Agora a gente já pode ir embora, Dona Benta. - disse Pedrinho, temeroso. - A gente precisa ir, antes que fique escuro. Eu não vi nenhum peão trabalhando hoje. Acho que todos eles tão lá com a Tia'Nastácia.

- Nós vamos embora, Pedrinho. - afirmou Dona Benta. - Hoje ainda, assim que a Lúcia tiver condições de subir na carroça. Vamos subir e ir voando pra Montes Calmos, só nós três. Vamos contar pra todo mundo o que aconteceu.

- Mas o Barnabé tentou fazer isso...

- Dessa vez a Emília não tá aqui. O poder que a Anastácia tinha sobre essa casa não existe mais, graças a você. Dessa vez, eles vão me escutar. E o que aconteceu com o pobre do Barnabé não vai ficar impune.

Foi preciso que Pedrinho estivesse livre das dores que lhe afligiam o corpo. Foi preciso que estivesse em paz. Foi preciso o breve instante que seguiu as palavras de Dona Benta, para que Pedrinho escutasse, em meio àquele silêncio ensurdecedor, a ausência da voz de seu amigo.

Barnabé estava morto.

O choro irrompeu de uma só vez pelos olhos exaustos do menino. Aos soluços, Pedrinho apenas se deixou envolver pelo abraço apertado de Dona Benta, extravasando contra os ombros da senhorinha todo o pranto contido das últimas horas. Barnabé se fora, para sempre, e por mais que quisesse não podia deixar de se sentir culpado por isso.

- Chora, meu filho, pode chorar... - acalentava-o Dona Benta. - Vai ficar tudo bem, eu prometo.

Pedrinho não saberia dizer quantos minutos passou chorando no colo de Dona Benta, mas foram muitos. Já não tinha mais lágrimas para chorar quando ela afastou-o delicadamente e, fitando seus olhos inchados, perguntou:

- Pronto, tá se sentindo melhor?

Pedrinho balançou a cabeça. Sentia-se verdadeiramente aliviado.

- Que bom. Agora vou preparar uma comidinha pra você e pra Lucinha, que já passou da hora. Nem café da manhã tomaram!

- Eu vou ficar lá em cima com a Narizinho.

- Boa ideia. Assim que ela acordar, me avisa, tá bom?

- Tá bom.

Dona Benta beijou-lhe a testa e dirigiu-se a cozinha. Pedrinho respirou fundo, vestiu a camiseta que ela trouxera (estava quentinha e perfumada como se tivesse acabado de sair do varal) e seguiu até a escada.

Ao pôr o primeiro pé no degrau, contudo, estacou.

O SítioWhere stories live. Discover now