A biblioteca das Almas

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Mais vãos de escada e mais uma porta falsa. Poxa vida, daria trabalho encontrar seu livro naquele lugar, ela precisaria de ajuda, toda hora encontrava uma porta que não levava a lugar algum. Voltou e procurou por Capitu, chamou a moça e fez uma oferta a ela. 

— Ei, moça, eu conheço essa sua história, haverá um tempo que todos os brasileiros também vão conhecer. Enquanto estive morta minha alma viu trechos tanto do passado quanto do futuro e essas memórias estavam em todos módulos temporais.

Capitu perguntou se os brasileiros estavam cientes da inocência dela. Agatha respondeu que infelizmente nosso país era e continuaria a ser predominantemente machista e as pessoas preferiam acreditar nas conjecturas e alucinações de Bentinho a enxergar os fatos e ver que Capitu não o traiu e nunca mereceu essa fama. O livro não deixava explícita a traição e nem a falta dela, mas as alucinações do personagem eram muito vívidas e foram as que marcaram o imaginário popular.

A moça ficou triste, então Agatha propôs a ela uma aliança. 

— Se você me ajudar a achar o meu livro das sombras, poderei fazer um feitiço e jogá-lo nas linhas do tempo. Esse feitiço será para que a inspiração de escrever chegue até alguns autores que exponham a sua versão dos fatos, não posso prometer que ele tenha tanto sucesso quanto as memórias de Bentinho, mas garanto que haverá inúmeras publicações.

A moça pensou e se decidiu, mal não havia, ela iria ajudar. Perguntou quem era o chato que não parava de declamar poemas e flertes idiotas e a bruxa então se deu conta de que não havia perguntado o nome do rapaz. Ele disse se chamar Augusto, afirmou que era um escravo das damas e as ajudaria.

A bruxa indagou se haviam mais almas pela biblioteca e não obteve resposta, o que era estranho já que Augusto não cansava de declamar poesia e Capitu de praguejar. O silêncio diante de uma pergunta tão básica a deixou alarmada.

Um estampido eclodiu, seguido de farfalhar de folhas, vento e escuridão, badaladas de meia noite no relógio e num segundo os espíritos que acompanhavam Aggy desapareceram e deram lugar a uma criatura. Vestido em sua bata, com olhar bondoso que escondia severidade, apareceu ninguém mais, ninguém menos do que o padre jesuíta José de Anchieta, carregando consigo seu livro, seu orgulho; a primeira gramática da língua portuguesa.

Agatha ficou sem reação. Que diabos um padre estava fazendo em uma biblioteca e segurando um livro diferente dos livros religiosos... Aliás, por que um padre andava desencarnado na terra, não pertencia a eles o paraíso?

“ — Ah, mocinha, vejo que você fugiu de sua obra. Onde está catalogada? Eu me chamo Padre Anchieta e sou considerado o primeiro escritor de uma gramática brasileira. Apesar de não ser brasileiro e achar a língua tupi igualmente interessante, mas enfim, sou eu o curador das almas dessa biblioteca e temos regras rígidas aqui.”

— Se eu não cumprir com suas regras, o que acontecerá comigo? 

Surge entre vigas o enamorado, e alerta a mocinha:

— Acontecerá o pior destino, mi amore. Seu livro será queimado e sua personagem para sempre esquecida, faça tudo que o padre ordenar, ele é o chefe aqui.

Ela pensou e rapidamente chegou à conclusão de que poderia se beneficiar naquela situação. Contou ao padre o ano, modelo e a cor de seu livro e pediu ajuda para chegar até ele. O padre assentiu, antes fez uma oração e baniu o espírito do enamorado, o aprisionou sentado na carteira de estudos por 150 anos. O motivo: ter saído do livro, da parte de autor, e ficado perambulando entre os personagens atrás de novas musas. As musas ali já tinham dono e ele já havia sido advertido sobre isso.

Agatha teve pena de Augusto, mas ela já sabia como os padres eram; almas duras, com pouco sentimento e muita ação. Aquele nem era um dos piores padres, ele catequizava índios com carisma e foi o fundador de uma cidadela. Acho que São Paulo era o nome da vila, ou coisa assim.

Caminhou e logo chegou à sala Tereza Cristina, não conteve sua emoção ao ver o seu livro das sombras, o padre ficou lívido (se e que um espírito fica pálido) e logo percebeu que estava diante de uma bruxa genuína. Ela percebeu o susto do pobre espírito, e disse que não o faria mal, apenas o deixaria repousando junto de seu livro, um delicioso livro/castigo por sinal. Ficaria preso na primeira gramática da língua portuguesa, por 150 anos, realmente era uma ironia. 

Não havia um castigo pior do que esse, pensou. O padre foi para dentro de sua obra, e lá permaneceu descansando por 150 anos, tempo suficiente para seu espírito espiar e encontrar o caminho dos céus.

A bruxa, já de posse de seu livro, descobriu que estava presa ao espaço da biblioteca, conseguiu banir todos os padres escritores e torturadores das almas da biblioteca para dentro de suas obras. Conseguiu deixar isoladas algumas obras chatas, como cartas e poemas portugueses em salas específicas e liberou as demais almas de personagens e autores na biblioteca. No primeiro século foi uma confusão entre autor e personagem, Agatha tornou-se a senhoria daquelas almas, no lugar do padre. Quem diria que ela estava libertando a alma do padre para o céu e assumindo o seu lugar de responsabilidade na biblioteca.

A partir da abertura do livro das sombras de Agatha em todos equinócios e solstícios, que ocorrem quatro vezes no ano, a Biblioteca Nacional se torna a biblioteca das almas e os personagens brindam, brincam e choram seus destinos nos caminhos da literatura do país.

Passados mais de 200 anos, Agatha ainda estava lá, gerenciando a biblioteca à noite. Amava aquele pós vida entre livros, casou-se com o enamorado — Capitu foi madrinha do casamento—, ela ficava de olho naqueles dois por precaução. Machado de Assis não perambulava pela biblioteca, acreditasse que sua alma tenha ido direto para o céu pelo que fez em nome da literatura nacional, quanto a madrinha de casamento e Augusto não custava vigiar.

Nenhum humano que ousou entrar na biblioteca das almas após as dezoito horas no solstício ou equinócio foi visto vivo novamente, com exceção do segurança noturno, que preferia vigiar a biblioteca através das câmeras a perambular por seus corredores e andares gélidos. Os espíritos aceitavam a presença daquele humano que cuidava da biblioteca. Quanto a humanos maliciosos que tentassem roubar ou destruir livros… ah, quanto a esses os espíritos podiam ser traiçoeiros e malditos, aqueles que gostavam de uma boa diversão.

Encontros SobrenaturaisWhere stories live. Discover now