O livro das Sombras

78 15 76
                                    

Bibliotecas são guardiãs de segredos. Segredos humanos, segredos sobrenaturais, segredos de quem escreve, de quem lê, de quem vai à biblioteca com interesses diferentes da leitura. A biblioteca nacional não fugiria dessa premissa; ela guarda segredos. Em suas muitas salas singulares eles permanecem lá, trancados, escondidos, vigiados.

Todo equinócio e solstício, alguns personagens ganham vida e passeiam pela luxuosa biblioteca, se encontrando pelos corredores e salas. Esbarram no vigia noturno, esse coitado, toda hora sente um arrepio, um calafrio e não sabe explicar o motivo. Por sorte não é sensitivo, senão ele poderia ver e de quebra seria obrigado a ouvir a lamúria dos personagens. Sabemos que a literatura brasileira até o século XXI não era muito feliz, pelo contrário. Era extremamente realista e dura, inclusive os românticos tinham finais infelizes. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que o diga.

Era o ano de 1905, muitos livros perdidos e empilhados em catacumbas, até que alguém resolveu fazer algo a respeito. Não se admira que fosse uma mulher. A esposa do presidente Floriano Peixoto insistiu tanto para que o marido construísse a tal biblioteca que ele o fez para agradá-la. Em tempo recorde, tendo em vista a grandiosidade da obra e o momento político social da nova república, ele provou o quanto amava a esposa.

Em nossa bandeira há os dizeres "ordem e progresso" e comecemos com a ordem: um governo militar assumia o governo da república e o progresso viria através do conhecimento, estudos e livros. Havia milhares de livros empilhados entre os mortos, até que a primeira dama teve a ideia de erguer um templo a eles e mostrar ao mundo o quanto nosso país é majestoso.

A Biblioteca Nacional foi erguida e em 1910 já estava em funcionamento. O que os administradores não sabiam é que junto dos livros há tanto tempo enterrados em catacumbas, havia um das sombras. Um grimório que exalava poder, a bruxa dona dele havia atrelado a própria alma ao calhamaço, com o intuito de retornar à vida e vingar-se de quem a perseguiu e matou.

Houveram no Brasil Colonial julgamentos de bruxas; a igreja amaldiçoou e queimou muitas dessas mulheres. Aquela em especial, por ser de família de comerciantes abastados, teve a concessão de um enterro. Em vala comum, mas ainda um enterro e melhor do que deixar os restos mortais se decompondo em praça pública.

Agatha detestava a igreja, a hipocrisia, o machismo e a crueldade disfarçados de caridade e usando o santo nome de Jesus Cristo, um profeta respeitado por diversas religiões, inclusive a das bruxas.

O grimório tinha data, hora e condições para despertar. Deveria despertar no equinócio da primavera, no alvorecer da noite e estando em local protegido de olhos curiosos e desmandos da igreja. A Biblioteca Nacional satisfazia todas as exigências, o progresso da época, afastou o senhorio daqueles livros da igreja e o colocou na mão de intelectuais pelo menos no plano dos vivos.

No equinócio, às 18 horas em ponto do dia 21 de setembro de 1911, o livro das sombras despertou. Um vento gélido percorreu toda biblioteca, portas e vitrais começaram a bater, um som fantasmagórico enchia o interior do lugar. A lua cheia se escondia atrás de nuvens cumulus no céu e a claraboia da biblioteca não conseguia iluminar o ambiente. Estava escuro e ventando um frio de doer as espinhas quando começaram os sons de passos na escada. Ela mal ressurgiu e já estava agitada, subia os andares do local, corria daqui para ali, estava incomodada com a grandiosidade do local e sua imensa solidão. Não entendia ao certo onde estava e quais as circunstâncias criaram um local tão esplêndido na colônia.

Quando viva, Agatha não conheceu aquele prédio, porém sentia que estava no Rio de Janeiro pelo cheiro. Sim, a cidade tinha um cheiro característico da falta de saneamento básico e excesso de famílias na capital. Ela não via nenhuma outra alma ou espírito, mas acreditava que não estava sozinha. Subiu correndo as escadas, tudo era majestoso e quieto, sem nenhuma presença, nem mesmo a humana.

Passou em frente às portas de vidro e viu um homem sentado em uma mesa de madeira, (essas mesinhas de estudos), escrevia algo concentrado. O homem olhou para ela de relance e sumiu, então ela sentiu uma mão acariciar seus cabelos e, assustada, o viu da mesa já ao seu lado, dizendo:

- O que fazes aqui, bela senhora? Procuras companhia para a noite?

Irritada, Agatha logo tratou de afastar o espírito daquele homem de si, ela percebeu que estava em uma biblioteca e aquele certamente era o espírito de um poeta ou patético romântico, daqueles que deixam de comer para adoecer e morrer de amores. Agatha não tinha tempo para isso, precisava encontrar o seu livro, colocar em prática sua vingança e depois quem sabe descansar em paz.

O espírito do homem era insistente, seguiu-a por todos os quatro andares, fazendo poesias, declarando seu amor. Ela estava possessa quando viu uma linda mulher encostada em uma estante que xingava e dizia:

- Aquele insuportável Dom Casmurro, um marido calculista e com baixa estima, ele dizia que me amava, mas me tratava friamente. Eu não o traí, ele traiu a si próprio e tirou de si a chance de ser feliz. Também destruiu a minha vida e trouxe prejuízos até mesmo para o nosso filho, levou-nos para Europa mas nunca mais esteve presente.

Agatha conhecia aquela história, mesmo morta pouco antes da publicação, ela havia visto os rascunhos de Machado de Assis na venda de sua família, a história de vida do autor e dos personagens se entrelaçam, isso ela sabia; aquela que tanto se revoltava só poderia ser Capitolina. A mulher esbravejava e nem sequer percebeu a presença da bruxa e do enamorado poeta que a seguia.

Encontros SobrenaturaisOnde as histórias ganham vida. Descobre agora