Guarda-chuva

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Quando precipita o céu, o guarda-chuva exerce sua função de menor importância. As gotas de água não são tão importantes quanto as gotas de céu. Um guarda-chuva guarda quem o carrega; serve de arma no momento oportuno; de apoio para o manco ou o coitado que dobrou-se sobre si e precisa de um apoio para não pender para frente. Todas essas atribuições são dadas ao Guarda-chuva, mas a melhor de todas é o seu caráter preventivo: Um guarda-chuva é um objeto que contrai o paradoxo da dúvida e da certeza em um mesmo ponto central, o ponto de encontro entre todas as hastes de ferro que sustentam o tecido impermeável é o mesmo encontro de hastes de ferro que sustentam o "chove" ou " não chove".

A dúvida faz parte da vida, fazer escolhas é a única maneira de seguir em frente quando enfrentamos bifurcações. A dúvida que o guarda-chuva carrega é antes de tudo a certeza que o clima é mutável, mas e as outras questões que nos empregam dúvida, também possuem certezas? Sim, a dúvida é a certeza de que é preciso escolher algo para renunciar e algo para abraçar. Quando não escolhemos, também cometemos uma escolha, esta é de parar em meio ao caminho e, quanto mais demoramos para escolher, mais nossa estagnação tende a ser uma realidade. O guarda-chuva agarra a realidade da mutabilidade ao mesmo tempo que pode carregar o fardo de ser um fardo em um dia de sol.

Escolher carregar o guarda-chuva em primeiro momento parece algo simples, afinal basta olhar a previsão ou, como indica a sabedoria milenar da espécie, olhar o céu e quantificar os rastros de nuvens presentes. A intuição é parte da escolha quando não temos dados concretos acessíveis para a razão. Escolher sempre é algo difícil, pois escolher sempre depende de uma condição futura, ou melhor, a negação de condições futuras. Quando dizemos 'sim', distribuímos 'nãos' em infinidade para diversas outras opções, isso basta para compreendermos que, apesar de fugirmos das escolhas, elas devem ser tomadas. O motivo é que a abstenção é a escolha que nos coloca numa mesa mais numerosa de incertezas, as incertezas multiplicam as angústias. Ou seja, o momento presente em que escolhemos é o momento onde as angústias se multiplicam, como aponta Marco Aurélio " Lembra-te de que não é o peso do futuro, ou o do passado que te estão a pressionar, mas sempre e só o do presente. Mesmo este fardo pode ser atenuado se o confiares aos seus próprios limites e fores bastante severo com a incapacidade do teu espírito para suportar uma tal banalidade." Pois bem, não escolher é a escolha  que sempre aumenta a angústia presente. Por essa razão, os ditos 'indecisos' são os que mais sofrem, juntamente com aqueles que carecem da decisão de outrem para tomar uma ação devida.

Aqueles que, por acaso ou infelicidade anterior, carecem das escolhas de outros e não de suas próprias escolhas vivem num panteão de fatalismo. Claro que, na maioria das relações que empregam poder, não tomar as decisões é uma posição até vantajosa, mas a mesma felicidade não é encontrada em cumprir com decisões equivocadas de superiores. Quisera Deus que as questões fossem tão simples quanto levar ou não o guarda-chuva.

Como dito desde o princípio, o guarda-chuva também possui inúmeras outras funcionalidades. Assim, ao tomarmos uma decisão, embora a quantidade de 'nãos' seja infinita, nós temos a certeza de contar com um recorte tangível de possibilidades e de realidades. Assim, fazer uma escolha errada não é o fim do mundo, mas é o fim de um mundo possível. A angústia sempre é gerada no presente, quando o céu desprende seus pedaços não há solução! Quer estejamos com o guarda-chuva ou não, o vendaval da realidade lançará seu zunido: Tivemos a oportunidade da dúvida e com ela a oportunidade de escolha, se escolhemos de modo certo, errado, abdicamos da escolha, ou fomos reféns de outro que tomou as rédeas, nada mais podemos realizar além de contemplar a criação do orvalho na ponta de nossos narizes.

O momento oportuno para a avaliar uma escolha dar-se então pelo tempo entre a dúvida e o primeiro passo dado ao sairmos de casa. Quando saímos de nós mesmos com as impressões recebidas; as soluções dadas pelo intelecto; as avaliações do que era racionalmente possível; do que era ideal; do que era lícito; do que não havia restrições; do que era utópico e do que era sonho, passamos a respeitar a natureza do 'sim' que é 'sim' e do 'não' que é 'não'. A mão quando posta no arado não aceita olhos que se voltam para trás, logo, esse caminho curto entre olhar os céus e optar por carregar ou não o guarda-chuva exige a mesma seriedade quanto a decisão de puxar ou não o gatilho. É necessário tomar parte com velocidade e com exatidão, mas isso só é possível ao tomarmos consciência, em primeiro lugar, que precisamos tomar parte, precisamos tomar decisões dentre o que nos é oferecido.

O maior fardo da escolha sempre recai sobre aquele que é dependente imediato. Pois bem, quando sofremos com a incerteza de outrem esse peso é redobrado. O sujeito que não toma a decisão sofre no momento presente, aquele que aguarda a decisão sofre no momento presente e futuro, enquanto amargura o motivo de ter no passado se sujeitado a essa situação. Assim, quando formos sair pelas ruas, devemos tomar nosso próprio guarda-chuva e não depender que outro o carregue. Afinal, não é todo tempestade que encontramos alguém caridoso que divida o guarda-chuva, mesmo que o ritmo e o destino sejam o mesmo. Costurar decisões pode parecer distribuir pontos finais aos bocados, mas são esses pontos que seguram os tratos assinados por nossas consciências e os trapos secos no dia de chuva.

AURÉLIO, Marco. "Meditações" Livro VIII
LC IX

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