Multidão

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Em sua crítica, Erasmo de Roterdã afirmava que o termo 'monge' estava errado, dado que encontrávamos muitos deles, em sua época, por toda parte, assim não havia um 'mono'- ou seja, uma solidão verdadeira. Esta sátira nunca havia tomado tanto gosto quanto agora, estamos vivendo o ápice do monaquismo irreligioso. O ser humano nunca esteve tão conectado com tantos outros e, ao mesmo tempo, tão solitário em sua cela.

Nossas relações interpessoais tornaram-se tão sistêmicas e preguiçosas que ao raiar da menor necessidade de esforço, desistimos do encontro com o próximo. O descarte é a representação unânime do, cada dia mais desumano, homem contemporâneo. A facilidade em desfazer nossas amizades nas redes sociais é a mesma facilidade com que transportamos a pior parte da matéria morta da tecnologia para a nossa vida real. Telas frias, homens frios e relações artificiais- ao término das completas essa multidão de pseudomonges retira-se do coro do monastério chamado 'cidade', diretamente para a solidão vazia de seus quartos. Neste momento, uma doença coletiva toma conta dos egocêntricos, dessa multidão de solitários- a realidade do não amor.

"Ó demência de quem não sabe amar", cita Agostinho. Ó homem que sofre sem medidas pelo que, um dia, já foi humano. Há uma voz que rasteja nesse panteão de deuses encontrados em toda a parte- o ideal de auto suficiência, auto satisfação, auto domínio, onipotência, presunção e, sobretudo, desespero. Nós somos hoje uma multidão de desesperados em busca da própria satisfação, mas ninguém busca sacrificar-se por ninguém; ninguém sabe abster-se de si. Nossas almas deitam na cama ansiando por um verdadeiro amor, mas nosso corpo levanta-se com o ideal de 'vitória' não importa o quanto isto cause outrem dor. 

Aqui está nossa ruína, nosso claustro é abençoado por um ininterrupto turbilhão de vazio. Nada, nada dizemos. Uma multidão de homens solitários e sem resposta, pois procuramos respostas apenas no nada que habita em nós; um nada que é alimentado cotidianamente. Só há obediência, e essa é prestada,  ao seu próprio deus, sem tibieza nem murmúrio corremos em direção ao nada, mas negamos aqueles a quem temos o dever de amar, solidão ridícula que só visa ser alimentada! Na solidão frutuosa, afirma Lanspérgio "O homem purifica-se e conserva-se puro [...] volta, continuamente, à solidão, ao diálogo interior." Neste projeto moderno de monges sem claustro e ímpios, escondidos atrás de uma persona, um avatar, um pseudônimo, não há purificação e sim danação. 

Somos uma multidão de solitários e queremos curar nossa solidão salmodiando hinos que exaltam nossos umbigos. Infeliz multidão reclusa em sua própria cela, mendigando nas vigílias consolo e distribuindo aos pontapés transtornos.

AGOSTINHO, Santo. "Confissões'' Livro VI item VII.

BAUMAN, Zygmount. "Amor líquido" (Vide)

BENTO, São. Caput. "Da obediência." In. A Regra. 

ERASMO, Caput. "Caput. III" In. Elogio da Loucura.

LANSPÉRGIO, Caput.  "Na paz do santuário. " In. Antologia de autores Cartuxos.

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