Per pétala

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A beleza por vezes parece frágil, e é. A delicadeza é o componente principal das flores; a potência de vida que é dispersada por meio dos esporos, planam o campo até encontrarem a felicidade de cair na estigmas, que além de marcas profundas do tempo, marcam o nascimento do fruto. A beleza sempre está aberta para a vida, por isso o homem tem medo da morte, não se trata apenas de ser um estado desconhecido, mas é um estado de 'não vida'- a morte é horrível pois só há beleza enquanto ainda há vida, a morte assim é o suprassumo da feiura, a putrefação do fruto.

As flores quando desabotoam largam a meninice e chegam ao amadurecimento próprio, estão prontas para gerar vida. A beleza que as acompanha é capaz de destoar a mais profunda fragrância, pois o perfume é um termo exclusivo daquela que busca para si a captura dos insectóides de paladar mais refinado do jardim. De nada adianta o voo das abelhas; o rasante dos besouros; a metamorfose das borboletas e o veludo das mariposas, se não descansarem suas asas nas cores puras das flores. Esse perfume é tão atraente e tão único que é, praticamente, um toque na alma! Capaz de despertar as sensações de paz, consolo e felicidade. Toda flor abranda os nervos, a simplicidade e a compostura são os meios que destroem qualquer joio de amargura. Quem projetou as flores teve o cuidado de acoplar as cores, aromas, formatos e texturas de modo que elas se tornaram portões para o casaréu do sossego.

A fragilidade da pétala é a força da flor. Quantas são as belezas que rompem com a dureza do concreto, em meio ao caos da cidade? Quantas são as flores que rabiscando o solo infértil de certos corações conseguem desenhar um pôr do sol, uma despedida de esperança? Ai de mim! Não compro mais jóias, não compro mais flores! Não desejo mais ser um artista de carne em corações de plástico! Aliviarei o trabalho das flores em romper com seres abstratos de corações de concreto, não participarei do comércio de afetos. A fragilidade da pétala é a força da flor, desde que o orvalho venha visitá-la pela manhã ; desde que não seja um orvalho de lágrimas bajuladoras. Façamos o mesmo antes de ceifar as flores do jardim, arranquemos primeiro as sementes, com o objetivo de semear- é melhor um amor enraizado, do que um murcho num vaso.

No entanto, é sabido que as flores também possuem suas defesas. É imprescindível que uma rosa seja paramentada de espinhos, o que é excessivamente belo precisa se defender e tende a causar maior dor; é imprescindível que os homens busquem rosas, não por essa ação ser da natureza do homem, mas exatamente pela rosa não ser.
Atirar-se de modo consciente sobre as rosas é uma tentativa do homem de absorver aquilo que lhe falta. É um ato de amor a sua própria insuficiência. Nós estamos o tempo todo machucando flores, machucando rosas com o desejo de absorver uma beleza transcendente. Até ofendemos as flores comparando-as com amores de esquina, que mais servem para consolidar as quinas da nossa luxúria. Compreendo que é carinhoso tratar por buquê quem é galho seco, mas o esplendor do lírio está em sua robustez, em seu formato saudável que toma uma direção ascendente, que toma a direção do céu. Isto posto, não nos cabe a condição de Adão de nomear todas as flores da terra.

Por fim, a magia que torna as flores transcendentes nada mais é do que a capacidade de despir-se das vestes de dor e transformá-las em vestes nupciais de modo ágil (Es XV). Por cada pétala, pela pétala, a flor é capaz de transferir a dor que mora no quarto escondido,esquina da boca, em um suspiro que flerta com a felicidade plena. Pela pétala escorre a esperança, a crença de que quando as coisas perdem as cores basta adorná-las com coroas de flores. Até quando velamos nossos entes, o paradoxo que abre-se entre a flor e o corpo é o paradoxo que ensina a lei da vida- toda flor murcha ao seu próprio tempo, isso é uma mensagem de esperança! Isso é uma mensagem de alento! Temos tempo de perfumar, colorir e esculpir pelo mundo nossas marcas- até que se talhe o nosso suspiro e pelo abandonar-se nasça o fruto final, o fruto derradeiro de nossa presença.

As flores não são banais, versejar sobre elas talvez seja, mas que somos nós? Que somos diante de uma flor? Que somos diante do prenúncio da vida? As flores são o próprio prefácio do divino, o próprio prefácio do amor. Quem ama alguém e nunca lhe entregou flores- que durma com a consciência limpa! Não há amor sem flores entregues, da mesma forma que não há amado que seu amante não regue. Se amamos verdadeiramente tomamos o papel de flor… Nessa dança de bromélias, só há um problema que magoa as flores, brincar de 'bem me quer'. É preferível ser um botão que nunca desabrochou que sofrer nas mãos de um deflator. Bem me quer? Deixe minhas raízes firmes na terra, ou escolha o melhor vaso para que possa murchar em tua presença. Mal me quer? Pela pétala!

Ensaios e Naufrágios Where stories live. Discover now