A ponte do arco-íris

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A redução de palavras em um simples amontoado de letras é a própria compressão do universo em uma lata. Por muito tempo tínhamos disponíveis as palavras, tínhamos um sentido e um objetivo. Mas hoje, quanto mais caminhamos mais nos afastamos tanto do uso quanto do objetivo final. Por incrível que pareça, o problema não está na palavra, mas sim na 'coisa'. Descartamos toda a parte metafísica das coisas. Nosso exacerbado modo de vida materialista saiu pelas ruas arrancando auréolas de tudo o que via pela frente, de modo que os relâmpagos não nos surpreendem mais; as cores do arco-íris vestiram-se de preto e branco; o cantar dos pássaros tornou-se um fardo maior que as buzinas do engarrafamento; descascamos morangos com nojo do que vem da terra.

A ciência tinha como objetivo explicar os fenômenos naturais, mas não o objetivo de torná-los menos fenomenais. Nós caímos na falácia do cientificismo, que com o objetivo de explicar tudo, abraçou o nada. A simples explicação de como é formada a chuva deveria surpreender a cada um, e não afastar-nos do mistério revelado. A condensação lava a alma e não condena. Banalizamos a complexidade existente no simples fenômeno da chuva, pois bem: agora temos que lidar com a complexidade existencial que nos prende em casa em dias de chuva. Saímos arrancando auréolas das coisas que nos prendiam à sabedoria das crianças, trajados e bem ornados, fizemos um grande abismo entre a razão prática e a sabedoria. Esse abismo que não pode ser atravessado pois roubaram a ponte do arco-íris- o símbolo da esperança que nenhum dilúvio nos arrebatará- e serviram-lo numa travessa de plástico, pois é mais prático servir aos caprichos de nossa mesquinhez e criar símbolos para lutas, do que compreender que o pote de ouro sempre esteve no arco-íris, mas na parte de cima.

Ao arrancar o envoltório da graça que cobria os objetos, nós perdemos a graça que encontrávamos em cada um. Perdemos pois o responsório de nossa salmodia. A força que carregava o nosso dia a dia foi transferida para nossas mãos, nossas mãos falhas, pequenas demais para abraçar o tudo que nos mantém de pé. Aqui está cada um de nós, particularmente, idiotamente, tentando ser o chão que segura o próprio pé. Cometemos o terrível ato de imolar a beleza presente nas coisas até reduzi-las ao simples grau de utilidade. Recortamos o arco-íris do céu com a intenção de comercializar a sua paleta de cores; calculamos quantos anos o nosso sol ainda tem de vida enquanto desperdiçamos a nossa.

A redução do universo em um simples amontoado de latas reflete o quão instantâneo é o nosso grau de reflexão, velocidade essa que retarda o nosso pensamento, afinal, a velocidade com que a meditação é realizada e a sua qualidade são grandezas inversamente proporcionais. Essas são as manchetes que estão estampadas nos jornais: 'João é criticado por especialistas ao derrubar o pé de feijão'. Mas muito poucos estão preocupados com o próprio pé, os especialistas não são especiais e nós não sabemos quem é João. A falta de critério e importância dada às ações e atividades realizadas no dia é consequência da falta de observância ao valor dado a cada objeto, é a ausência da dimensão metafísica que é tapada pelas grossas vendas de desencanto.

Que fazer então para devolver as auréolas das coisas? De fato tal missão é ardosa e tem um cunho utópico, mas há uma solução anterior que deve ser tomada: devemos atacar a mentalidade do desencanto ainda no berço, antes que ela continue atacando nossa meninice. O berço da mentalidade do desencanto encontra-se na ideia de ganho; encontra-se no pensamento de mercado onde todas as ações são voltadas para a produção de riqueza. A vida comum não é o local destinado para a produção de riqueza, além da riqueza na vida eterna que virá. As relações fraternas, paternas, conjugais, profissionais etc. são lugares destinados para a partilha do bem. É a mentalidade do ganho que faz com que as nossas relações sejam reduzidas até a utilidade, se não somos capazes de produzir a esperada riqueza, isto é, a nuvem metafísica que cobre as coisas verdadeiras, necessitamos roubá-las daquelas pessoas e coisas que as detém.

Isto posto, é momento de excluir os exclusores das coisas simples; é momento de desconfiar daqueles que se incomodam com a natureza em seu estado mais básico; é momento de parar o diálogo com aqueles que são sedentos pela morte de outrem em qualquer fase da vida; é momento de amargurar as bocas que têm por profissão a fofoca; filtrar os especialistas que não são especiais em nada; destronar os catedráticos que não limpam sequer o pó de suas cátedras. Em resumo, para salvar o que há de são no mundo é preciso catalogar tudo o que temos de comum, prender nossos olhos e manter ativo os sentinelas com o fim de velarem pelo pouco que ainda nos resta de sagrado. Nós não podemos de forma alguma olhar o arco-íris sem compreender o céu. Não podemos mais leiloar nossa paleta de vida, paleta de cores.

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