Any

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Eu estou tão nervosa que minha mão treme enquanto segura o secador de cabelos. Encaro minha imagem no imenso espelho, que toma toda a extensão da parede do banheiro luxuoso.

Concluo que o resultado está bom e desligo o aparelho, deixando-o sobre a bancada de mármore.

Aproveitei cada segundo do banho relaxante, utilizando para minha higiene todos os  produtos que tinha à disposição. Ao final, meus dentes estão limpos e minha pele, hidratada.

Fico feliz em saber que poderei oferecer o melhor de mim ao homem que me espera em algum canto dessa cobertura incrível.

Ainda não consegui processar direito tudo o que aconteceu na minha vida nas últimas horas.

Após quatro dias de desespero, sendo abusada sucessivamente por aquele bando de marginais nojentos, eu não nutria mais esperanças de ser libertada com vida daquele cárcere angustiante.

Quando meus algozes finalmente ficaram bêbados o suficiente para não conseguirem mais usufruir do meu corpo, aproveitei a brecha para tentar fugir, mas não tive sucesso. Descobri da pior maneira possível que a combinação marginais bêbados com armas de fogo pode ser altamente perigosa. Por intervenção divina, ao invés de levar um tiro certeiro, fui golpeada violentamente com a arma. A sensação foi horrível, mas ainda assim agradeço por não ter ocorrido o pior.

Passo a mão na nuca, onde existe um pequeno galo que começa a desaparecer. Estremeço ao recordar a coronhada violenta que recebi do chefe do bando, que em seguida rasgou meu casaco e me jogou de volta ao quarto deplorável e fedendo a mofo. Eu já apanhei antes; infelizmente, na minha profissão, é normal me deparar com homens violentos, que acreditam que podem me tratar da pior forma possível por me enxergarem como uma mercadoria qualquer pela qual estão pagando para utilizar. Mas nunca antes tinha sentido um medo real de morrer, como o que tive ao voltar ao quarto em que aqueles marginais me mantinha mencarcerada há dias.

O pior era pensar que ninguém, absolutamente ninguém sentiria minha falta. Como confessei a meu improvável salvador, minha mãe faleceu em meus braços quando eu ainda era uma criança, vítima de overdose. Não cheguei a conhecer meu pai. Sozinha no mundo, fui encaminhada a um orfanato, de onde, após sofrer inúmeros abusos do padre administrador, decidi fugir.

Espiando atrás das portas, descobri a senha e assaltei o cofre da administração do orfanato.

Como tinha apenas treze anos, utilizei o dinheiro para convencer uma senhora bondosa a me comprar uma passagem e peguei o primeiro ônibus em direção a Nova York. Apesar da pouca idade, eu já tinha corpo e formas de mulher.

Eu estava perdida e não tinha para onde ir. Passei o primeiro dia entrando em lanchonetes e estabelecimentos comerciais, implorando por uma oportunidade de emprego que jamais me foi dada. Na primeira noite, fui abordada por um cafetão cuja aparência não negava a profissão: negro, alto, usando uma camisa roxa de botões combinando com uma calça xadrez amarela, tinha uma cicatriz no lado esquerdo do rosto que começava na testa, passava pela bochecha, pelo canto dos lábios e acabava na base do pescoço. Os dentes da frente eram ornados com ouro. Recusei sua proposta de imediato, recebendo de volta uma praga digna de livros de bruxaria e um cartão de visitas tão chamativo quanto a quem representava.

Se no primeiro dia eu não conseguira emprego, as coisas apenas pioraram no segundo.

Assustada, com fome e imunda, minhas chances – que já não eram boas – se reduziram ainda mais. Na segunda noite em que eu dormiria ao relento, uma tempestade de neve assolou aquela cidade estranha e gigantesca. Eu não tinha roupas grossas o suficiente para suportar o tempo gélido, e estava simplesmente faminta. Sentindo que poderia não resistir caso me agarrasse ao meu orgulho, verifiquei o endereço no cartão de visitas espalhafatoso, esquecido no bolso detrás dos jeans surrados.

Ao me ver, o cafetão abriu um dourado sorriso debochado e, após me servir um prato de sopa rala, me colocou para trabalhar na mesma noite. Foi assim que entrei nessa vida que, apesar de muitos chamarem de "fácil", nunca se revelou assim para mim.

Até esse exato momento.

Eu não sou tola, muito menos acredito em conto de fadas. Sete anos se passaram desde aquela época e, apesar de eu adorar o clássico Uma Linda Mulher, a vasta experiência que o destino me proporcionou desde então não me permite acreditar em finais felizes. Eu não tenho a menor esperança de um dia me deparar com minha alma gêmea em um de meus programas.

Na verdade, sequer acredito que essa baboseira de alma gêmea exista. Mas, ainda que sem nenhuma pretensão ilusória, a verdade é que esse é um dos momentos mais especiais da minha vida. Fui salva por um homem cujo instinto primitivo, posso jurar, ordenava que me matasse.

Um homem nitidamente poderoso e perigoso. E, por Deus, que homem maravilhoso!

De longe é o homem mais lindo e viril que já vi na vida. Muito alto – deve alcançar a casados dois metros – e forte, muito forte. Parece um jogador de futebol americano, mas com a elegância – e, pelo visto, poupança – de um nobre aristocrata. Os olhos azuis, transparentes como bolas de gude, completam o visual, cuja combinação é um misto de veneno e mel. Doce e tentador, porém mortal.

Pisco algumas vezes, voltando à realidade e espantando as lembranças dolorosas que não me levarão a lugar algum. Aperto a faixa do roupão felpudo, saio do banheiro e caminho até as diversas sacolas que contém meus mais recentes pertences. Pego uma nécessaire contendo as maquiagens escolhidas pela Sra. Palmer – quando perguntei à mulher que me auxiliava como se chamava, obtive como resposta apenas o sobrenome – e retorno ao banheiro.

Uma coisa que sei fazer com perfeição é me maquiar! Perco alguns minutos utilizando todos os truques que conheço para valorizar meus pontos fortes. O resultado fica mais incrível do que nunca, tendo em vista a ótima qualidade dos produtos. Passo um pouco de perfume – esse, escolhido por mim mesma dentre tantas opções disponíveis na butique –, e sorrio para minha imagem refletida no espelho.

Em seguida, retorno ao quarto e vou até o armário onde pendurei o vestido mais elegante que comprei. Após vesti-lo, analiso a imagem no espelho de moldura rebuscada.

O vestido longo é vermelho, num tom que realça os fios castanhos do meu cabelo e a pele de cor caramelo claro. Tem um decote canoa profundo; as mangas começam na base dos ombros e descem, rendadas, até os pulsos. Completo o visual com sandálias num tom pastel cuja beleza é escondida pela renda existente na borda do vestido, que quase arrasta no chão. Uma fenda longa deixa a perna esquerda parcialmente à mostra quando me movimento. Para fechar com chave de ouro, completo o visual com um par de brincos fantásticos, cravejados de rubis,com os quais devo ser muito cuidadosa: a Sra. Palmer me comunicou que eles são apenas emprestados e que devo devolvê-los, intactos, amanhã.

Fato é que eu carrego em meu corpo mais dinheiro do que já ganhei durante toda a vida.

Suspiro, conferindo mais uma vez minha aparência e me regozijando com o resultado. Meus olhos correm novamente pelo cômodo impressionantemente adornado, absorvendo cada detalhe para guardar na memória. Tudo é tão imponente, tão luxuoso, tão distante da minha realidade e de tudo o que já experimentei na vida que chego a ficar um pouco zonza.

Finalmente pronta e sentindo a ansiedade correr nas veias, vou até a porta do quarto. No chão, próximo à porta, encontro um bilhete dobrado. Nele, meu salvador ordena – seu tom, ainda que na escrita, soa como uma ordem – que eu vá ao terraço quando estiver pronta.

Inspirando profundamente, abro a porta e deixo o quarto, caminhando pelo corredor até o elevador. Posso sentir o rastro de perfume masculino que se dissipa no ar, revelando que Josh Beauchamp passou por aqui alguns momentos atrás.

Já dentro do elevador, torço as mãos nervosamente. Quando as portas douradas se abrem,suspendo a respiração.

ATF- Amuleto✓Where stories live. Discover now