capítulo II

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O sol se instalava sob o terraço e tirava todo o sabor de morte que meus livros receberam enquanto estiveram sob minha estante virada para o chafariz da Regent Park e finalmente me senti tendo um esforço concentrado para me acostumar a nova atmosfera daquele local, que era úmido e um pouco adorável, ainda era difícil entender tudo que tinha acontecido nos últimos dias, o que de fato, foi coisa demais para meu cérebro, e para minhas costas.

Na realidade, eu preciso entender que tudo isso foi o que projetei para minha vida e minhas vivências, mas ainda parece tão dramático entender que você finalmente chegou aonde queria, mas agora que está nessa situação, parece que tudo fica meio paralisado e, em alguma fração de segundo, tudo realmente mudou, tudo aquilo que você projetou durante algum tempo, está acontecendo, dos menores aos maiores detalhes, tudo está realmente se concretizando e parece que vai demorar alguns minutos até sua ficha cair, e a quebra será proporcional, e eu ficava apenas esperando o momento onde levaria essa queda avassaladora que traria algumas dores musculares e socos no rim (que nos compêndios bíblicos, são descritos como uma dor, choque ou ferida emocional muito profunda).

Era meu momento dos sonhos de finalmente organizar meus livros por cor, descobrir os melhores métodos para organizar minha xícaras, ticar todas as listas que eu tinha feito, colocar no disco minhas músicas favoritas e colocar a minha roupa de ficar em casa que simbolizaria que, a partir daquele momento, esse espaço seria minha casa.

Inclusive, não é fácil definir casa, pois ela pode ser qualquer coisa, ela pode ser um cantinho, pode ser uma grande casa, um casebre medíocre, um espaço que você apenas decidiu que daria para morar, mas em que momento a casa deixar de ser casa e se torna de fato um lar? pelos momentos que você vive, pelo tempo de assimilação que você levou pra entender as mudanças, pelo momento onde você olhou para tudo aquilo e pensou, que sim, agora sim, estou me sentindo em casa, estou aconchegada, confortável, e me sentindo em casa.

Sair de Londres foi como sair de casa, desse lugar que eu por ida da vida, tive que chamar de lar, mas nunca me convenci verdadeiramente. Nesse momento, me encaro no espaço super delicado e misterioso em descobrir como eu definiria meu lar, como eu entenderia como um lugar que eu apenas tinha uma intuição que deveria estar, apenas algo que poderia facilmente ser apenas mais um lugar, para se tornar desse lugar que inventei na minha mente, para um lar.

Afinal de contas, era tudo isso que eu precisava no momento. Não sei ao certo que lugar isso tem na vida dos indivíduos da terra, mas quando tinha 11 anos, ganhei de aniversário uma casa de bonecas, com todos os móveis lindos e bonecas com vestidos de ceda, camas pequenininhas com cabeceiras, cristaleiras com mini pratinhos e um aparato muito delicado para aquelas bonecas de plástico sem vidas viverem seus mecanismos limitados, onde seriam controladas por mini humanas com noções de tempo e espaço totalmente limitados e sonhos ingênuos em suas pequenas mentes.

Um dia, percebi que tudo isso era fingimento, e que não existia vida real naqueles pedaços de madeira e algum outro material resistente para crianças agitadas, então, perdi toda minha graça nessas bonequinhas e nos móveis. Passei a deixar todas as bonecas e a mobília de suas casinhas totalmente imóveis e expostas para eu enxergar os pequenos detalhes, para entender que a vida vai muito além de meros detalhes, onde passamos a maior parte da vida tentando tornar tudo perfeito, tentando tornar impecável e intocável para ser modificado pela vivência humana, traumática e complexada, cheia de manias esquisitas e coisinhas que nossas mães nos ensinaram...

Será que elas sabem o efeito que causaram em nossos pequenos cérebros em formação por incutir essas ideias tolas que, por muito tempo, nós sempre carregamos como a única verdade nesse mundo todo?

Minhas ações automáticas guiadas como uma marionete, roteirizada pelos comentários disfarçados de preocupação e tentativa de aprendizados me faziam respirar fundo e entender que agora, as coisas seriam do meu jeito, e que eu poderia até, de fato, entender como seriam as coisas decididas pelo meu jeito! Mal posso esperar para criar complexidades em minha própria mente, de acordo com as coisas que eu acho adequadas sobre minha existência.

É uma questão muito nova, assustadora e divertida, receber cestinhas novas, assimilar as coisas que deixei pra trás, entender como me sinto e estar com meu coração aberto para as novas experiências que eu mesma me trouxe até aqui.

Assim, fica um grande questionamento sobre qual a parte mais fácil e que traz mais felicidade: Declinar do processo penoso de se adaptar as novidades e as vivências, pessoas, e o ar, de um lugar novo, para se manter no conforto da monotonia, comodidade e facilidade que estar no mesmo lugar, nos traz?

Qual preço você paga por estar em um espaço confortável? Ele te traz ócio, te faz lembrar as partes ruins, e você já sabe em que momentos as partes ruins e negativas podem pairar, as fases que podem acontecer, e os altos e baixos para você nem se parecem mais um grande ciclo sem fim, e sim, apenas um filme onde você já viu várias vezes e sabe exatamente o que vai acontecer.

Qual a significância de ter uma grande sala de cinema, que é a sua vida, se você gastará todas as fitas sempre, no mesmo filme, mesmas propagandas, e o mesmo gosto da pipoca murcha? É claro que todas essas vivências tem gostos, mas eles já não te fazem mais efeito como fizeram da primeira vez.

É como um disco maravilhoso, que você realmente amou quando escutou pela primeira vez, foi como uma incrível jornada transcendental, uma viagem sensorial e uma sensação muito alegre e eufórica. Porém, quando você vira novamente o disco, e as músicas acabam, você, fica agradecido por todo o ciclo de ter ouvido todas as faixas, mas ainda sim, você sente de maneira agri-doce que nunca mais terá a sensação da primeira vez, a euforia, os sentimentos e turbilhões de pensamentos no momento com as sintonias e atenção a todos os detalhes.

Qual preço você paga por sentir mil vezes a mesma sensação de primeira vez? o que vale mais; a sensação de conforto cômoda e a previsibilidade? ou o sentimento eufórico de sentir o novo a cada momento, sabendo que está se expondo a sentimentos amplos de frustração ou de imensa satisfação?

eu pensava em tudo isso enquanto desorganizava as caixas de roupas no armário que tinha um cheiro de madeira fresca, e escutava um barulho tremendo de gatos brigando sob o telhado, me fazendo bater a cabeça na prateleira pelo susto, e derrubando as caixas empilhadas que me esforcei em carregar de uma vez só, pois odiava a ideia de dar várias viagens da sala ao quarto.

Mas minha mãe sempre me dizia que trabalho mal feito é trabalho dobrado.

E o trabalho que fizeram naquele telhado de fato foi mal feito, pois agora havia um gato laranja em minha sala de estar, assustado e engraçadinho, cheirando as colchas de cama e os bolinhos na cesta.

Então agora eu teria: um galo na cabeça, um pilha de roupas arrumadas de forma frustrada, um gatinho curioso, e uma grande abertura no meu telhado.

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⏰ Last updated: Nov 28, 2023 ⏰

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