I. quando chega a madrugada

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Eram exatamente dez e quarenta da noite e eu fui arrastado por Melanie até uma "social" na casa de alguma amiga riquinha e mimada do colégio que estudávamos. Melanie diz que na situação em que me encontro eu preciso estar fora de casa e com a mente ocupada, e como ela não sairia do meu quarto e nem pararia de falar se eu não fosse logo nessa merda de festa, eu peguei meu casaco preto, calcei meu velho all star azul e fui com ela.
Essa garota é minha melhor amiga, conheci ela na escola lá pelos nossos 13 anos de idade e desde então nunca mais nos separamos. Era verdadeira essa amizade, e resiste firmemente a tudo o que vem acontecendo ao nosso redor.

– Vai mesmo ficar parado aqui na varanda? – Melanie apareceu atrás de mim.
– Eu não gosto de estar no meio de tanta gente, você sabe Mel, melhor eu ficar aqui mesmo...
– Tudo bem Willy, eu vou estar com as meninas, qualquer coisa me procura na pista! – Ela saiu animada e eu me virei de volta para a vista do mar.

A casa da riquinha ficava na beira do Mar que dividia a pacata Windenburg. Uma brisa fria embalava a noite escura.
E se eu pulasse nessa água agora e sumisse? Talvez nem percebessem... Melanie acharia que eu simplesmente fui embora e só dariam conta que eu desapareci daqui uns 3 ou 5 dias pra não ser tão otimista... Morrer afogado não é uma morte que eu desejaria, a dor e o desespero de não conseguir mais respirar enquanto se tenta ser mais forte que as ondas, eu jamais desejaria. Mas talvez eu precise... A morte resolveria muitos dos meus problemas... Na verdade acho que resolveria todos eles!

– Oi Willy posso ficar aqui? – Charlie chegou e interrompeu meus pensamentos.
– É... Sim, claro que pode...
– Parece que interrompi um grande raciocínio, no que tava pensando?
– Melhor você nem saber...

Charlie estava sempre me encontrando, não importa o cantinho, eu já cheguei a achar que Melanie manda ele me viajar, mas a mesma negou e afirmou que jamais faria isso. Confio nela, então o que esse menino tem eu não sei... Será que é vidente?

– Temos bastante tempo, sou todo a ouvidos! – Hoje ele estava determinado.
– Deixa pra lá, tem cigarro?
– Sabia que ia pedir!

Ele sempre tinha cigarros, e por mais que eu saiba que eles são horríveis e não ajudam em nada na saúde, eu fumava.
A minha pressão abaixa, é esquisito mas é gostoso, te faz sentir leve.

– Vai fazer alguma coisa amanhã Willy?
– Acho que vou ficar em casa mesmo, não queria ter saído nem hoje, amanhã vou compensar essa noite. – dei uma risada sem graça no final só pra não ficar tão pesado.
– A gente nunca mais saiu junto, posso passar lá pra ver um filme contigo? Vou tá atoa e... Eu posso levar uns salgadinhos!
– Tudo bem!
– Eu te mando mensagem amanhã! Licença!

Eu não sei porque aceitei isso... Eu não sei nem o que eu tô fazendo aqui na verdade...
Peguei uma garrafa de vodka que estava na geladeira e sai pelos fundos.
Onze e vinte, não é uma boa hora pra se estar andando pelas ruas dessa cidade. Pequena e perigosa, mas o perigo já não me importa tanto assim.
Segui pelas ruas tomando a garrafa, o cheiro do álcool já invadia minhas narinas e eu já não andava muito bem. Vodka é uma bebida bem forte, e eu sei disso, mas algumas escolhas já não são tão racionais na minha cabeça.

Tudo que passava na minha mente agora era o meu passado. Eu vivi uma das piores infâncias, eu já tinha certeza que não gostava da minha própria mãe desde os 6 anos de idade, um grande visionário do futuro eu diria! Eu sempre soube que gostava de garotos, mas a visão de errado imposta pela nossa querida sociedade me fez reprimir esses sentimentos por longos anos.
Mas a carne sempre domina nossa corpo, eu precisava experimentar. Comecei a sair com garotos, tive minha primeira vez, sim, era tudo isso que eu queria, que eu sempre gostei, até aquele fatídico dia...
Era só uma sexta feira comum, eu cheguei em casa e estava um grande silêncio, o que era impressionante já que minha mãe só esperava eu abrir a porta pra começar a encher minha cabeça com a vida dos outros ou então o quanto eu era imprestável. Eu entendi tarde demais.
Eu fui espancado. Minha mãe descobriu, alguma vizinha idiota que ela tanto falava mau contou pra ela que me viu aos beijos com um garoto. É claro que ela disse ao meu pai. Juntos eles tiveram a brilhante ideia de expulsar um adolescente de 17 anos de casa.
Na época eu achava isso horrível, hoje eu vejo o quanto isso foi libertador. E lá fui eu encarar a vida, uma mão engessada (sim, minha mãe conseguiu quebrar minha mão me espancando), meu notebook e uma mochila com tudo que eu achei necessário e que deu tempo de pegar. Melanie me acolheu até que eu pudesse ter um emprego que pagasse um lugar pra mim.
Hoje tenho um quartinho no subúrbio, bem longe do centro, mas é suficiente pra eu sobreviver. Eu trabalho atendendo pessoas em uma cafeteria.

Mas por que? Por que minha vida tinha que ser assim? Ouvir por longos 18 anos que você é o filho indesejado, que você não presta, ver tudo que você tenta conquistar sendo invalidado... Talvez seja somente falta de amor... Mas aqui dentro se confirmou que as vezes palavras são mais eficientes que armas.
O que eu ganho não é suficiente para meus gastos... Além de tudo que eu passei, fui diagnosticado com cistinose. Não era nem pra eu tá bebendo...

A cistinose é uma doença genética que se caracteriza pelo acúmulo no organismo de um aminoácido chamado cistina. Como a cistina não se dissolve com a água, ela forma cristais que comprometem o funcionamento de diversos órgãos, em especial os rins e os olhos.

No meu caso, eu descobri por conta dos olhos, os colírios e outros remédios são extremamente caros, e o governo só me conseguiu um desconto bem mixuruca depois que cortaram o fornecimento gratuito. Droga de governo!
O pior dessa doença é que a cistina também se acumula em outros órgãos, passando a comprometê-los com o passar do tempo.
Tem noção que daqui a um tempo eu posso nem acordar?! Tem noção que é uma doença que não tem cura e os tratamentos só "prolongam" sua "vida"?!

Eu já tentei acabar com essa droga de vida umas duas vezes desde que descobri isso...
Sempre me salvam, sempre tem alguém pra chegar e impedir meu fim, meu tão precioso fim...

– Quantas horas garoto? – alguém me perguntou enquanto estava desapercebido.
Eu ando de fone sempre, uma fuga da realidade que me ajuda muito...

Quando ia retirar o celular do bolso, o cara de capuz que aparentava ter uns trinta e poucos anos segurou meu braço, ele queria levar meu celular. Uma pessoa normal entregaria certo? Uma pessoa normal... Não eu...
Segurei com força o braço dele e disse que ele só levaria meu celular se me matasse. Ele desferiu um soco no meu rosto.
Não senti. Eu ri.

Eu reagi o empurrando, eu queria mais, queria que ele me batesse, eu não estava sentindo nada, mas eu precisava sentir alguma coisa! Eu precisava de uma dor que substituísse tudo o que eu sinto!
Eu vi mais um soco vindo na direção do meu rosto e então eu desmaiei.

Eu acordei escutando "Pessoa Certa" e sentindo uma puta dor no corpo. Eu estava jogado num beco, meu celular estava com a tela trincada e bom, se eu tô ouvindo a música, meus fones estão aqui. O cara não levou nada e eu ainda acordei ao som de Jotta A.
Terminei de me arrastar até em casa, tava dando duas e trinta e cinco da madrugada. Olhei pela câmera e meu rosto estava com um pelo roxo nos olhos e alguns ematomas, ótimo! Eu teria que dar explicações...

Cheguei em casa fechei a porta atrás de mim e me sentei encostado na mesma. Eu queria chorar mas a única coisa que saiu de mim foi um longo grito de raiva. Eu só queria estar morto.
É claro que surtos assim acabam como cenas de filme, com um cara triste no chuveiro, com a cabeça baixa, deixando que água quente passe pelo pescoço e as costas, descendo até o resto do corpo e o vapor que entra pelas narinas e torna o box uma grande nuvem relaxante. Assim que sai fiz uma compressa gelada para o olho, joguei mertiolate nos ralados e coloquei band-aids em alguns mais expostos e me joguei na cama. Amanhã quando alguém me visse teria muitas explicações pra dar, o que eu odeio claro.

O interessante da pessoa depressiva é essa enorme necessidade de estar sozinho e ao mesmo tempo querer estar acompanhado, ter alguém pra lutar por você, alguém que não desista mesmo sabendo que você desistiria na primeira oportunidade. Eu olhei pra janela e percebi que o céu já estava clareando. Fechei a cortina e na tentativa de dormir, coloquei um asmr de chuva (sim, isso ainda funciona pra mim). Engraçado que isso era uma coisa que eu sempre quis, poder colocar num som stereo um asmr de chuva, eu tinha ganhado esse aparelho de som da Melanie quando consegui a casa e desde que ganhei, só durmo assim. Incrível como pequenas coisas podem mudar completamente um ambiente...

Eu acordei com meu celular apitando mensagens. Eram uma e cinquenta da tarde e as mensagens eram do Charlie e da Melanie.

"Bom dia Willy"
"Espero que tenha dormido bem! Nem te vi saindo da festa!"
"Vou chegar aí por volta das 14h okay?! Tomara que esteja acordado"
"Vou sair de casa agora"
"Já tou quase chegando aí!"

"Oiii migu! Sabia que ia embora e me deixa na festa como sempre... Me manda mensagem quando acordar por favor!"

Ok... Eu sobrevivi a mais um dia...

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midnightWhere stories live. Discover now