One-shot: Blind

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O som da artilharia pesada entoa nas nossas cabeças. O sentimento de medo e ansiedade aumenta e é provocado pelo destino que se aproxima. Tentamos não fazer barulho enquanto nos escondemos debaixo dos escombros que antes faziam parte de uma casa de um herbologista que já não está entre nós. O barulho das armas está cada vez mais alto parece que está ao nosso lado, a ansiedade aumenta e o batimento do meu coração com medo parece ser abafado pela guerra. Quero proteger a minha família. Quero sair. Quero ir para um lugar seguro sem guerras, sem conflitos. O barulho aproxima-se cada vez mais e não parece abrandar.
   E isto é tudo aquilo que me lembro sobre aquele dia aterrador, depois de um soldado tirar a vida da minha família, com um olhar frio e sem emoção. Eu fugi e escondi-me ainda chocada com o banho de sangue que tinha acabado de ver. Durante dias não me movi, não  falei, não comi, nem bebi. Somente revivi as imagens da minha família a deixar-me para trás e dos sorrisos intimidadores dos soldados. Quero vingança. Quero fazer justiça com as minhas próprias mãos. Eram os pensamentos que preenchiam a minha mente.
   Decidi infiltrar-me no campo de batalha, esta era a única oportunidade de me vingar. Cortei os meus longos cabelos e ruivos. Vesti as roupas dos soldados abatidos. Encontrei armas e outros bens essenciais durante o meu percurso, que me ajudaram a sobreviver. Treinei a minha mira. Coloquei a munição na arma. Fechei o meu olho esquerdo. Apontei. Disparei. Fiz isto até que me senti confortável com ela. Estava pronta para o campo de batalha.
   Fui até à estação do comboio. Estava rodeada de soldados tão ou mais novos que eu. Desde que estive lá à espera para embarcar, não falei, não retirei o meu olhar do chão, não podia revelar quem eu era realmente. Passado algum tempo recebemos a ordem para embarcar, finalmente o cheiro de vingança estava próximo.
   Novamente o som da artilharia pesada e entoava na minha cabeça. As lembranças daquele dia aterrador voltaram a atormentar-me. Mas tinha de as pôr de lado. Vingança. Vingança. Era tudo aquilo que precisava. Só aquilo podia acalmar o meu sofrimento.
   Finalmente, depois de milhares de soldados se sentarem no comboio, era a minha vez. Ao meu lado estava um rapaz estranho, era pequeno comparado com os outros parecia que não pertencia ali. Para além dele estava a desenhar num pequeno caderno com uma capa de couro castanha escura. Senti revolta de novo. Como se a guerra fosse digna de ser representada ou apreciada por alguém.
- Desculpa, posso desenhar-te? A luz está a bater no teu rosto de uma forma bela, e as linhas retas da estrutura do comboio criam uma composição...
- Não.
   Como eu tinha pensado ele é um rapaz estranho, sem noção, como pode estar feliz com a situação em que estavamos. Só estarei feliz quando os eliminar. Quando eliminar aqueles que me tiraram a minha felicidade. Olhei novamente para ele. Estava com um olhar triste e confuso, como se nunca tivesse ouvido a palavra não antes.
- Desculpa, devia ter perguntado o teu nome antes.
Ignorei a sua tentativa de me fazer falar. Não tenho tempo para amigos e companheiros. Não é importante para mim.
- Ok, se não me queres dizer o teu nome, também não digo o meu.
Ele sorriu. Não estava interessada.
   Durante a viagem, ele contou a sua história. Onde vivia. Quando começou a desenhar. O porquê de estar ali. Como se sentia em relação à guerra. As suas preocupações. Os seus sonhos. Não o queria ouvir, mas fiquei interessada no que ele tinha a dizer, fazia-me lembrar do tempo em que eu era feliz em que eu... Lágrimas. Senti a minha cara molhada. Não tinha tempo para este tipo de emoções. Olhei para o lado, o rapaz estranho deu-me o seu lenço para limpar as lágrimas e palmadinhas na cabeça e novamente sorriu para mim. Fiquei mais calma. Esqueci todas as minhas preocupações, até a vingança. Não. Tinha de me focar, voltar para o meu objetivo. Entreguei-lhe o lenço e voltei a falar no meu objetivo inicial. Vingar a minha família. Destruir aqueles soldados impiedosos.
   Durante alguns meses lutei. Tal como tinha praticado. Recarreguei a munição na arma. Fechei o meu olho esquerdo. Apontei. Disparei. Mas a revolta não desaparecia. Nada no campo de batalha fazia com que eu me sentisse em paz. Menos aquele rapaz estranho. Desde aquele dia que não me para de seguir. É irritante, mas sinto-me mais calma quando estou com ele. Parece que tudo é insignificante, os meus objetivos não fazem sentido quando estou com ele. A vingança perde o seu significado. Mas não quero esquecer tudo. Perdi muito tempo, não posso voltar atrás agora.
   Duas noites passaram e como planeado, dentro de horas íamos invadir o território inimigo. A última batalha, o fim da minha vingança. Mas o rapaz estranho parece mais nervoso que o normal. Mas não lhe posso perguntar, a minha identidade tem que permanecer secreta. Ninguém pode ouvir a minha voz. Mesmo que a minha vontade de ajudar seja grande, não posso arriscar. Pouco tempo depois, o rapaz agarra a minha mão e guia-me até ao estábulo, onde os cavalos que os batedores usavam estavam. Ele olha para mim com um olhar de quem tinha visto algo que não devia.
-Temos de sair daqui. Tenho de te proteger. Não te posso deixar morrer, também...(ele começou a chorar) És a única pessoa importante que me resta. Mesmo que sinta que às vezes não sei nada sobre ti. Eu sei que por de trás desse silêncio está uma pessoa atenciosa. Não quero perder-te.
   A voz dele ficava cada vez mais baixa a cada palavra que dizia. E as lágrimas, não paravam. Ele agarrou num dos meus braços, colocou a sua cabeça no meu antebraço e não saiu de lá até que parou de chorar. Eu, por outro lado, senti algo estranho, como ele. Não sei o que era, mas não é importante. A curiosidade de saber o porquê de ele derramar lágrimas era maior. Esperei até que ele conseguisse voltar a fala.
- Os generais... Estão a planear usar metade dos nossos soldados como uma forma de distração... E.. E tu fazes parte dos... escolhidos.
   Ele voltou a chorar. Mas eu estava orgulhosa, podia acabar com a minha vingança ali. Se esta missão resultasse a guerra iria acabar. Finalmente. Finalmente podia acabar com todos aqueles que me destruíram, a mim e à minha família. Eu sentia a adrenalina aumentar dentro de mim.
-Vem comigo, vamos fugir. Vamos criar uma quinta, ou... Ou vamos gerir um pequeno restaurante. Podemos construir um novo futuro. Deixar a guerra para trás. Fazer quem nós deixamos para trás felizes. Espera, onde vais??
   Eu corri. Não. Aquelas palavras. Acreditei nelas por um momento. Um futuro feliz. O que é um futuro feliz? Só sei que não o posso obter sem que tenha a minha vingança primeiro. Abandonar a guerra. Que pensamento absurdo.
Quando olhei para trás ele, o rapaz estranho, estava atrás de mim.
-Eu sei que te vais arrepender de ficar aqui, mas não te quero obrigar a ir comigo... O laranjal... Ao pé do rio... Eu vou ficar à tua espera no laranjal, aquele que descobrimos durante um dos nosso treinos. Estarei lá à tua espera. Mesmo que tenha de esperar até que a guerra acabe. Estarei sempre lá.
   De novo aquele sentimento estranho preenche a minha cabeça. E ele montou um cavalo. Aproximou-se de mim. E disse um último adeus. Consegui ver as lágrimas nos olhos dele à medida que olhava para trás enquanto se afastava. Senti um aperto no meu coração.
   O som das sirenes. Estava na hora. Juntei-me aos restantes soldados. Preparei a minha arma. Esperei pelas ordens dos generais atentamente. As sirenes pararam. Um dos generais apontou com um dos seus dedos para a base inimiga. Todos marcharam para o meio do campo de batalha. Explosões. Gritos de dor. Tiros. Sangue. Queria fechar os meus olhos. Queria sair. Queria ir para um lugar seguro. Queria estar com ele. O nosso lado estava a sofrer grandes perdas. O som das sirenes voltou a tocar. Era o sinal. O sinal para todos os soldados voltarem para a base. Foi a primeira a voltar para trás. Não queria estar ali. Ainda queria viver. Queria criar uma quinta. Queria ver um futuro calmo. Será que era isso que a minha família queria ver se ainda estivesse viva? Eu a construir um futuro que me deixa orgulhosa.
   Cheguei à base. Os nossos números estavam reduzidos. E os generais discutiam entre eles.
-...Como foi possível. Com tantos soldados aqui e mesmo assim. Os restantes inimigos escaparam pelo rio. Mas mataram todos aqueles que passaram por eles, que monstros...
   Deixei cair a minha arma. O rapaz estranho estava no laranjal. Será que ele foi... Não, não podia ser verdade. As minhas pernas começaram a correr sozinhas. A minha cara estava coberta de lágrimas. O meu coração batia fortemente com medo. Corri. Corri. Corri, até que chegue. Estava tudo destruído. As plantas no chão foram destruídas pelos cavalos. Os ramos das árvores, latidos pelos soldados. Sangue. O chão estava coberto de sangue. Corri até aquela poça enorme de sangue. O rapaz... estranho estava deitado, encostado a uma laranjeira com uma ferida na barriga. Não me consegui mexer. O medo paralisou-me.
-Desculpa, parece que não vou conseguir fazer aquilo que prometi.
Abracei-o. Não havia nada que pudesse fazer. O corpo dele estava demasiado frio. Era impossível salvá-lo. Senti que tudo o que tinha feito até agora foi inútil. Estava a cometer o mesmo erro do passado. Não o queria largar. Se o fizesse, podia nunca mais o ver.
- Não. Eu é que estava perdida na minha vingança. Eu é que não me apercebi de que, o que eu estava a fazer era algo egoísta e sem sentido. Desculpa por te fazer sofrer. Desculpa.
Comecei a chorar, nos braços dele. Enquanto ele mexia no meu cabelo.
- Não faz mal. Fui eu quem fez a escolha de esperar por ti. E não me arrependo. Esperava por ti novamente. Mas quero que prometas uma coisa antes que eu desapareça. Sê feliz por mim e por ti. Não quero que sofras. Quero que...
O coração dele... Deixou de bater. Parei de o sentir. Ele partiu sem mim deixou-me sozinha. Mas agora eu tenho um novo objetivo. Desta vez vou levá-lo até ao fim. Não quero desonrar a nossa promessa.
Limpei as minhas lágrimas. Enterrei o corpo. E parti para a minha nova vida. Uma vida com propósito, livre de vingança e preenchida com alegria.

BlindWhere stories live. Discover now