capítulo 40: sobre eventos do passado - parte final

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Jéssica

O dia estava nitidamente estranho.

Era como se uma catástrofe fosse acontecer a qualquer momento.

Dito e feito.

Papai estava louco naquele dia. Ele voltou para casa muito bêbado e transtornado, e eu não fazia ideia de onde ele estava desde a noite passada. E nem éramos próximos o suficiente para eu decidir perguntar.

Eu nunca o tinha visto encostar a mão na minha mãe, mas naquele dia vi com meus próprios olhos o quanto ele podia ser cruel.

No segundo tapa forte no rosto, minha mãe caiu próxima à mesa da cozinha, por muito pouco não acertando a cabeça na ponta do objeto.

Eu gritei pelo susto e papai olhou para mim antes de sorrir ironicamente.

— Tire essa fedelha intrometida daqui, mulher. — ele chutou as pernas dela e se aproximou da geladeira, puxando uma caixa de leite líquido e bebendo o seu conteúdo.

Com pressa ajudei minha mãe a se erguer e percebi que ela estava chorando. Eu a abracei e vi o homem que eu chamava de pai sair da cozinha. Logo depois ouvi a porta bater com muita força lá fora.

O barulho do motor da caminhonete pôde ser ouvido em seguida, assim como o forte ruído da chuva contra o telhado.

— Jéssica, me perdoe pela cena que você viu.

— A senhora não tem que me pedir perdão. Ele é o único culpado. Há quanto tempo isso acontece? — questionei com lágrimas nos olhos. Doía na alma vê-la assim. Sua bochecha estava muito vermelha pelo impacto recente e ainda bem que meu pai não bateu mais.

— Essa é a segunda vez depois de muito tempo. — confessou quando a levei para o sofá da sala.

Naquele momento mamãe acabou confessando que Esteban foi preso quando bateu nela pela primeira vez. Foi bem mais violento e eles ainda moravam no México. Eu ainda era muito pequena e, segundo ela, estava na creche aquele dia. Recordei o dia em que eu soube que papai estava preso. Ela nunca explicou o motivo e logo ele estava em casa outra vez.

Meu pai nunca foi um homem muito comunicativo ou atencioso com nós duas. Minha mãe disse que quando o conheceu ele não era assim, mas se juntou com certas amizades e tudo mudou. Papai se tornou agressivo e frio. Nunca tinha batido em mamãe na minha frente até aquele dia, apenas gritado ofensas horríveis.

Era estranho o fato de eu não saber muita coisa sobre meu pai, mas era a verdade. Ele não divulgava o que fazia assim que saia de casa, mas nunca nos deixou passar fome. Mesmo assim era mesquinho, porque, por motivos desconhecidos, conseguia muito dinheiro, mas sempre gritava com minha mãe quando ela pedia para comprar roupas ou calçados. Ele lhe dava dinheiro para isso raramente, quando queria, e tínhamos que economizar em tudo.

— Na primeira vez que ele me bateu, a vizinha ouviu a ação e o denunciou. Esteban foi preso imediatamente, mas retirei a queixa e menti para a polícia. Você era muito pequena e eu dependia dele, ainda dependo, então não poderia deixá-lo ser preso. Sinto que fiz a pior escolha da minha vida por deixá-lo solto.

— Não chore, mamãe. — eu a abracei, sentindo minhas próprias lágrimas virem à tona. — Ele não merece suas lágrimas. De jeito nenhum.

— Eu sei, mas tem sido difícil conviver com ele. Você viu como ele nos trata. Como se fôssemos a pior espécie. Nunca demonstrou carinho por você e sou tão fraca por continuar nessa situação. — lamentou e naquele mesmo dia me informou acerca de todas as barbaridades que Esteban cometeu ao longo da vida. Ele tinha um histórico ruim e fiquei chocada ao saber de tudo.

Tínhamos um criminoso dentro de nossa própria casa.

Recordei que, horas depois, eu estava em meu quarto quando ouvi o murmúrio chocado da minha mãe na sala. Corri para lá imediatamente.

Ela tinha acabado de deixar o telefone fixo cair de sua mãe e tive que ajuntá-lo antes de dizer alguma coisa.

— Mãe? O que está havendo?

Ela me encarou em choque e deixou escapar:

— Seu pai... ele... — respirou fundo. — A polícia ligou e está vindo para cá. Ela provavelmente quer saber o paradeiro dele.

Ampliei meus olhos.

— Paradeiro? O que... o que ele fez de tão grave?

— Seu pai causou um acidente na rodovia principal. Ele bateu a caminhonete em outro carro menor.

Lembrei-me do estado em que ele saiu e tomei conhecimento de que a batida devia ter sido grave, afinal papai estava muito bêbado e alterado.

— Meu Deus! — sento-me no sofá. — Alguém se machucou?

— Um homem morreu, Jéssica. — revela com a expressão transtornada. — E o rapaz que estava com ele se acidentou, mas segue estável no hospital.

O que meu pai tinha feito?! Ele foi louco a esse ponto? E onde ele estaria naquele momento?

— Papai não foi preso, certo?

— Ele está foragido.

— Será que vai aparecer por aqui?

— Acho que não. Seu pai é esperto. Com certeza vai se esconder na casa de algum amigo e desaparecer do rastro da polícia.

— Sinto tanto pelos acidentados. — comentei depois de um silêncio pesado.

Minha mãe e eu ainda estávamos em choque depois dos acontecimentos e a polícia logo estava batendo na porta, procurando pistas. Foram dias cansativos e minha mãe pediu que eu permanecesse no quarto, longe dessa bagunça.

Passei o dia inteiro preocupada com as vítimas, então fui à internet saber mais sobre o caso.

Foi um acidente horrível, provocado por um irresponsável. O carro ficou um caos e o senhor que estava no volante foi terrivelmente esmagado pelo impacto. Vi muito sangue no local e pedaços de ferragem. A reportagem dizia que um homem e seu neto estavam no carro quando meu pai colidiu contra eles em cheio. Chorei com cada relato que ouvi, pensando na decepção que estava sentindo por ter um pai tão cruel. Ele nem mesmo ficou para prestar ajuda e simplesmente fugiu.

As reportagens não diziam muito, apenas o nome do senhor que morreu, e o estado do rapaz que estava com ele, que seguia internado no hospital. Não divulgaram muita coisa sobre o último, nem mesmo o nome.

Passei muito tempo dentro de casa, assustada e aflita. Minha mãe estava da mesma forma.

Mas o meu temor aumentou nitidamente dias depois, quando percebi que um carro constantemente ficava estacionado do outro lado da rua. Será que era de alguém da polícia ou um conhecido do meu pai?

Eu o notei, mas não conseguia ver muito em seu interior, apenas uma silhueta escura e quase sem forma. O vidro tinha fumê, então seria uma missão difícil descobrir quem estava no carro. E de toda forma, eu não iria me aproximar para ver.

No entanto, me acostumei tanto com a presença do carro escuro que acreditei na hipótese de ser de algum vizinho, ou de um parente de alguém da rua. Dessa forma, eu já não o temia como antes, pois até mesmo lia meus livros na calçada enquanto o observava discretamente.

Não demorou muito para o carro desaparecer e eu não voltei a vê-lo.

Da mesma forma que o carro escuro, meu pai sumiu sem deixar pistas de seu paradeiro. Nenhuma ligação para nosso telefone fixo ou celular. Nenhuma mensagem, nada.

E aproveitando o desaparecimento dele, eu e minha mãe tivemos que amadurecer de vez. Ela tinha uma amiga chamada Mônica, que lhe ajudou a conseguir um emprego em uma boa empresa da cidade. Eu, por outro lado, afundei a cara nos livros, almejando a tão sonhada bolsa de estudos da Greene Marshall.

E estudar ali estava sendo um sonho, pelo menos até eu conhecer Brandon Scott, meu amor e meu algoz.



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