• Gata •

1.2K 167 83
                                    

Foi como se até os sons da noite tivessem cessado lá fora quando a urna funerária atingiu o piso de mármore. Todas estavam com suas respirações presas, sem entender ao certo o que tinha acontecido, só que agora o chão estava coberto de pó cinza. 

Ariana sentiu seus músculos enrijecerem no momento que enxergou a urna deslizando pelo tecido e indo de encontro ao chão. Não tinha certeza se teria como aproveitar a falecida Castro para o ritual depois daquilo. Talvez só juntar a velha com uma pá e jogar dentro da urna novamente fosse o suficiente. 

Ela mal acabou de pensar na ideia absurda de recolher a tataravó Castro quando uma corrente de ar entrou pelas janelas fazendo as cortinas se agitarem, atravessou praticamente todo o andar térreo de uma ponta a outra e fez com que as cinzas se espalhassem ao redor de Isa e Valquíria, que agora olhavam tudo incrédulas.

Ariana riu. O som da gargalhada explodiu em meio ao silêncio e chamou a atenção de todas para ela. Ela ria de nervosismo, ria da situação inimaginável que estava vivendo e de como Valquíria tinha se ferrado. Ria principalmente por Valquíria ter se ferrado. 

Mona a olhava como se perguntasse o que ela estava fazendo, mas levou poucos segundos até que começasse a rir também. Não tinha certeza se estava rindo pelo que tinha acontecido à tataravó Castro ou se pelo fato de Ariana estar se divertindo tanto a ponto de seus olhos encherem de lágrimas.

Isa esboçou um riso pelo nariz e Valquíria olhou para ela no mesmo instante, a repreendendo, o que só tornou tudo mais engraçado. De repente, era apenas Valquíria de pé em meio as cinzas de sua tataravó enquanto todas as outras gargalhavam escandalosamente. Então ela olhou ao redor, para a bagunça no chão, e pensou em como sua avó reagiria quando descobrisse que uma das urnas de seu acervo macabro havia sumido. Nícolas sempre quis acabar com aquela coleção apenas pela diversão sádica, Valquíria havia conseguido executar parte do plano sem nem ao menos tentar, e isso a fez rir, para surpresa das outras garotas. 

Ariana limpou as lágrimas que escorriam pelo seu rosto vermelho, fungou o nariz e olhou para Valquíria rindo apoiada na parede e com a mão na barriga. Ela era menos detestável reconhecendo o quão engraçado aquilo era e adorável quando ria e seus olhos ficavam pequeninhos e as covinhas em suas bochechas rosadas ficavam aparentes, se destacando na pele super branca. Ariana, quando se deu conta de que estava encarando demais, fez desaparecer o sorriso de seus lábios. O que ela estava pensando? Claro que Valquíria  era detestável e não importava quão bonita fosse rindo. 

— Bem — Ariana pigarreou. —, acho que o plano já era.

Isa olhou para Ariana e depois para o chão, se lembrando do que precisavam fazer, e parou de sorrir. Seus sapatos estavam cobertos de pó de Castro e pensou sobre de quem era a culpa por aquilo ter acontecido. Ela deu uma volta no próprio corpo medindo o tamanho da sujeira na cozinha e encontrou o Azar escorado na pia e comendo... Azeitonas? Seus olhos ficaram enormes tamanho o espanto. Isa olhou para as caixas de pizzas, depois para as garotas próximas a ela e mais uma vez ficou assustada com a ideia de ninguém mais poder o ver. Se pudesse, entregaria um balde e um esfregão para o Azar, e ele que se virasse para limpar a bagunça que ele mesmo causou. 

— Droga! — Ela bateu os pés no chão para que parte da sujeira saísse. — O que a gente vai fazer com isso?

— Tataravó Castro não tem mais utilidade — Valquíria falou calmamente como se fosse normal descartar as cinzas de um familiar como descartaria uma sujeira qualquer que precisasse ser recolhida.

— Droga! — Isa repetiu e se retirou da cozinha a caminho da área de serviço.

Ela saiu pisando fundo. Não deveria se questionar pela milésima vez se ressuscitar King era uma boa ideia, no entanto, era inevitável não pensar nisso. Todas já tinham concordado com o plano, mas ele se mostrou ainda mais complicado do que haviam pensado. Isa bateu a cabeça na porta tentando botar as ideias lá dentro em ordem.

"Que merda eu estou fazendo com a minha vida e que merda estou fazendo com a vida de outras três garotas?". Claramente a morte de King era culpa dela e o plano que, sem dúvidas, daria errado, também seria sua culpa.

Ela respirou fundo e abriu a porta da área de serviço. Isa deu um pulo para trás quando foi pega de surpresa por um gato preto sentado na pequena janela aberta. O gato a encarava e não pareceu espantado ao ver ela entrar. Era quase como se ele a esperasse. 

— Você quase me matou do coração! — Isa não tinha ideia de onde o gato tinha saído. Não se lembrava se já tinha visto algum gato nas redondezas antes. Ela se aproximou e esticou seu corpo até que sua mão pudesse acariciar os pelos que brilhavam à luz da lua. — De onde você saiu, hum?

O gato levantou e meneou a cabeça apreciando o carinho que recebia. Ele deu um giro no próprio corpinho, pulou para a máquina de lavar abaixo da janela e voltou a sentar, dessa vez olhando fixo para a porta e ignorando a garota. Isa seguiu o olhar do gato e encontrou o Azar parado na soleira da entrada o encarando com a mesma intensidade. Ela voltou sua atenção ao gato para ter certeza da direção que ele estava olhando e saber se ele também podia enxergar o homem parado em sua frente. 

— Você também pode ver? — Isa se abaixou e sussurrou como se estivesse compartilhando um segredo com o animal.

— Garota tola.

Isa se afastou imediatamente. Que merda era aquela? A gata falou. Ela ouviu. Tinha certeza, absoluta, que o bicho falou e com certeza era uma gata. Uma gata com a voz carregada de sarcasmo, quase como se risse dela. A jovem Albani não era doida, pelo menos não a ponto de conversar com animais. 

— O que foi isso?! — Ela viu a gata se virar como se nada tivesse acontecido e saltar graciosamente pela janela e sumir na escuridão do lado de fora. Isa se virou em direção ao Azar. — O que foi isso?! 

Enquanto isso, na cozinha, Ariana se assustou quando Mona arrastou a cadeira, se levantou e saiu apressada escada acima. Ela e Valquíria observaram tudo e se entreolharam perguntando o que tinha acontecido. Valquíria caminhou até o início da escada e gritou de lá perguntando se Mona estava bem. Ela gritou de volta falando que a pizza e uma pessoa morta em cinzas no chão da cozinha não lhe caíram bem, e Valquíria deixou por isso mesmo.

Isa não demorou a voltar arrastando um balde com água e equilibrando panos e dois rodos, resmungando alguma coisa baixinho sem que as outras garotas pudessem entender.

— Que falta de sorte. — Ariana segurou o riso que se tornaria descontrolável se pensasse mais na cena da urna caindo e acabando com o plano de Valquíria.

Valquíria repetiu as palavras de Ariana como uma criança birrenta e Isa olhou séria para ambas.

— Vocês limpem isso enquanto a gente pensa no que fazer. 

— Por que só nós duas? — Ariana foi mais rápida em reclamar. — Nós limpamos a sua bagunça!

— Valquíria porque é a culpada por trazer cinzas de uma bruxa morta para a minha casa e você por ser a única a estar aqui agora pra ajudar. — Isa entregou os esfregões para Ariana. — Eu recomendo que sejam rápidas. Não temos a noite toda.

Ela virou de costas e saiu novamente sem falar mais nada. Ariana olhou para Valquíria, que agora sorria indicando com a cabeça o frasco borrifador que largara na bancada da cozinha.

— Nem pensar! — Ariana empurrou um dos esfregões para ela. — A culpa é toda sua e você vai me ajudar, de verdade dessa vez.

Valquíria balbuciou algum xingamento, arrastou seu esfregão até o balde e o enfiou lá dentro, derrubando água para todos os lados. Ariana deixou seus ombros caírem. Ela teria o dobro de trabalho para limpar a sujeira com aquela garota a ajudando.

Clube do AzarOnde as histórias ganham vida. Descobre agora