A Bailarina

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Saí para trabalhar cedo naquele dia. Os novos moradores do bairro onde eu liderava uma pequena equipe de limpeza, me contrataram para organizar a casa onde eles pretendiam morar. Segui subindo a rua por uma estrada sinuosa, cercada por árvores que provavelmente estavam ali desde bem antes das grandes casas serem construídas.

Me aproximei do lugar. Um senhor fazia o possível para recuperar a antiga glória do jardim, várias ervas daninhas haviam se espalhado por todo o lugar. Mas ele parecia totalmente focado em sua tarefa, uma gota de suor lhe escorreu pela testa e ele puxou um lenço e a enxugou, agora ciente da minha presença.

Me apresentei e expliquei a razão de estar ali. Ele me levou até a porta, parecendo pouco confortável. Imaginei que ele entraria no lugar para me mostrar, mas sua expressão era quase de indiferença, não fosse pela testa franzida o tempo todo, me fazendo perceber que havia algo o incomodando.

Adentrei o lugar ainda refletindo sobre o comportamento do jardineiro. Mas me detive observando a riqueza da casa, que apesar da bagunça, permanecia em toda a sua beleza, como se o tempo não tivesse passado naquele lugar. Uma camada de poeira cobria quase todo o local. Coloquei as luvas e comecei a trabalhar rapidamente. Sabia que levaria uns bons dias para organizar tudo, mas o pagamento era generoso, então eu não podia reclamar. Minha equipe chegaria em alguns minutos e começaríamos a deixar tudo impecável.

Depois de limpar grande parte do salão, eu subi as escadas para dar uma olhada em cima. Em alguns pontos, o piso parecia ranger sob meus pés, o que me fazia ter impressão de que mais alguém subia a escada comigo, mas eu estava sozinha. Parei em frente a uma mesinha do corredor, e me detive encarando uma pequena caixinha de madeira, parecia um trabalho bem amador, mas algo naquele objeto me mantinha fascinada.

Toquei de leve e ela abriu instantaneamente uma música suave e doce envolvendo o corredor, uma pena que a bailarina que dançava dentro estava quebrada. A cabeça havia sido perdida e um dos braços, jazia no canto. Me distraí encarando o antigo brinquedo. Quando ouvi uma série de passos apressados subindo as escadas.

E me voltei para o corredor pronta para saudar minha equipe que eu já estava cansada de esperar.

-Pensei que eu teria que despedir algumas pessoas hoje.

Esperei os risos que geralmente vinham acompanhados de alguém retrucando. Mas o silêncio reinava ao meu redor e tudo o que eu podia ouvir era a minha própria respiração e a música da caixa estranha que ainda tocava insistentemente. Embora de alguma forma o som não soasse mais como uma música e sim como um lamento. Minha respiração foi ficando pesada e barulhenta, tão barulhenta que a sensação que eu tinha era de que havia mais alguém atrás de mim.

Observei o objeto misterioso. A bailarina girando, enquanto um liquido viscoso escorria pelas fendas da caixa de madeira. Fechei os olhos com força, repetindo para mim mesma que era o cansaço e corri em direção a grande escadaria. Mas me detive diante da aparição a minha frente, reconheci os sapatos que eu mesma usara, quando insistira em fazer balé. Mas o restante dela, eu não podia olhar, o pescoço retorcido não permitia que ela me encarasse, um dos braços pendia em um pedaço de pele apodrecida, mas os pés caminhavam em minha direção, com uma velocidade desumana.

Tentei fechar meus olhos aterrorizada, mas com o braço que ainda permanecia preso ao corpo, a coisa esticou suas unhas afiadas e rasgou cada uma de minhas pálpebras. Seu pescoço girou de forma rápida e assustadora e ela me encarou com órbitas vazias e um sorriso perturbador. Naquele momento a música que vinha da caixinha cessou.

-Olhe para mim.

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