Capítulo 3

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30 de maio de 2020.

Eu estava crédula de que ela voltaria. Que Laura apareceria no meio da noite, acordando-me com seus cabelos loiros brilhantes e sua voz aguda e animada. Que eu teria a chance de me desculpar e mostrar para ela todos os elogios que seu conto recebeu.

Eu sabia que ela tinha motivos para estar brava, mas não achei que ficaria tão furiosa. A consciência de que talvez ela não fosse voltar se deu dias depois, enquanto eu tentava terminar de ler um texto acadêmico. Abandonei o texto, a respiração acelerada, o estômago apertado.

Meus pensamentos não paravam, estava tudo meio turvo e desconexo, eu só conseguia pensar nela, o resto do mundo havia perdido a importância. Então fiz o que sabia fazer numa crise de ansiedade: Peguei meu caderno e comecei a escrever. Eu sentia a respiração acelerada, as lágrimas caindo naquele lapso de desespero.

Às vezes eu tinha esses picos emocionais e ficava escrevendo até passar, rabiscando meus pensamentos sem filtro. Era minha forma de processar, o que me ajudava a me acalmar. Solucei baixinho, largando a caneta depois de duas páginas escritas e respirando fundo.

Ainda estava cheia dela, transbordando. Sem saber onde transbordar, liguei o computador e mandei mensagem para Renata. Renata, a melhor amiga de Ensino Médio que me conhecia por inteiro, que tinha vivido todas as minhas fases. Renata, para quem eu podia mandar todo tipo de mensagem aleatória ao longo do dia.

— Você querendo chamada de vídeo? Que tipo de bicho te mordeu? — Renata parecia espantada quando entrou no Google Meets. A imagem dela tremia, percebi que estava usando o celular.

Eu suspirei. Muito raramente topava fazer chamadas de vídeo, mas naquele dia precisava desabafar.

— Eu só precisava conversar. — Mordi o lábio nervosamente. — Lembra da Laura? Aquela amiga de longe? — Para poder falar da Laura sem entregar que ela era um fantasma, inventei que era uma amiga de outro estado e que nos conhecemos virtualmente num desses grupos de escritores.

— Ah, sim, a garota pela qual você é obcecada? — retrucou ela, e eu revirei os olhos. De fato, durante a quarentena eu falava muito de Laura. Talvez o tempo inteiro. O que eu ia fazer? Ela era a única pessoa com quem eu mantinha contato regular além da minha família.

— Não sou obcecada por ela — respondi secamente, sem conseguir conter o mau-humor. — É só que.... Nós brigamos, agora ela não fala comigo. Eu só estou meio perdida, sem saber o que fazer.

— Mandou mensagem? Ligou? — É claro que Renata estava desconfiada. Ela sabia que eu era um ratinho introvertido e, ao menor sinal de confusão, corria para debaixo das cobertas e me afastava.

Pensei em todas as vezes que havia chamado Laura e feito preces para que ela aparecesse.

— Sim, fiz tudo isso, diversas vezes. — Minha voz estava afogada em melancolia e desânimo, eu queria desligar a chamada e deitar na cama, ficar encolhida e tremendo.

— Ela é realmente importante para você, não é? Você raramente se apega às pessoas. — Renata me olhava com um sorrisinho admirado, como se estivesse presenciando algo muito fofo. Eu queria gritar. Não tinha nada de fofo nas minhas crises.

— Escrevi algumas cartas sobre ela, posso te mostrar? — perguntei, e ela assentiu animadamente. Renata escrevia também, volta e meia trocávamos contos e poesias que havíamos escrito.

Peguei o arquivo com o pequeno compilado de cartas que havia escrito sobre Laura e enviei por Whatsapp. Esperei enquanto ela se conectava pelo computador para conseguir ler, ansiosa para ver a reação dela ao vivo.

Eu havia passado todos os textos para o Google Docs, não queria correr o risco de perder as cartas.

— Uau, você estava, tipo, namorando essa menina? — As sobrancelhas loiras de Renata estavam franzidas, sua face confusa enquanto lia meus parágrafos. Eu ri.

— Não, por que pensaria isso? — O notebook estava apoiado na minha barriga, eu havia desligado a câmera para que Renata não precisasse ver meu nariz. Não que importasse, ela não me via porque estava lendo meus textos.

Você me assombra como uma ferida que se recusa a fechar, tem um lugar permanente na minha mente? — recitou ela, gargalhando entre as palavras. — Puta que pariu, o que é isso? Romeu e Julieta versão trash? — Revirei os olhos, quase fechando o notebook. Acabei tirando meus óculos porque eles me incomodavam quando estava deitada.

— Eu sei que não é uma grande obra da literatura, tá? Eu só queria desabafar.

— Não ficou tão ruim, só visceral e cru demais. — Suspirei com a ponderação dela, porque sabia que Renata tinha razão. — Talvez seja a hora de aceitar que nem tudo é eterno. Isso ficou muito bom. Melancólico na medida certa, suave como um suspiro. — Não respondi, só fechei os olhos e decidi que foi estupidez mostrar aquelas cartas para ela. — Você é demi? Ou está no espectro assexual, sei lá? — Aquilo me fez abrir os olhos e sentar na cama, ligando a câmera para que Renata pudesse me ver.

— Eu sou bi, Renata, muito bi. — Não precisei pensar ou considerar aquilo. Eu gostava de pessoas, eu queria me relacionar com pessoas. Droga, eu gostava de beijar pessoas, como poderia ser assexual?

— Eu sei que você é bi, mas muitas pessoas assexuais também são, sabia? Não sentir atração sexual não quer dizer que você não sente atração romântica também — rebateu ela, revirando os olhos e me olhando com um sorrisinho. Coloquei meus óculos para conseguir enxergar melhor a tela do computador.

— Tá, mas eu já beijei pessoas, gosto de beijar pessoas.

— Mas você já quis transar com alguém? Já teve pensamentos e desejos sexuais por alguém? — perguntou, e eu fiquei calada. Nunca havia transado com ninguém, havia beijado algumas pessoas ao longo da vida, mas não fora nada ardente ou sexual. Era só um beijo. Eu gostava de beijos. Faziam com que eu me sentisse bem e desejada.

— Não, eu acho que não.

— Olha, eu sei que você sempre diz que quer que seja com a pessoa certa, que não quer pressionar e tal, e isso é ótimo, mas dá uma pesquisada nas diferentes formas de atração — sugeriu ela, e aquilo me deixou meio pensativa. Eu estava distraída fazendo a retrospectiva de todas as pessoas que havia beijado. — Você sempre esteve esperando a pessoa certa, talvez essa pessoa nunca chegue porque você não pode sentir o que se espera convencionalmente. Essas cartas me parecem muito atração romântica. — Eu quase engasguei. Tensa demais para continuar na chamada de vídeo, resolvi desligar porque estava elétrica. Assexualidade. Eu conhecia aquela palavra, conhecia a definição. Até agora, nunca tinha me ocorrido que eu pudesse não sentir atração sexual.

Percebi que aquilo parecia fazer muito sentido. Eu não entendia as cenas sexuais que lia em livros, não entendia o conceito de sentir o corpo reagir a uma pessoa. Nunca senti isso, nunca senti nada sexual com ninguém.

Peguei o Kindle e dei uma olhada na biblioteca. Eu havia comprado um livro com protagonismo assexual que falava sobre isso. Precisando de uma distração e ignorando as coisas da faculdade, decidi começar a ler Tash e Tolstói

Anjos Como VocêWhere stories live. Discover now