Capítulo 1

24.3K 1.8K 1K
                                    

18 de maio de 2020.

Ela falava, eu escrevia.

Laura tinha esse jeito específico de formular frases. Ela nunca usava palavras complicadas, mas sabia ordená-las de forma que soassem como poesia. Ela sabia o que fazia. Era por isso que eu ficava calada, sentada na frente do computador por horas enquanto digitava as histórias dela.

— E então... — murmurou Laura, num tom cheio de suspense.

— E então? — perguntei quando a pausa se prolongou, ansiosa. Eu era uma leitora ávida dela, por isso não me importava de passar horas e horas digitando as coisas que Laura imaginava.

— Vai precisar esperar para saber. — Laura estava claramente se divertindo com minha frustração. Bufei de maneira insatisfeita, salvando o documento antes de fechar a tela. Odiava quando ela interrompia a história pela metade.

Alonguei os dedos, então afastei os óculos para coçar meus olhos.

— Que saco, por que você é assim?

— Pelo menos avisei que pararia, da última vez eu simplesmente sumi e você ameaçou me exorcizar — lembrou ela, com uma gargalhada. Mostrei a língua num gesto infantil, mas acabei fechando o computador mesmo assim. Eu estava mesmo exausta, precisava dormir.

Comecei a arrumar a escrivaninha, Laura me lançou um olhar desconfiado.

— Você jura que já vai dormir? Não são nem onze horas da noite, Alice. — Ela parecia impaciente, balançando as pernas no ar e sentada em cima de uma pilha de roupas na poltrona. Qualquer pessoa teria deslizado nas roupas e derrubado tudo, mas ela não tinha peso, não amassava o tecido e muito menos deixava qualquer marca de sua presença. Fantasmas nunca eram sentidos por nada e nem ninguém.

Ninguém além de mim.

— Eu tenho aula amanhã — retruquei com uma careta. Ela revirou os olhos.

— Online, Alice, você nem precisa sair de casa. Parece que tem oitenta anos. — Enquanto ela ia falando, eu ajeitava meus travesseiros e puxava a coberta. Tinha todo um ritual meticuloso.

Tá, eu não era a pessoa mais emocionante do mundo. Dormia na hora certa, acordava na hora certa. Fazia todos os trabalhos da faculdade, lia os textos e, mesmo antes da pandemia, costumava ir para uma festa ou outra. Eu gostava de beber, trocava beijos com algumas pessoas, mas não tinha histórias emocionantes para contar.

Eu era aquele tipo de pessoa que nunca precisava beber no jogo do "Eu nunca", principalmente quando falavam sobre coisas sexuais. Isso dizia muito sobre o quanto eu era apegada com a ideia de esperar a Pessoa Certa que nunca chegava.

— Desculpa por ter necessidades biológicas básicas, não precisa esfregar suas vantagens espectrais na minha cara. — Pulei na cama entre as almofadas coloridas, observando a garota fantasma, que agora estava parada no meio do quarto.

Laura tinha cabelos curtos e esvoaçantes que ficavam balançando na altura dos ombros. Ela era uma coisinha loira e minúscula que me assombrava desde o terceiro ano do ensino médio — uma assombração no sentido mais literal da palavra.

— Aliás, você bem que podia tentar espiar a prova da professora de Estudos Linguísticos e... — Ela sumiu antes que eu pudesse completar a frase. Odiava quando ela fazia isso, mas era muito frequente. Laura desaparecia sem aviso algum.

Bufei e caí na cama, pegando meu celular. Abri o documento do conto que havia escrito hoje, a história que Laura estava ditando para mim. Ela realmente sabia contar histórias, descrevia tudo de uma forma tão bonita...

Perdida nos parágrafos, fui relendo o conto com calma. Estava tão imersa nas palavras que tomei liberdade para acrescentar novos capítulos, escrevendo na visão da personagem antagonista. Perdi o sono nisso, escrevendo essa espécie de fanfic de um conto nunca publicado.

Quando estava com sono demais, bocejei alto e larguei o celular. Mostraria os capítulos para Laura no dia seguinte.

 ❥

É claro que fiquei enrolando e me atrasei para a aula, conectando na plataforma cinco minutos atrasada. O professor já estava falando, o que me fez suspirar alto. As aulas à distância tinham começado bem, mas minha falta de foco piorava a cada dia — eu não aguentava mais meu computador, a pandemia estava longe de acabar e sem previsão de aulas presenciais. Minha saúde mental estava um lixo com o isolamento.

Enquanto o professor falava, abri o documento que havia editado no dia anterior, ávida por me afogar nas palavras de Laura. Ignorei o professor falando aos fundos e fiquei imersa no texto. Passei a manhã inteira investida naquilo e, ao final da aula, tomei uma decisão ousada: Resolvi publicar numa plataforma online.

Fiz uma capa rápida, só brincando com as cores e imagens recortadas. Quando julguei que a capa estava boa o suficiente, o texto razoável, inspirei fundo e publiquei, não conseguindo conter minha ansiedade. Meu coração disparava com empolgação.

Meu nome estava junto ao de Laura na capa, eu esperava que fosse uma boa surpresa. Ela ficaria tão feliz quando visse os comentários e reações das pessoas!

Fiz o que pude, joguei no meu Twitter, postei no mural da plataforma que havia publicado uma nova história. Eu queria ser o tipo de pessoa que publica algo e desliga o computador, mas geralmente ficava o dia inteiro acompanhando a repercussão.

Meu tweet recebeu algumas curtidas, logo apareceu um comentário elogiando a capa. Eu sorri comigo mesma, orgulhosa. Laura amaria aquilo!

Anjos Como VocêDove le storie prendono vita. Scoprilo ora