Prólogo

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Um dia antes, 02:53 da madrugada
Agência de Adoção, Nova Jersey

Um clique e a porta estava destrancada. Jake guardou os pinos de arrombamento no bolso e se virou para o irmão caçula que, tremendo de leve, segurava uma lanterna sobre o ombro do mais velho. Eles trocaram sorrisos aliviados.

— Vamos, Danny. Estamos dentro. — Jake tentou puxar a grande porta de metal, mas ela não se mexeu. Empurrou-a por alguns segundos até perceber que se tratava de uma porta de deslizar. Sentiu-se estúpido, mas resolveu não se deixar abalar. — Vamos lá.

E eles estavam dentro. Lanternas a postos, não cogitaram ligar as luzes do escritório apertado. Evitavam atrair qualquer atenção indesejada.

O escritório em questão pertencia a uma assistente social chamada Marsha Copperfield. A senhora Copperfield havia sido a responsável por designar novos lares a diversas crianças orfãs daquela parte do estado. Entre elas, os irmãos Jake e Daniel de sobrenome desconhecido, adotados pela senhora Helia Sullivan no ano de 2003.

Era possível deduzir, pelos quadros espalhados no escritório, que Marsha era a mãe solteira de duas meninas e de um pequeno beagle chamado Darwin. Para Daniel, sem dúvidas, isso significava que Marsha sabia o que estava fazendo. Por que, então, ela os entregaria a alguém como a senhora Sullivan? O pensamento o fez tremer mais um pouco.

— Ei. — Jake o apressou, apontando com a lanterna para o computador. — Não temos tempo para ficar parados. Eu vou checar os arquivos, ok?

Daniel assentiu, molhando a garganta, e seu irmão partiu, relutante, para a próxima sala. Não seria difícil decifrar a senha de Marsha, ou até mesmo invadir o sistema daquela pequena agência de adoção do estado, mas ele se sentia nervoso e seu irmão sabia disso. Seu medo era descobrir que, com a mãe adotiva, eles estavam em melhores mãos do que jamais poderiam estar com seus pais biológicos. O medo de Jake era nunca descobrir.

Não que a senhora Sullivan fosse uma péssima pessoa, mas como mãe adotiva chegava a ser desastroso. Tornou-se, para os dois garotos, um enigma insolucionável e brincadeira recorrente tentar entender por quê ela resolveu adotá-los. Jake achava que era porque ela queria se aproveitar do dinheiro que o governo dava por adoção e viver mais confortavelmente.

Já Daniel costumava sonhar que era tudo parte de um plano de supervilões para impedi-los de se tornarem os super-heróis que estavam destinados a ser no futuro. Alguns anos depois, quando abandonou os quadrinhos e começou a ler paradidáticos para a escola, ele percebeu que algumas coisas em seu país, como a fascinação por armas de fogo e o sistema de ensino americano, simplesmente não fazem sentido.

Daniel se sentou, posicionou a lanterna na mesa para que iluminasse o teclado e colocou os óculos de leitura, esperando a eternidade que o computador levaria para ligar. Pensou mais uma vez na mãe adotiva e em tudo que o levou até ali naquela noite. Sua mente vagou, tentando recontar quantos cigarros ela costumava fumar enquanto fazia entalhes na madeira com seu estilete amarelo, e chegou à média de quatro, cinco, ou talvez seis cigarros. Esse exercício mental o acalmava, fazendo com que fosse possível continuar.

Ele recordou a primeira vez em que aceitara fumar com ela, e a briga interminável que teve com Jake por causa disso. Foi mais a fundo, lembrando como se sentiu nos primeiros dias que passou ao seu lado, antes mesmo de buscarem o irmão no hospital psiquiátrico. E tremeu o lábio ao visitar a lembrança daquele dia na praia em que ela se afogou.

O computador ligou e ele acoplou seu pendrive, que iniciou um software mal-intencionado e decifrou as senhas que encontrou pela frente. Não conseguiria decidir, não ainda, como se sentia sobre a senhora Sullivan. Mas uma coisa era certa: ela havia pagado pela internet e permitido que ele ficasse todas aquelas horas no computador para que aprendesse a programar e hackear aos doze anos, e por isso ele seria eternamente grato.

Agora, já com quinze anos, ele invadia os sistemas de registro do estado com facilidade. Enquanto o irmão, com a lanterna na boca e os pinos metálicos na mão, arrombava mais uma fechadura e se embananava ao abrir a gaveta de um arquivo qualquer da sala ao lado.

Pode não ter sido muito certo da parte deles – fugirem, sem olhar para trás, ao vê-la morrer. Mas Daniel não poderia negar: fizeram o que foi preciso. Estar lá quando a polícia chegasse seria o mesmo que se preparar para dizer adeus um ao outro. E por tudo que passaram desde então, ele sentia orgulho de si e de seu irmão.

Tempo se foi, após aquele dia na praia, e ninguém apareceu para levá-los ao necrotério ou oferecer seus pêsames. Os cheques de aposentadoria da empresa de embalagens em que a senhora Sullivan costumava trabalhar continuaram a chegar. Não houve ligação ou nota no jornal. Talvez porque eles retiraram a carteira de seu corpo antes de deixá-la na areia da praia deserta e usaram aqueles últimos dólares para pegar o trem de volta para casa. E quando queimaram seus documentos, soterrados de medo e culpa, era como se ela nunca tivesse existido fora de suas memórias.

Jake passou os olhos por todos os ofícios dentro daquele arquivo pelo menos umas três vezes. Havia sempre a possibilidade de estar ficando louco, mas não havia, por nada, seus nomes naquelas folhas. Nenhum Jake nascido no dia vinte de agosto, quase dezenove anos atrás, havia sido adotado naquela agência. Nenhum Daniel, apesar de ter perdido os pais em um incêndio quando tinha apenas três anos, constava como órfão naqueles registros.

Não entrou em pânico. Não podia se deixar abalar. Convenceu-se que estavam no lugar errado e checou o endereço anotado no celular que encontraram após revirar as coisas da mãe adotiva à procura de respostas. Afinal, nada parecia certo. Mas não estavam no lugar errado. Então só podiam estar com o nome errado.

Jake foi até o irmão, que fazia movimentos rápidos e comandos que para ele eram indecifráveis. E parou ao seu lado, sem querer atrapalhar seu processo, até que o caçula notasse sua presença.

— Encontrou algo? — disse Daniel, sequer olhando para o irmão. Continuava a digitar freneticamente. Parecia estar perto de respostas. Ou, pelo menos, isso era o que Jake queria acreditar.

— Nossos nomes não estão nos arquivos. — Ele tentou não parecer abalado. Era importante que o irmão continuasse calmo. — Pode ser que...

— Eles tenham sido mudados? — disparou o caçula. Seu raciocínio parecia ficar ainda mais aguçado quando estava absorto na frente da tela do computador.

De todas as peculiaridades de Daniel, Jake ainda se surpreendia com a memória fotográfica do irmão que, como o próprio Rainman, era impossível de se vencer em jogos de baralho. Mas terrível nos momentos em que o lembrava de algo que desejava poder esquecer.

— Tem como checar por aí?

— Acho que sim — falou Daniel, animado. — Pelo que eu percebi, o sistema não trabalha com os nomes, mas sim com os números de identidade dos envolvidos. Passa a sua carteira.

Jake colocou a carteira de identidade sobre a mesa e seu irmão digitou os números com rapidez. Uma mensagem veio à tela, informando que a combinação era inválida. O caçula digitou mais uma vez, só para garantir que não havia se enganado. A mensagem voltou e os garotos trocaram olhares desconcertados.

— Tente o seu, Danny — sugeriu o mais velho, e os números foram digitados tão rápido quanto foram negados. — Que diabos isso significa?

Daniel respirou fundo antes de continuar:

— Que nós, de acordo com o sistema de registro do estado de Nova Jersey... Não existimos. Pelo menos, não legalmente. — Ele encarou o teclado como quem tenta se lembrar da sua primeira memória de vida. — E se eu estou certo... E eu raramente estou errado...

Ele digitou alguns números que pareciam aleatórios para o irmão, mas foram confirmados e, então, substituídos com o perfil de uma senhora branca, de quarenta e oito anos, chamada Helia Sullivan – e não a senhora negra, sessenta e três anos, chamada Helia Sullivan, que eles conheceram por mais de uma década.

— Ok... E o que isso significa? — disse o mais velho, em tom de desastre. Não tentaria mais controlar a respiração. Havia se deixado abalar. — Ela...

— Não era quem dizia ser. — Daniel encarou a tela. Mas, mesmo com os óculos de grau, não enxergou mais nada. — Sra. Sullivan nunca existiu, Jake, não de verdade. E nós também não.

Portões da MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora