Medo: Contos de Terror

By WilliamDaRocha

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Assombrações, demônios, vampiros, lobisomens, zumbis e mais. Cada capítulo de Medo é um novo e aterrorizante... More

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2. A Casa da Rua 2

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By WilliamDaRocha

Em alguma noite de verão do ano de 1.994...

Fazia um calor insuportável e — se não bastasse os ventiladores não refrescarem o suficiente — a energia elétrica acabara de ser interrompida; transformando as casas em verdadeiros fornos. Buscando um local menos quente, os moradores daquele bairro acomodaram-se em cadeiras e bancos nos seus respectivos pátios, esperando por brisas raras e lutando contra mosquitos famintos. Enquanto isso, um grupo de jovens nem imaginava que estavam prestes a escolher um passatempo perturbador que mudaria suas vidas para sempre.

Na varanda de uma dessas residências, sentados em cadeiras de praia, havia um casal conversando. A mulher contava como havia sido o seu dia de trabalho no salão de beleza. Falava sobre a Flávia que insistia em fazer um corte de cabelo que não combinava com o seu formato de rosto, sobre a Ana que era cliente fiel e tinha ótimo gosto para se vestir e, também, sobre a Maria que sabia tudo a respeito dos moradores do bairro; enquanto que o marido, ao seu lado, se esbofeteava numa feroz batalha contra aqueles monstrinhos voadores, limitando-se a responder apenas "sim" ou "aham" para o que a esposa falava. Um pouco mais a frente, ainda na mesma casa, os dois filhos do casal estavam lado a lado, iluminados pela lua cheia e sentados na grama do pátio. O mais velho — Gabriel (ou Gabi, para os mais chegados, de 12 anos) — mantinha a cabeça baixa, estava desconsolado. Afinal, recém havia ganho o game Donkey Kong Country e queria jogá-lo; mas a falta de luz acabou com os seus planos. Gustavo (também conhecido como Guto, 6 anos), nem ligava tanto para o videogame, pois o importante mesmo era estar ao lado do irmão, aonde quer que fosse.

— Que cara de bunda é essa, Gabi? Colocaram espelhos em casa e você percebeu o quanto é feio? — zombou o garoto (da mesma idade de Gabi) que estava parado em cima de sua mountain bike. Ostentava grandes manchas de suor na sua camiseta: duas embaixo dos braços e uma nas costas; enquanto que na testa, escorria água.

— E você, Julinho? Deixou alguma coisa para o resto da humanidade comer? — retribuiu Guto. Julinho era o melhor amigo de Gabi e tinha "ossos largos", como dizia a sua própria mãe.

Os três garotos conversavam: Gabriel explicava ao amigo que a luz "béin", acabou bem na hora que ia ligar o game novo. Julinho reclamava que nem tinha sido convidado para jogar. Guto tentava, sem ter a atenção de nenhum dos dois, sugerir alguma brincadeira legal para fazerem juntos, enquanto que a luz não voltasse.

— Oi pessoal! — disse Isa, a garota que recém havia parado a sua bicicleta, na calçada, ao lado de Julinho.

Isabel, colega de classe de Gabi e Julinho, estava em cima de uma bicicleta mais modesta, meio enferrujada, com cestinha na frente e transportadora acima da roda traseira. Não demorou para se juntar ao bate-papo dos garotos, direcionando a sua atenção mais para o Gabi do que aos demais; e, assim como fazia Guto, ela e Julinho também começaram a sugerir atividades para fazerem juntos, "Quem sabe uma volta de bicicleta?", "Jogar bola?", "Jogo de tabuleiro?"...

Gabriel não se interessava pelas sugestões dos amigos e (muito menos) do irmão. Preferia continuar ali mesmo, lamentando-se por não poder jogar Donkey Kong. Isa ficou um tempo pensando; lembrou que seu primo, há poucos dias, contava uma história sobre a casa abandonada que pertencia ao casal Moreira na Rua 2. Na ocasião, ele e alguns amigos invadiram a residência para beberem escondido, mas não ficaram por muito tempo, pois coisas estranhas começaram a suceder: ruídos, sussurros sinistros e vultos passando pelos cômodos da casa. Em um primeiro momento, Isa não deu atenção para aquilo, pois julgou ser uma mentira ou, o mais provável, estavam todos bêbados. Mas, sabendo da queda de Gabriel pelo tema, compartilhou o fato na roda de amigos e, em seguida, sugeriu uma caça aos fantasmas na casa assombrada, fazendo os olhos de Gabi brilharem ao término da ideia. Cética, no fundo acreditava que seria apenas um passeio para animar o amigo.

— Ótimo! A maluca quer nos levar para o local de um crime! — reclamou Julinho. A casa abandonada da Rua 2, há alguns meses, foi o palco do assassinato do jovem Daniel Moreira pela esposa (segundo a conclusão da investigação), Suzane Moreira, que desapareceu logo depois; o caso atraiu a atenção da imprensa e de curiosos por diversas semanas. A criminosa seguia foragida.

O grupo ficou tentando convencer Julinho que seria divertido. Gabi disse que poderiam tentar gravar uma voz do além com o seu rádio gravador. Enquanto isso, Guto provocava o amigo, zombando que Julinho tinha medo de fantasmas; tinha medo do escuro; tinha medo de ficar dois minutos sem comer. Por fim, com os argumentos de Isa e Gabi, e para provar que Guto estava errado, Julinho aceitou o convite do grupo para a aventura.

— Vou buscar umas lanternas e meu gravador lá dentro de casa. Já volto! — disse Gabriel.

Gabi atravessou o gramado do quintal de casa e entrou no imóvel, logo após passar por seus pais na varanda. Enquanto que, do lado de fora, Guto imitava uma galinha, insinuando que Julinho era medroso tal como o animal, arrancando algumas gargalhadas de Isa. Ao sair da garagem, empurrando sua bicicleta e com uma mochila nas costas, Gabi foi interpelado por sua mãe; que abandonara o "monólogo com o marido" e interessava-se em saber para onde o filho iria. Dona Vera, como era conhecida, era o tipo de senhora que parecia ter parado de envelhecer, pois ainda preservava a mesma beleza que tinha em sua juventude. E, como a explicação (mentira) de Gabi não havia sido convincente, o acompanhou até onde estavam os demais jovens.

— Boa noite, crianças. O Gabi disse que vocês vão dar uma volta de bicicleta na quadra. É verdade? — perguntou, enquanto Gabriel acenava (sem a mãe ver) para eles concordarem.

— É... isso... — respondeu Isa, olhando para Gabriel e em seguida para Dona Vera.

— Boa noite, Dona Vera! A senhora cortou o cabelo? Ficou muito bonita. — dizia Julinho, ao mesmo tempo que a imaginava tão vestida quanto as mulheres que via nas revistas que seu pai escondia no porão de casa.

— Obrigada, Julinho! — respondeu, encantada com o quanto era educado aquele garoto. — Tomem cuidado: não andem pelo meio da rua, não vão para muito longe e nem voltem muito tarde. Ok?

— Claro! — disse Gabi, enquanto puxava Julinho pelo braço e preparava-se para partir.

— Espera, espera. Não está esquecendo alguém? — questionou Dona Vera.

— Não mãe, por favor.

— Sim senhor, o Guto vai junto!

— Oba! — comemorava Guto.

— Ele pode vir comigo. — disse Isa. O pequeno sorridente saltou para cima da transportadora, na traseira da bicicleta, e segurou-se na cintura da garota.

Os jovens partiram para, em poucos minutos, chegar na Rua 2; um dos locais mais inóspitos do bairro. Composta de terrenos à venda — onde o mato já havia tomado conta da maioria deles — e poucas construções (uma boa parcela para aluguel ou à venda). Nessa rua, havia uma casa bege de dois pisos, com grandes janelas de contorno azul marinho protegidas por grades de ferro, uma varanda que se estendia por quase toda a frente e um quintal sem cercas que começava a ser tomado pela vegetação. Aquele imóvel pertenceu ao jovem casal Moreira, um presente de casamento do pai da moça em comemoração à (breve) nova vida que iniciavam.

Ao pararem na frente da casa, Julinho comentou que sua mãe conhecia Suzane e que ela parecia ser uma garota adorável, mas tornou-se cada vez mais estranha com o tempo; certa vez começou a berrar sem razão dentro da academia que as duas frequentavam.

— "Adorável", até matar o marido com um martelo. — ironizou Isa.

O tema do crime já havia ficado trivial, até mesmo para os mais novos, de tanto que os moradores e a imprensa comentaram a respeito. Por semanas, era só o que se falava na região. Por que ela matou? Onde estava escondida? Contudo, o assunto foi substituído assim que o principal time de futebol da cidade, após 20 anos de jejum, tornou-se campeão da copa nacional.

O grupo deixou suas bicicletas na frente da residência e seguiu para os fundos, guiados por Isa. Chegando na parte de trás, notaram que uma choupana estava parcialmente construída, sobrando alguns poucos pedaços de madeira espalhados pelo chão — provavelmente Daniel Moreira iria usá-la para guardar ferramentas, pensou Julinho. Em seguida, Isabel apontou como seu primo e os amigos haviam entrado na casa: a porta da área de serviço estava arrombada. Gabriel retirou os itens de sua mochila e a deixou de lado. Pegou o rádio gravador CCE e as duas lanternas; ficando com uma e estendendo o braço para entregar a outra lanterna para Julinho.

— Galera, todo mundo já entrou nessa casa. É perda de tempo tentar encontrar fantasmas aí. — hesitou Julinho.

— Cara, você não precisa entrar se estiver com medo. — disse Gabi.

— Po pó. — Guto sorria ao imitar uma galinha.

Julinho franziu o cenho, arrancou a lanterna da mão de Gabriel e entrou primeiro que os demais na casa. "Medo, eu? Sou o cara mais valente do grupo!", repetia para si. Os outros três se olharam incrédulos, sorriram e seguiram logo atrás de seu valente amigo.

Assim que mergulharam nas trevas, os jovens sentiram a aura pesada do ambiente. Passando pela área de serviço e pela cozinha, viram os restos do que um dia foram armários, cadeiras e louças, além de manchas de mofo que se espalhavam e fediam por todo aquele lugar; causando repulsa nos garotos. A casa, que até poucos meses atrás exalava o odor de itens novos e sonhos do casal Moreira, já havia sido saqueada por diversas vezes. Bandidos que eram, em sua maioria, vizinhos que nem necessitavam de muitos dos itens roubados; aproveitadores de ocasião. O grupo passou pela cozinha através de uma grande abertura, ornamentada nas laterais com prateleiras que já tiveram sobre elas lindos vasinhos de violetas, e seguiram para o salão principal: o ambiente que dava acesso às escadas do segundo piso e aos demais cômodos do térreo.

Julinho e Gabi apontaram suas lanternas revelando gradativamente o lugar. Do lado esquerdo dos garotos, a lanterna de Julinho iluminou a porta entreaberta de um banheiro, e, mais à frente, uma grande abertura que levava para a sala. Do lado direito, Gabi apontou a lanterna para a entrada de um pequeno depósito — que estava com a porta aberta e continha apenas algumas prateleiras de madeira nele — e para as escadas que levavam ao segundo piso, uns sete metros à frente de onde o grupo estava. Ao lado da porta do depósito, havia um balcão com uma caneca sem alça e dois vasos (sem flores) sobre ele. Além disso, espalhados pelas paredes e pelo chão, meia dúzia de porta-retratos (alguns quebrados) com imagens de Daniel e Suzane juntos ou com seus familiares.

— Vamos nos separar em duplas. Uma investiga aqui embaixo e a outra em cima. — sugeriu Isa.

Gabriel e Isa partiram para o segundo piso, enquanto que Julinho e Guto — não muito satisfeitos com aquela sugestão — ficaram no térreo. Após subir todos os degraus e chegar ao andar de cima, a dupla observou a entrada de quatro aposentos, todos com suas portas fechadas; um cômodo na frente das escadas, dois à direita e outro na parte frontal da casa (a suíte principal, onde Suzane assassinou o marido no momento que ele dormia). Enquanto que, no lado esquerdo, uma grande janela de vidro era banhada pela luz da lua cheia. Isa abriu a porta do primeiro quarto; Gabi colocou o gravador para funcionar e iluminou o local com a sua lanterna. Era hora de encontrar os fantasmas, pensou o garoto. A claridade revelou a armação de madeira de uma cama e, assim que iluminou o canto oposto, os restos de um guarda-roupa também podia ser observado. O garoto movia-se furtivamente e cochichava, como se não quisesse ser descoberto e melindrar algum fantasma que estivesse por ali, enquanto que Isabel observava e sentia um misto de vergonha alheia e graça da situação. Aquele era um dos poucos momentos que ficava a sós com Gabi, então tentou tirar a atenção daquela besteira e puxou um assunto de seu interesse.

— Gabi, você gosta de alguém?

— Lógico que gosto de alguém. Gosto da minha família, dos meus amigos... — respondeu com a voz baixa. Concentrado apenas em caçar fantasmas, Gabi nem se deu ao trabalho de interpretar a pergunta além da sua literalidade.

— Não é isso, eu quero saber se tu gosta de alguma...

Antes de terminar a frase, Isa foi interrompida por sons vindos de um dos cômodos ao lado; gemidos, como os de uma fera que tivesse dores indescritíveis ao despertar, eram entoados pelo segundo andar da casa.

— Você ouviu isso? — perguntou Gabriel em uma mistura de euforia e medo.

Os dois saíram com cautela do quarto que estavam; Gabi apontou a lanterna para as portas dos demais cômodos. Iluminou a entrada da suíte principal: não era de lá, o som vinha de algum lugar mais próximo. Iluminou um dos cômodos, agora, na sua lateral esquerda: talvez fosse, mas seguiu conferindo. Iluminou o outro quarto ao lado do último: a porta, antes fechada, estava um pouco aberta. O garoto engoliu em seco. Cochichou para Isa que eles deveriam investigar aquele local e pediu para ela segurar o seu rádio gravador. Seguiu na frente, pé por pé, a madeira do piso estalava baixinho. A garota o seguia, incrédula, mas também cuidadosa. A criatura que estava ali continuava gemendo. "Buuu". Mais um passo. "Buuu". Estavam próximos da porta. "Buuu". Gabi colocou o dedo indicador na frente da sua boca e olhou para Isa, os dois deveriam fazer silêncio absoluto. "Buuu". O garoto empurrou sutilmente a porta — que rangeu — para entrarem no quarto. Apontou a lanterna para um lado: apenas umas garrafas de cachaça deixadas por bêbados em algum passado próximo. Apontou para o meio: bitucas de cigarro e mais sujeira. Apontou para o outro canto: uma criatura revelava-se! "Buuu". O coração de Gabriel parecia querer pular para fora de seu corpo.

Estava ali, parado. Um ser monocromático, com um pouco mais de um metro de altura. Ululava aquele som perturbador. Sua pele era como a textura de um tecido solto em uma silhueta humana. Uma criatura terrível que os havia acompanhado desde que entraram na casa.

— Isa! Tu tá vendo isso?! — gritava Gabi.

A porta rangeu novamente, chamando a atenção dos dois jovens. Outro ser, com seu rosto exibido através de um feixe de luz que ia em direção ao teto, revelava-se de trás dela.

— Bem-vindos aos meus aposentos. Buahahaha! — disse aquele ser, com o seu rosto largo e bochechas salientes que se estendiam por toda a largura da luminescência.

Isabel bufou, largou o rádio gravador no chão e foi em direção à criatura que estava no fundo do quarto. Segurou aquela pele solta do ser e a puxou com força... O lençol caiu no piso, expondo a verdadeira existência debaixo dele: Guto, que naquele momento trocava os gemidos fantasmagóricos por uma bela risada. Ao lado da porta, a luz emanada por aquele outro indivíduo passou a iluminar o rosto de Gabi.

— Quem é que é o medroso agora? — comentou Julinho, apontando a lanterna para Gabriel.

Isa empurrou os dois zombeteiros para fora do quarto. "Caiam fora!", gritava para os garotos. Enquanto era expulso, Julinho insinuava beijos no ar, provocando o ingênuo Gabi.

— Por que não ficamos todos juntos? — perguntava Guto, era uma dúvida sincera.

Conforme desciam as escadas, Julinho explicava que Isa gostava de Gabriel. "O panaca do teu irmão ainda não percebeu", dizia ele. Aquele papo de beijar ou trocar saliva (nas palavras de Julinho), deixava o garoto mais novo bem enojado. Chegando no térreo, a dupla seguiu em direção à sala. Dentro daquele ambiente, havia um sofá de três lugares e, logo mais a frente, um armário que antes continha itens como uma TV e um videocassete; fora isso, sobrara também a sujeira deixada por outros invasores. Guto sentou-se naquele estofado encardido — calado e de costas para a entrada da sala — ao passo que Julinho olhou por alguns instantes com curiosidade para todos os cantos do armário, mas sem encontrar nada de interessante.

Sussurros. Julinho pediu para Guto parar de resmungar, mas o pequeno disse que não estava fazendo nada. Sussurros. Estavam aumentando. Julinho acusou Guto de estar tentando assustá-lo, porém Gustavo também tachou o mais velho de estar fazendo o mesmo. Os dois ficaram se olhando, policiando as ações um do outro. Sussurros. Os olhos dos garotos se arregalaram. Nenhum dos dois havia feito algo. Ouviam os sons de diversas vozes ao mesmo tempo; como se elas suplicassem por ajuda. Sussurros. Julinho deu um salto para trás, quase deixando a lanterna cair de sua mão, tinha visto alguém passar rápido pela frente da entrada da sala; no salão principal da casa.

— Uma mulher! Um... uma mulher acabou de passar correndo ali! — disse Julinho, enquanto começava a se tremer.

— Pode ser a Isa e o Gabi tentando se vingar da gente. — disse Guto. Agora colocando seus joelhos sobre o assento do sofá e espiando pela lateral do encosto.

— Não! não... era um adulto, cara. — disse Julinho.

Os garotos se esconderam na frente do sofá e ficaram espiando, um de cada lado, atentamente e suando frio. Sussurros. Julinho desligou a lanterna; apenas os feixes de luz da lua cheia, entrando pela janela da sala, passava a iluminar parcialmente o ambiente.

— Eu não consigo ver nada. — cochichava, insistentemente, Guto.

Julinho fazia "xiu!" a todo instante para pedir que o amigo se calasse, mas não sabia se Guto não o ouvia ou se era ele que não estava conseguindo projetar a sua voz, pois seu corpo tremia como vara verde. O pequeno foi até o lado em que o amigo estava no sofá e o cutucou. Julinho virou-se para ele e fez sinal para que ficasse quieto. Guto colocou suas mãos sobre a boca como quem diz: "Ok, eu me calo!". Julinho voltou a observar pela lateral do encosto do sofá, enquanto que o amigo desceu do assento e espiou, na parte inferior do mesmo lado. Silêncio.

— Talvez ela tenha ido embora. — falou baixinho Guto.

Julinho ligou a sua lanterna novamente. Apontou para todos os cantos da entrada: nada. Olhou para baixo e acenou para Guto, queria que saíssem correndo daquela casa; o pequeno fez sinal apontando com o indicador para cima, o irmão e a amiga ainda estavam no segundo andar. Julinho deu de ombros e virou-se para ir embora. Sussurros. A mulher! O garoto travou com a visão fantasmagórica que acabava de ter. Estava frente a frente com uma mulher que, naquele instante, os observava parada ao lado do sofá. Pele lívida, corpo quase cadavérico, cabelos escuros que cobriam metade de seu rosto e vestida com trapos sujos.

Gritos aterrorizados ressoaram por toda a casa.

Um pouco depois de Guto e Julinho terem saído do quarto onde estavam Isa e Gabi...

— Sério que você estava acreditando naquilo? — reclamou Isa.

— Não, não... claro que não! — disfarçou Gabi. — Vamos olhar o resto dos quartos. — Pegou o rádio gravador, que Isa havia deixado no chão, e partiram para o próximo cômodo daquele andar.

Isa abriu a porta e Gabi iluminou o local com a sua lanterna: era um escritório. Havia ainda alguns livros nas prateleiras empoeiradas; talvez os saqueadores não gostassem tanto de leitura, pensou o garoto. Gabriel deixou o rádio de canto e pegou uma das obras que estavam sobre a prateleira: Carrie, de Stephen King.

— Ainda não li esse. — comentou o garoto.

— Acho que não tem mais dono, você pode levá-lo. — constatou a jovem.

— Não, não é meu. — folheou as páginas por alguns instantes e colocou-o de volta na prateleira. — Vamos ver o quarto da frente? Se tiver algum fantasma na casa, pode estar nele.

Dentro da suíte do casal Moreira, os jovens sentiram a respiração ficar mais pesada; não era pela poeira e nem pelo mofo, não era por uma razão física. No entanto, nem esse ambiente grotesco afastou os saqueadores, pois só havia sobrado um lugar vazio. Gabi desligou sua lanterna e deixou que a noite de lua cheia iluminasse o aposento através das grandes janelas do quarto; ajustou a fita dentro do rádio, a colocou para gravar novamente e esperou, talvez uns minutos ali e fosse surpreendido ao ouvi-la quando voltasse para casa. Isa pensou em puxar papo, mas mudou de ideia ao ver que o foco daquele "caçador de fantasmas" não seria facilmente desviado; o passeio não estava sendo divertido como havia imaginado. A garota contentou-se em esperar mais alguns minutos para Gabi gravar os sons do além que estava interessado e, antes que morresse de tédio, iria sugerir para darem o fora dali.

Gritos!! Eram as vozes de Julinho e Guto!

Gabi pegou a lanterna e, juntamente de Isa, tentou sair imediatamente do quarto. Boom! A porta simplesmente fechou-se sozinha antes deles passarem. E, mesmo com os dois fazendo força para abri-la, continuava trancada. "Deixa a gente sair!", gritava a garota. Gabi deixou a lanterna de lado e passou a puxar a maçaneta com toda a sua força. Mas a porta nem se movia. Isa foi até a janela, procurar por alguma forma de sair, mas ela era bem fechada: havia grades do lado de fora por onde nenhum dos dois conseguiria passar.

— Algum jeito de sair por aí? — perguntou Gabriel, que ia em direção à garota.

— Não. Será que eles não estão só tentando nos assustar novamente?

Rangido. A porta se abriu sozinha... ninguém estava do outro lado. Gabriel saltou com o susto. Ficou junto de Isa, de costas para a janela. Sussurros.

— Está ouvindo isso? — perguntou a garota. Gabriel apenas assentiu com a cabeça que sim. — Parece aqui dentro.

A lanterna deixada no piso do quarto começou a piscar sozinha até desligar. Isa segurou a mão de Gabi. Sussurros. O suor frio escorria. O coração disparava. Suas peles estavam pálidas.

Algo movia-se dentro do quarto!

Como um réptil, uma sombra rastejava da parede para o teto e em direção aos dois jovens. Gabi e Isa soltaram um berro e correram para fora do recinto, deixando a lanterna e o rádio para trás.

Alguns instantes após o encontro de Julinho e Guto com a mulher macabra...

— Eu não vou voltar para dentro da casa, cara! — reclamava Julinho, segurando sua bicicleta — Tu viu aquela mulher diabólica?! Sabe-se lá o que aconteceria com a gente se não tivéssemos corrido pra cá!

— Eu sei Julinho, mas meu irmão e a Isa ficaram lá dentro, precisamos voltar para buscar eles! — insistia Guto.

— Ah! — berrava e sapateava, com as duas mãos no rosto, o garoto. — Eu sou muito novo para morrer... — repetia com a voz bem baixa, enquanto as palmas de suas mãos deslizavam pelas bochechas.

Guto desistiu de tentar convencê-lo, pegou a lanterna da mão do amigo e partiu em direção aos fundos da casa. Estava decidido em ajudar Isabel e o irmão.

"Se eu voltar e contar para um adulto, minha mãe vai ficar sabendo e me deixar de castigo até eu completar 90 anos!", pensava Julinho. "Pelo menos, eu terei a possibilidade de chegar aos 90 anos". "Que ideia idiota ter vindo aqui!". Respirou fundo e correu atrás do pequeno.

— Espera! — gritou Julinho ao avistar Guto quase entrando pela área de serviço novamente. — Precisamos de armas! — O garoto foi até os restos de materiais da choupana inacabada, catou do chão um toco de madeira (proporcional ao que ele imaginava que o amigo conseguiria carregar) entregou para Guto e ficou com um bastão enferrujado que estava próximo. — Se a gente sobreviver, nunca mais me chame de medroso.

Guto acenou positivamente com a cabeça. Afinal, de acordo com o que pensava, o repertório de piadas sobre o peso do amigo era muito mais divertido.

O berro de Isa e Gabi ecoou por toda a casa.

Guto e Julinho entraram correndo com suas armas em punho em posição de batalha, encontrando os outros dois amigos no salão principal.

— Vocês também viram a mulher?! — perguntou Julinho.

— Nós vimos uma sombra rastejando pela parede! Parecia uma lagartixa gigante! — respondeu Isa, prestes a chorar.

— Vocês estão com medo de uma lagartixa? A gente viu uma mulher que parecia o capeta! Vamos embora logo!

Sussurros. O grupo ficou em pânico, pois alguém vinha pela cozinha. Deram alguns passos para trás. Julinho e Guto ficaram em posição de batalha com suas armas. Isa pegou um dos vasos de cima do balcão (que estava ao lado deles); iria usá-lo para se defender. Gabriel olhou para o balcão e também pegou um item.

— Tá de brincadeira?! O capeta tá vindo e você pega a caneca?! — falava irritado, tentando conter a voz, Julinho. — Tu vai oferecer chazinho para ele?! Pega a porcaria do vaso!!

— Cada um estava com uma arma diferente, eu não quis repetir. — tentou se explicar Gabriel.

Uma figura feminina, visivelmente desnutrida, suja e com medo, estava parada na frente deles.

— Por favor, me ajudem! — disse a mulher.

Julinho arregalou os olhos e disse:

— Ess... essa é a Suzane. To reconhecendo ela. Que droga! A gente tá encurralado com uma assassina!

O grupo deu mais alguns passos para trás. Sussurros. O som de várias vozes sussurrando ao mesmo tempo estava mais forte. Suzane curvou-se, colocou os braços para a frente tentando evitar a aproximação de alguém, ou melhor, de algo.

— Não deixem ele vir!! Por favor!! — gritava.

Uma sombra rastejou pela parede das escadas — movimentando-se com agilidade — e foi de encontro à Suzane. Suas súplicas cessaram imediatamente. Sussurros. A pele da mulher foi ganhando uma tonalidade cinza. Seu tronco, antes curvado, endireitava-se exibindo uma certa altivez. Os olhos, que eram castanhos, mudaram para tons amarelos. Seu olhar era como de um predador antes de caçar. De canto de boca, um sorriso sinistro.

As crianças deram mais uns passos para trás, estavam um encostando no outro, buscando proteção no companheiro do lado. Seus braços tremiam, lágrimas escorriam por alguns dos rostos. Tentavam falar algo, mas ouvia-se apenas gemidos e grunhidos. Estavam prontos para correr, porém a presença daquela criatura cobria por inteiro a sua única saída; como se, além do corpo cadavérico de Suzane, houvesse um enorme ser intangível junto dela. E havia! Um ser tão antigo quanto os primeiros homens, um demônio remanescente de eras mitológicas; estudiosos diziam que a verdadeira imagem daquela criatura era a de um enorme réptil cinza, de olhos amarelos, grandes dentes pontiagudos e com os rostos das vítimas que devorou — condenados a suplicarem eternamente por ajuda — presos ao longo de seu corpo.

Rugido. A criatura dera um enorme rugido fazendo a casa inteira estremecer. Os jovens berraram de medo e tentaram escapar, correndo desordenadamente ao lado de Suzane. Entretanto, como se fossem puxados por um cabo invisível, seus corpos foram arremessados de volta para o salão. As armas e lanternas do grupo rolaram pelo piso da casa; alguns dos garotos se contorciam de dor no chão, enquanto que outros já tentavam se levantar. O demônio caminhava calmamente na direção da crianças. Sussurros. Isabel arrastou-se em direção à porta principal, ficou em pé e fez força para abri-la, porém estava trancada e sem chaves; a garota sentiu repentinamente algo jogá-la de costas para a parede ao lado, ficando suspensa nela, presa por uma enorme pressão em seu peito. O demônio usava algum tipo de telecinese. Gabriel conseguiu, ainda no chão, pegar a barra de ferro que estava próxima a ele e partiu para cima da criatura, mas foi empurrado e suspenso na parede ao lado de Isa. O pequeno Guto tentou aproveitar a distração e sair correndo, mas acabou sendo pressionado na parede entre a sala e o banheiro.

— Vocês são meus! — dizia o demônio, com diversas vozes saindo ao mesmo tempo através do corpo de Suzane.

A criatura virava-se em direção à Julinho, quando recebeu um forte impacto na cabeça; uma caneca, após acertar Suzane, rolava pelo chão do ambiente. Por alguns instantes os jovens sentiram a pressão que os mantinha presos à parede diminuir.

— Deixe-os em paz! São apenas crianças. — pedia Suzane, enfraquecida após a pancada na cabeça.

— Não!! Eles são meus!! — disse o demônio, mais uma vez, respondendo através do corpo da possuída.

As crianças foram levantadas com força pelas paredes. Julinho foi arremessado e suspenso ao lado das escadas. O demônio os observava e gargalhava. O grupo gemia de dor pela forte pressão em seus peitos. As lágrimas escorriam de seus rostos. Julinho rezava baixo. Gabi e Isa pediam em pensamento para não morrerem. Guto tentava acordar do pesadelo.

De repente, a pressão começou a diminuir novamente...

— Deixe-os ir!! — gritava Suzane. — Fujam crianças, fujam logo!

Silêncio. Os quatro jovens conseguiram colocar seus pés no chão e livraram-se do controle do demônio. Sem demora, correram em direção à cozinha e depois para a área de serviço. Sussurros. Quando Guto, que estava mais à frente, foi sair, a porta se fechou com violência, impedindo a fuga dos garotos.

— Vocês não podem partir. — disse as diversas vozes que saíam do corpo de Suzane.

Os quatro trabalhavam em conjunto para abrir aquela porta. Gabriel tentava puxá-la pela maçaneta e os demais puxavam pelas grades que cobriam a, não mais existente, janela da parte superior. A criatura grudou-se na parede e partiu em direção ao grupo. "Abre logo!", gritava Gabi. Sussurros. A criatura estava entrando na área de serviço. Isa e Julinho berravam desesperados. Usavam toda sua força para abrir a porta, mas sem sucesso.

De repente, o demônio parou de avançar.

Ao olhar pra trás, Isa viu o corpo de Suzane caído no chão. A porta se abriu. Os quatro saíram correndo e seguiram até a frente da casa, pegaram suas bicicletas e pedalaram o mais rápido que conseguiram.

Ao chegarem perto da residência de Gabriel e Gustavo — a mais próxima da Rua 2 — o grupo parou e reuniu-se na esquina. Após alguns segundos sem falar nada, ainda muito ofegantes, Gabi puxou:

— Precisamos avisar alguém. Não podemos deixar as coisas assim!

Os jovens se olharam, sem ter certeza do que fazer. Ninguém acreditaria nas suas histórias. Se a polícia não encontrasse a mulher, seriam chamados de malucos, mentirosos, ficariam de castigo... Isa comentava que Suzane os havia ajudado a escapar daquele lugar, ela estava possuída, talvez não fosse a responsável (pelo menos, não voluntariamente) pela morte de Daniel.

Nada mais foi comentado. O fato virou um segredo do grupo.

Guto teve pesadelos em quase todas as noites depois do ocorrido, mas Gabriel o persuadiu a manter o segredo longe do ouvido dos pais; em troca deixava o irmão ficar horas jogando vídeo game com ele, alegrando o pequeno. Os demais também tiveram alguns pesadelos relacionados à noite na casa dos Moreira, mas não contaram aos amigos, para não assustá-los. Julinho não conseguia mais dormir com as luzes apagadas. Isa assustava-se ao enxergar o rosto de Suzane em mulheres estranhas na rua. Gabi não conseguia mais ver filmes ou ler livros de terror. Entretanto, depois de algum tempo, o horror que viveram passou a ser comentado entre os quatro como se tivesse sido uma grande aventura; algo que talvez até pudesse ser repetido algum dia (mesmo que nenhum deles estivesse realmente disposto a isso). Um mecanismo que evitava externar que alguns traumas daquela noite seriam para sempre.


Alguns meses depois...

Gabriel chegou da escola próximo ao meio dia, sua mãe avisava que o almoço estava pronto. Guto e o pai já estavam sentados à mesa. O garoto seguiu em direção ao quarto, largaria sua mochila com os materiais por lá, iria no banheiro e, finalmente, almoçaria. Chegando no corredor, ouviu um som estranho, indecifrável. Entrou na porta do quarto e congelou. Clac! O antigo rádio gravador, aquele deixado na casa da Rua 2, estava em cima de sua cama rodando uma fita.

Sussurros... 

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