Jake reagiu de imediato quando a viu abrir os olhos. O alívio tornou-se evidente na sua expressão quando percebeu que a rapariga acordara. Ele considerava-se um homem prático, costumava ser fácil lidar com pessoas feridas e inconscientes e a sua resposta era imediata quando se tratava de ajudar a salvar uma vida. Costumava, até a vida ser a dela.
Kim mantivera-se desmaiada durante demasiado tempo e ele contou cada segundo angustiante e interminável. O moreno limpara-lhe o sangue encrustado na pele magoada e as feridas com cuidado, acariciara-lhe os traços que já conhecia de olhos fechados, provavelmente dissera coisas que não diria na presença de ninguém, e pediu para que ela acordasse.
Ele não iria admitir que ainda tremia ao recordar o momento breve em que a viu sob Alana e pensou que a perdera. Ele pensou-o, mesmo que tivesse sido numa fração de segundo, e então o seu instinto mais básico tomou o controlo e agiu da única forma que poderia. Ele prometera a si mesmo que nunca mais perderia ninguém por sua culpa. Prometera a Kim que não permitiria que ninguém lhe fizesse mal, e já falhara tantas vezes...
– Jake! – o tom ansioso forçou-o a despertar do estado de apatia crescente e avançar para a morena de novo. – Eu... E-eu lembrei-me – ela disse, respirando com dificuldade, encolhendo-se sobre o colchão.
– Hey... Está tudo bem – apaziguou ele, puxando-a para um abraço mais para o sossegar do que a ela. Jake apertou-a contra o peito e alisou-lhe os cabelos sujos e embaraçados num misto de sangue coagulado e suor.
Kim permitiu-se ser abraçada, agarrando-se sôfrega à cintura dele com força, puxando o tecido da t-shirt com as mãos trémulas, enquanto tentava controlar a respiração desenfreada. Acabou por fechar os olhos ao sentir o ardor aquecer-lhe a pele do rosto e nem isso a demoveu. Roçou o nariz pelo pescoço masculino, ignorando a sensação abrasiva, e inspirou o aroma que era o seu favorito no mundo.
O que Jake pensaria quando ela lhe contasse a verdade? Voltaria a abraçá-la daquela forma, entrelaçando os cabelos desgrenhados e sujos com os dedos, numa longa carícia na sua nuca dorida, tocando repetidamente a sua testa transpirada com os lábios?
– Kim... – Ela fechou os olhos com força quando sentiu as cordas vocais dele vibrarem contra a sua têmpora. Não, ainda não, pediu mentalmente. Ainda não.
Ela não queria ter que lhe contar, não queria que ninguém soubesse. Tudo o que ela sentia se refletia na sua postura, na forma como puxava Jake para si com uma sofreguidão quase desesperada. Nem mesmo quando ele tentou afastar-se, para procurar o rosto dela, o conseguiu largar.
Ele acabou por suspirar, num misto de alívio e impotência, e apoiou o queixo nos cabelos dela, sem saber como fazê-la voltar a si. Kim revelara-lhe os seus maiores medos naquela mesma cama, horas antes, e nem nesse momento ele a viu reagir daquela forma.
– Estás tão tensa que não sei o que fazer para que te sintas melhor. Às vezes seria mais fácil se chorasses.
Kim finalmente abriu os olhos ao ouvi-lo, e o seu olhar era vítreo, limpo de qualquer emoção, de qualquer indício de lágrimas. Talvez ela não as soubesse produzir, já que o nó na garganta era constante. Talvez ele tivesse razão e chorar fosse mais libertador e saudável do que depender do abraço dele daquela forma.
– Eu não quero chorar, só quero que me abraces – admitiu, escorregando pelo peito duro e sentindo o rosto colar-se ao tecido da t-shirt dele, pelas feridas mal cicatrizadas.
– Não tens que ser sempre forte – ele disse, num murmúrio rouco, enquanto as mãos vagueavam pela pele sã dela. – Não comigo.
– Eu não sou nada forte, Jake... Eu na verdade sou a coisa mais fraca de sempre. – ela murmurou contra ele, a voz demasiado abafada para ele perceber com clareza.
– Tu és a pessoa mais forte que eu conheço.
– Eu nem sou uma pessoa, talvez seja por isso que nem sequer consigo chorar – confessou, apertando-lhe o tecido da t-shirt uma vez mais para então largá-lo, como se ganhasse consciência de que não era digna de depender de todo aquele contato com ele. Chegara a hora de lhe contar, ela sabia. – Eu não sou uma pessoa – continuou num tom de voz sumido, cruzando as pernas e afastando-se do corpo que a impedia de pensar com clareza.
– Kim, o que quer que elas te tenham dito sobre ti... não é verdade.
Kim engoliu em seco e acenou negativamente, novamente sem conseguir controlar a respiração ansiosa.
– É, porque me lembro. Eu sou deficiente.
Jake cerrou os maxilares e todo o seu corpo ficou tenso quando a ouviu usar aquela palavra novamente para se descrever. Ouvira-a demasiadas vezes durante aquele dia interminável e não queria que Kim se referisse a si mesma daquela forma. O que ele tinha que fazer para que acreditasse que não havia nada defeituoso nela? Talvez se ela conseguisse ver através dos seus olhos tudo fosse mais claro...
– Ouve-me com atenção, Kim – ele enlaçou o rosto ferido com as mãos grandes, sentindo toda a vulnerabilidade que emanava dela atingirem-lhe como um açoite. – Tu. Não. És. Deficiente. Tu és... – perfeita, acrescentou a sua mente rebelde. – Não tens nada a ver com elas. Nada, ouviste?
Kim tornou a negar com veemência, fugindo da intensidade do olhar que lhe dizia demasiado. Ele não percebia... Ele não conseguia perceber e ela sabia que não lhe conseguiria explicar. Tudo ainda parecia confuso na sua cabeça e temia demasiado a reação dele quando soubesse o que ela era. Será que lhe puxaria os cabelos com violência e a ameaçaria como fizera com as gémeas?
– Eu sou deficiente, Jake! Eu realmente sou, mas... – insistiu a morena, desvencilhando-se das mãos dele, quebrando o contacto físico para que pudesse pensar. – Não quero que me faças mal por saberes. Por favor, promete que não me fazes mal.
Jake franziu o cenho com o pedido dela, sem saber se devia sentir-se ofendido ou preocupado pelo terror que assombrava a expressão dela, as feições tão pálidas e a respiração entrecortada a tornarem claro o pânico que ela sentia.
– Hey, que conversa é essa?
– Promete!
– A sério, Kim? – frustrado, passou as mãos pelos cabelos revoltos e pensou nos últimos minutos de angústia em que ela permanecera desmaiada e ele não pudera fazer nada senão esperar. – Depois de tudo... como é que ainda duvidas disso?
Kim pensou imediatamente que o zangara mesmo antes de lhe contar a verdade. Tudo nos gestos dele o demonstravam, no entanto ela sabia que havia algo mais. Na verdade ele mostrava-se magoado e ela não percebia a emoção porque só o vira assim quando estivera prestes a perder Rachel, quando perdera Aidan e não controlara as lágrimas que ela não conseguia chorar.
Ela suspirou fundo e fitou as mãos, envergonhada por magoá-lo. Ele dissera-lhe pela manhã que nunca a iria magoar de propósito e ela queria muito acreditar que Jake ia manter a promessa depois de saber tudo sobre ela. Ela queria acreditar.
– Eu lembrei-me de tudo – murmurou, colocando uma mecha do cabelo sujo atrás da orelha. – Tudo o que aconteceu antes de me encontrares... Porque é que não como, ou não me lembro de nada, até porque as gémeas me tentaram matar. Eu finalmente percebo.
Jake fechou os olhos e cerrou os punhos sobre o colo, de repente sem alento para ouvi-a. Finalmente quando ela sabia toda a verdade sobre si mesma ele queria que ela voltasse a esquecer, que não o dissesse.
– Nunca mais vais ter de te preocupar com elas. – Foi a única coisa que ele conseguiu dizer, porque era a única que ele tinha a certeza de ser verdade.
– E tu tens razão – Kim continuou, ignorando-o. – Eu não sou mesmo como elas e é por isso que eu tenho que morrer. Porque elas são perfeitas e eu sou só um defeito.
Ela não viu a expressão de Jake modificar-se enquanto os olhos azuis escureciam e o maxilar anguloso se fechava. Ele sabia que havia algo de muito errado com o passado de Kim e agora que ela ganhava a mesma consciência preferiu que nunca o tivessem sabido. O dia ainda ia a meio e ela já vivenciara tanta coisa que só queria fazê-la esquecer para sempre. Depois de tudo o que ela lhe dissera pela manhã ele queria que ela não se lembrasse.
– O homem que me fez mal... – ela fechou o punho sobre a sua pélvis, repousando a mão trémula entre pernas cruzadas, e engoliu em seco quando o silêncio no quarto se tornou demasiado inquietante. – Ele ia matar-me. Todas aquelas raparigas mortas... Eu tinha que morrer, Jake. Eu sou um erro, e isso eu já sabia – o sorriso triste não chegou para iluminar-lhe o olhar. – Mas não sabia que me queriam matar... p-porque eu não quero morrer.
Ela esperou que Jake dissesse algo que lhe acalmasse o tumulto interior, mas tudo o que restou foi o silêncio.
– Isto no meu braço não é uma tatuagem, é só o meu nome – ergueu o pulso queimado e estudou-o como fizera inúmeras vezes desde que se lembrava. – O Paul explicou-me que há pelo menos cinquenta como eu, vindas daquela fábrica.
– Fábrica? – pela primeira vez Jake fitou-a com intensidade ao ouvir algo que nunca conjeturara.
– Sim, eu fugi de uma fábrica quando... tu sabes. E eu tinha que morrer. – ela relembrou, num fio de voz. - Existem mais raparigas iguais a mim, como a Missy. – ela explicou-lhe todas as memórias infelizes que associava à sua irmã, que a atacara sem pestanejar. - Eu sei que existem cinquenta como eu e é isso que isto quer dizer. Isto é a identificação da minha série, eu sou o número quarenta e dois da minha série. Eu devo ser o único defeito da minha série. A única deficiente...
Kim distraiu-se a afagar o pulso mutilado com uma identificação que não fazia sentido. A identidade dela não estava naquele conjunto de números e letras. Apesar de tudo o que Paul lhe dissera ela era a Kim. Ela queria muito ser só a Kim que, ainda que temesse o mundo, sabia que poderia contar sempre com Jake, a melhor pessoa desse mundo onde tudo era violência e dor.
– Q-quem é que te disse isso?
– Isso não interessa, porque me lembrei – disse num fio de voz, desviando o olhar do dele, que quase a queimava. - Eu lembrei-me de onde vi e o que sou! Eu finalmente lembrei-me e eu não sei o que fazer com isto. Eu... - a morena engoliu em seco e Jake percebeu que ela não se conseguiria conter durante muito tempo. E se Kim desabasse ele não sabia como reagir, porque ainda tentava descobrir o que fazer com tudo o que ela lhe dizia e que não fazia sentido. - Eu não sou como tu, Jake. Ou como a Rachel ou o David. Nem tenho uma família, nem amigos, nem pessoas que estejam à minha espera. Eu não sei mesmo o que fazer agora... Eu fui criada num laboratório, assim – apontou para o corpo magoado e acabou por abraçar-se a si própria quando sentiu o desprezo da parte dele feri-la. Queria poder parar de falar no seu passado e apenas abraçá-lo até que o medo se fosse. – Eu não tenho amnésia. Eu só não tenho nada para me lembrar. Antes de vocês não há mais nada para lembrar... - o tom dela era tão sumido que Jake quase não a ouviu.
O silêncio imperou novamente no quarto quando Kim não pôde continuar. Jake sentiu uma enxurrada de perguntas invadi-lo e não conseguiu formular nenhuma.
- Eu acho que podemos falar nisto depois, Kim – o moreno disse finalmente, quando o silêncio tornou o ambiente abafado e tenso.
- Espera, Jake. – Kim não conseguiu repelir a vontade de lhe tocar uma vez mais quando o sentiu levantar-se do colchão e puxou-lhe a t-shirt para que ele se tornasse a sentar.
Num impulso, ela colocou-se de joelhos sobre a cama e fitou-o profundamente como que pedindo autorização para o seu desejo. Com o coração a ribombar contra o peito magoado, ela enlaçou-lhe o rosto másculo e puxou-o para si. Kim ousou beijar-lhe os lábios com delicadeza, roçando-os devagar para que a dor fosse branda e quase nula de encontro à sensação de o ter tão perto.
Jake manteve-se indiferente ao toque dos lábios dela contra os seus, à espera de uma resposta, durante algum tempo. Muito depois, quando sentiu que ela não sabia o que fazer, correspondeu ao carinho inocente da rapariga que ele mal compreendia, sentindo o sabor férreo dos lábios feridos, sentindo a súplica evidente da parte dela.
Kim afastou-se, encostando a testa escoriada à dele, para conseguir dizer:
- Agora que sabes o que eu sou, por favor, não deixes de gostar de mim. – Os lábios tocaram os dele, entreabertos, por entre as palavras trémulas que ele não ouviria se não estivessem tão próximos.
Jake não respondeu e apenas diminuiu a distância entre ambos, roçando o nariz no dela, perdendo-se na intensidade do momento até se lembrar de tudo o que aquilo representava. Tudo o que representava para ele e que não era igual para ela.
Por tudo isso, ele apenas inspirou fundo e saiu finalmente da cama, não sem antes afirmar:
- Descansa.
***
NOTA DE AUTORA
Eu sei que este capítulo soa todo lamechas, mas na verdade ele nem sequer é bonito ou cor-de-rosa. O Jake não reagiu, mas reagiu à maneira dele. Porque acham que ele teve aquela reação sem reação?
Eu sei que já vou tarde para dizer isto, mas sei que tenho leitoras que lêem a Up por causa do romance e outras que lêem pela salganhada misteriosa que para aqui criei. Eu gosto de pensar que também tenho leitores que gostam das duas vertentes, porque a Up é isto tudo junto. Quem está apenas à procura de uma das partes espero que saiba que vai sair desiludido.
E agora eu gostava que pensassem em como gostariam que a Up terminasse. Eu finalmente decidi como ela vai acabar, mas gostava de saber o que vocês gostariam para o final disto. Eu só sei que vou tentar fazer o final mais correto que conseguir ;)