Os Quatro Amores

By RomanceLP

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Livro de antologias composto por histórias exclusivas de autores convidados! Desafiados a escrever sob inspi... More

Apresentação
TEMPORADA 1
Em Ótima Companhia, por @NaiaraAimee
Yes to Heaven, por @tempestfay
Para Descobrir o Amor, por @LygiaCSantiago
TEMPORADA 2
1, 2, 3... ação, por @BiaDLima
Birthday, por @DiedraRoiz
Primeiro Encontro, por @lxleandro

Desabrochar, por @AnaBeatrizMineu

122 11 3
By RomanceLP

Capítulo Um: Ervas Daninhas


4° Motivo da Rosa - Cecília Meireles

"Não te aflijas com a pétala que voa:

também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,

mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos

ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,

por desfolhar-me é que não tenho fim."


Eu não tenho ideia de como foi que o caos que é a minha vida se materializou no meu jardim, mas basta espiar entre as frestas das cortinas para receber este amigável lembrete.

Eu estaria mentindo se dissesse que tentei, depois que ele partiu, levando minha menina, cuidar das orquídeas ou das bromélias... O fato é que eu mal levantava sequer para me alimentar.

Isso só durou alguns meses, juro. Infelizmente, quando me dei conta de que havia um mundo além das minhas pequenas janelas e pesadas cortinas, os galhos e o mato já haviam me rodeado a tal ponto que eu não fazia ideia de como me livrar deles.

Basicamente, eu vivo cercada pela minha própria incompetência. Deixei que as ervas daninhas crescessem dentro e fora de mim, amargurada porque perdera o homem e a família que amava.

Não deveria ser uma grande surpresa para mim, quando arrisquei uma olhadela pela janela hoje cedo e vi o locador, seu Biné, salteando por entre os galhos retorcidos em direção à porta, com uma maleta a tiracolo, dessas que os homens sérios carregam para cima e para baixo.

Seu olhar traduzia más notícias; para mim, é claro.

Vi seu Biné tocar a campainha e tirar do bolso um lencinho, que apertou sobre a testa enquanto torcia os lábios para o labirinto que acabara de atravessar.

- Bom dia, seu Biné! - Eu abri a porta oferecendo meu melhor sorriso.

Ele respondeu com um sorriso também, sentou no sofá e aceitou de bom grado o suco de laranja que levei.

- A casa está em um estado mais que razoável, - disse ele, saboreando os biscoitinhos de acompanhamento. - Dá até para dizer que está melhor que quando seu Marcos e a menina moravam aqui; mas o jardim...

Eu dei um sorriso culpado e encolhi os ombros.

Nunca liguei muito para o jardim, era o Marcos quem gostava de regar, podar e conversar com as plantas. Sempre achei a maior besteira, mas admirava isso nele. Sentia saudade disso; de como ele costumava cuidar do meu jardim por mim.

Seu Biné pôs o copo sobre a mesa, ignorando o porta-copos à direita dele. Tive que conter o impulso de colocá-lo eu mesma e segurei meu próprio punho sobre as pernas enquanto observei-o abrir a pasta sobre o colo e retirar alguns papéis de lá.

- Sabe, não me alegra nem um pouco ter que dizer isto, dona Helô...

Ótimo. Não basta o tom de "você está ferrada" desta conversa, eu ainda tenho que ouvir tamanho velho me chamando de "dona"!

- Por Deus, seu Biné, fale logo o que foi!

Ele uniu as sobrancelhas e estendeu um dos papéis até mim.

- Como você sabe, - ele continuou em um tom delicado - seu contrato exige que você mantenha em bom estado a propriedade.

Houve uma pausa antes dele prosseguir:

-Toda a propriedade.

Senti o peso daquelas palavras fazer meu corpo afundar na poltrona.

Eu cuidava da casa, do meu cantinho; era tudo muito limpo e organizado, mas lá fora... Eu não me atrevia a mexer lá.

Eu não gostava nem de lembrar do meu terraço, passava por ele com muita pressa sempre que ia trabalhar e praticamente corria em direção ao meu refúgio na volta. Queria me esconder da bagunça que eu mesma criei, assim como fiz com o Marcos e a Maria Lúcia.

- Mas... – supliquei. - Eu sempre paguei o aluguel em dia e o senhor mesmo disse que a casa está em perfeito estado!

Biné suspirou.

- Eu sinto muito, dona Helô, - e ele parecia sentir mesmo - mas é o que consta no contrato e o proprietário já se decidiu. Você tem um mês para organizar sua bagunça ou terá que se retirar.

Com um leve aceno de cabeça, o seu Biné se despediu e eu o observei pular de volta até o portãozinho da frente, deixando-me com uma cópia do contrato.

Ainda anestesiada, coloquei-a em cima do rack com cuidado e meus olhos ficaram fixos naquela cópia, como se ela pudesse me atacar e me expulsar de casa a qualquer instante.

Então, meus olhos correram para o porta-retrato atrás dela.

Dando um sorriso tristonho, peguei-o e passei o polegar sobre a imagem de Marcos com carinho e então sobre a da Malu, que estava sorridente no colo dele.

A falta que os dois faziam doía quase fisicamente.

Eu os queria de volta, mas não tinha coragem de ir atrás deles. Eles não mereciam que eu os incomodasse com meus dramas e muito menos incertezas.

Ainda com o porta-retrato em mãos, forcei-me a caminhar até o centro do jardim e lá sentei com as pernas cruzadas, prestando atenção em cada folha que me cercava.

Era a primeira vez que eu realmente notava aquilo, o quanto eu deixara as circunstâncias simplesmente me engolirem nos últimos dois anos – e agora precisava virar o jogo em um prazo de um mês.

Capítulo Dois: Dona Rosa

Apertei os olhos, ajeitei os óculos e me inclinei sobre o parapeito para tentar ver a besteira que a doida da Heloísa estava fazendo lá embaixo no terraço dela.

Saltitava de um lado a outro com umas botas que pareciam ser dois números maior que o seu e tinha um pano amarrado na cabeça que volta e meia engatava na pá que carregava.

Ignorei quando meu filho, Davi, pediu que eu me afastasse de janela e segui observando atenta.

Já estava acompanhando-a desde antes dele acordar.

Ela saíra mais cedo e voltara com alguns instrumentos novos de jardinagem. Eu soube naquela hora mesmo, só de ver o jeito que ela os carregava, que ela não sabia o que estava fazendo, mas jamais seria capaz de imaginar o desastre que ela iria causar.

- Aonde vai, mamãe?

Eu empinei o nariz, me movendo com a pressa que minhas velhas articulações permitiam.

— Eu te convidei para passar um tempo comigo, — respondi — não para me regular...

Davi jogou o celular sobre a mesinha.

— Meu Deus, mamãe! — ele levantou, vindo em meu encalço. — Só perguntei aonde a senhora vai...

– Ora, aonde eu vou! – resmunguei. – Se tu tivesses tirado a fuça desse celular por um minuto, saberias muito bem... Faz é hora que estou vendo aquela maluca lutar contra o próprio jardim e tu nem tomaste conhecimento!

Davi reprovou-me com o olhar.

– Mamãe, você sabe que estou vendo coisa do trabalho...

– Nas férias? Meu filho, pelor amor de Deus, larga esse negócio e vai ver a vida lá fora!

– Que vida lá fora? Não tenho nada a ver com a vida da moça. Aliás, a senhora também não. Que diabo que a senhora faz se estressando com a coitada da vizinha? A senhora não tem mais idade para essas coisas... Deixa a mulher em paz, eu hein! Vá repousar que você ganha mais e não leva bronca do médico...

– Davi, tu não começas, não, viu? Se quiseres ir comigo, que venhas de bico calado! Eu que não vou ficar aqui o dia todo olhando para a tua cara.

Vi pelo canto do olho que ele fez bico e bufou, mas continuou ao meu lado revirando os olhos ocasionalmente.

Ainda me impressionava, depois de tantos anos, o quanto parecia com o pai.

Chegando ao portãozinho da frente, ele bateu palmas para chamar Heloísa, mas eu, impaciente, tomei a liberdade de passar a mão pela grade e abri-lo eu mesma.

– Mamãe, deixe de ser mal-educada! Quando foi que a senhora ficou assim, entrando na casa dos outros sem ser convidada?

Torci os lábios.

– Se ela não quisesse que as pessoas entrassem assim, teria botado ao menos um cadeado. Quieto!

A moça se aproximou de nós com um sorriso tímido, tirando as luvas sujas de terra, e eu ajeitei o óculos, que escorregara pelo meu nariz.

– Bom dia! – ela nos saudou com uma voz adocicada. – Posso ajudar em algo?

Estreitei o olhar.

– Pode sim, minha filha!

Vi Davi cobrir o próprio rosto com uma das mãos e esfregar os olhos.

Heloísa inclinou a cabeça, visivelmente incomodada.

– Diga, por favor – pediu.

Antes que eu pudesse responder, meu filho se esgueirou e ficou entre nós duas, estendendo a mão para ela e dando um sorriso largo.

– Prazer, eu sou o Davi! – ela apertou-lhe a mão e disse-lhe o próprio nome. – Minha mãe viu você pela janela e ficou interessada no seu trabalho de jardinagem...

– Jardinagem?! – eu o empurrei para o lado para encará-la propriamente. – Como podes chamar isto de jardinagem? Ela acabou de destruir o único pé que talvez desse para salvar neste ninho de rato!

Ela se encolheu e esfregou as mãos como se estivesse com frio.

– Bom... – ela baixou o tom de voz. – Meu ex-marido é quem costumava tomar conta do jardim. Não dei muita atenção, mas agora o proprietário está fazendo certas exigências e serei despejada em um mês se não der um jeito nisso. Eu confesso que... É, eu não sei muito bem o que estou fazendo...

– Claramente!

– Mamãe...! – Davi tentou me refrear entredentes, mas ignorei, como de costume.

Onde já se viu tua própria cria se comportar como se tu fosses a cria dela? Era só o que me faltava!

– Pois, anda, menina – ordenei. – Dá aqui esta pá.

Por um instante, pensei que Davi teria um derrame ali mesmo.

– Que história de pá, mamãe! Re-pou-so. Esta palavra sequer existe no seu vocabulário?

Ele então virou-se para Heloísa:

– Olha, mil desculpas, moça! Minha mãe anda mais teimosa e desbocada que nunca ultimamente e...

Eu me estiquei para dar um tapa na nuca de Davi.

– Isto é jeito de falar da tua mãe, seu desnaturado?! Se estás tão preocupado com minha saúde, pega a pá tu mesmo então! E cuida, que temos muito o que fazer.

Heloísa, no seu típico tom cuidadoso, agradeceu, mas recusou a ajuda, sob a justificativa de não querer dar trabalho.

– Senhorita, acho que não estás entendendo – dei dois passos em sua direção. – Há dois anos, sonho em me aproximar de minha janela e ver um jardim minimamente decente ao invés desta vista de casa abandonada dos infernos. Não estou oferecendo ajuda, estou te obrigando a aceitá-la.

Dito isso, caminhei até a rede da varanda e pude sentir que Davi e Heloísa se entreolhavam em um silêncio cúmplice pouco atrás de mim. Reprimi um sorriso vitorioso.

Sentei-me e estiquei as pernas.

– Larga o que estavas fazendo – eu disse a Helô. – Começa pelas ervas daninhas. É preciso tirar tudo! Se deixares um pedacinho que seja, crescerão e a engolirão antes que percebas.

Davi se abaixou ao lado dela.

– Não, não! – eu o repreendi. – Tu vais fazer outra coisa. Este trabalho é só para ela.


Capítulo Três: Glorioso São José

Estávamos refazendo meu jardim já havia uma semana. Sim, estávamos, no plural.

Dona Rosa é dessas pessoas indelicadas com as quais você não tem a mínima vontade de agir indelicadamente; eu me senti incapaz de expulsá-la do meu terreno e de não acatar suas ordens. Já deixava o portãozinho aberto de manhã, aguardando pelos dois.

Davi parecia insatisfeito nos dois primeiros dias, mas agora parecia animado. Ele até me deu uma carona no dia em que saí para comprar uma cadeira de balanço para Dona Rosa – ela reclamava de dor nas costas por causa da rede – e me deu carona à noite até a pizzaria em que eu trabalhava também algumas vezes.

Ele me contou que era advogado e pediu suas férias acumuladas naquele período porque nenhum dos irmãos estava disponível para tomar conta da mãe.

Dona Rosa estava doente e muito sozinha, pediu que Davi passasse o mês todo com ela e ele sequer pensou duas vezes.

Eu estava particularmente admirada com ele; não só pelo que estava fazendo pela mãe, mas também pelo que estava fazendo por mim.

Começava a acreditar que conseguiríamos fazer aquilo. O meu jardim já começava a tomar forma e eu podia até me imaginar ligando para o Marcos e convidando-o para trazer a Malu. Sentia que, se eu pudesse arrumar a minha bagunça, talvez ele me aceitasse de volta em sua vida e voltaríamos a ser uma família feliz.

Depois de ouvir atentamente as dicas – e também imposições da Dona Rosa – eu já arriscava algumas ideias próprias. Afinal, era a minha confusão que estávamos limpando, era o meu jardim.

— O que é que estás cavando tanto aí? — perguntou a Dona Rosa.

— Um lago — respondi sem dar muitos detalhes.

Queria que Malu e o pai brincassem ali. Ela daria ração para os peixes e ele sorriria enquanto eu tirava fotos dos dois.

Marcos tomaria o celular da minha mão e diria que agora era a minha vez. Tiraria nossas fotos e diria como estávamos lindas. Malu me abraçaria forte e daria um beijo na minha bochecha para uma das fotos, que ficaria tão bonita que levaríamos para revelar e colocaríamos num porta-retrato na sala.

Carregaríamos a Malu e fingiríamos jogá-la no lago até ela sentir a barriga doer de tanto rir e brincaríamos naquele jardim até a hora do jantar.

– Ah, droga! – eu acordei do meu transe, sentindo algumas gotas de chuva caírem sobre a minha pele. – Eu odeio chuva!

Dona Rosa deu um salto.

– O que é isso, menina? Estás doida?! Vira essa tua boca para lá, que chuva é dádiva!

Fiquei paralisada com a maneira que ela havia falado. Não sabia dizer se era uma de suas explosões comuns ou se estava realmente ofendida.

Davi lentamente engatinhou em minha direção e explicou perto do meu ouvido:

– Minha mãe é nordestina, do interior do Maranhão, sabe?

Eu apenas assenti, ainda meio confusa com a reação dela.

Dona Rosa continuou:

– Chuva no 19 de março é sinônimo de boa colheita pelo resto do ano – ela olhou para cima e ergueu as mãos. – Glorioso São José, dai-nos chuva em abundância, oh, Glorioso São José!

Eu nunca havia ouvido falar em nada disso, mas bem que não queria ofender nenhum santo. Fiz o sinal da cruz e Davi riu baixinho ao meu lado, afastando-se ainda com um sorrisinho no canto dos lábios para continuar adubando uma roseira.

Fiquei intrigada com a reação dele.

Estava rindo de mim ou da mãe? Algo me dizia que era de mim.

Quando a chuva engrossou e eu os convidei para entrar, Rosa ficou no sofá vendo o noticiário.

A previsão era de tempestades aqui no Sudeste.

Esse São José não brinca em serviço, viu...

Davi veio até a cozinha para oferecer-me ajuda e espremeu as laranjas para fazer o suco enquanto eu colocava alguns pães de queijo no forno.

– Está ficando muito bonito – ele disse, encostando-se na bancada ao meu lado. – O jardim, quero dizer.

Eu sorri e cruzei os braços, encostando-me também, ficando de lado para ele.

– Obrigada pelo que está fazendo por mim. Você não tem ideia do quanto significa.

Ele deu de ombros.

– Eu que agradeço por aturar minha mãe. Você é que está fazendo muito por ela, deixando que ela dê ordens a você para cima e para baixo... Ela estava precisando de algo para se ocupar e brigar com pessoas mais novas é o passatempo preferido dela...

– Ah, que nada! Ela é uma senhorinha amável depois que você realmente a conhece.

Davi estreitou o olhar para mim. Seus lábios entreabertos se desenharam num sorriso torto novamente e ele deixou escapar uma risada breve.

– Você é uma boa mentirosa... – ele elogiou em tom brincalhão.

Eu ri e encarei o chão. Ele apenas me deu um empurrãozinho leve com o ombro e desviou o olhar, rindo mais um pouco.

Ficamos em silêncio por um tempo, ouvindo apenas o barulho da chuva lá fora, e eu percebi que ele me observava discretamente pelo canto do olho.

– Melhor irmos – ele disse por fim. – Se a Dona Rosa ficar mais alguns minutos sem uma distração na sua sala, vai começar a pensar em dicas de decoração também.


Capítulo Quatro: Águas de Março

Levantei num salto, assustado com um trovão.

Ainda meio atordoado, dei uma olhada no relógio. Eram cinco e meia; não fazia sentido levantar ainda. Era óbvio que não ia dar para fazer absolutamente nada no jardim da Heloísa, portanto, puxei o lençol e me cobri novamente.

De repente, um relâmpago iluminou o quarto inteiro e mais uma vez um estrondo incomodou meus ouvidos.

Virei para o lado com os olhos semicerrados e vi quando o vento arremessou com força uma folha na janela do quarto. A chuva estava pior do que eu havia imaginado.

Perguntei-me como estaria o jardim e sentei-me na cama, meio sonolento, aproximando o rosto da janela.

Apesar de estar embaçada, pude ver Heloísa sozinha lá embaixo, lutando contra a ventania para cobrir as plantas como podia; com caixas de papelão, galões de água vazios ou, aparentemente, qualquer coisa que via pela frente.

Nem mesmo lembrei de pegar um guarda-chuva comigo; não que adiantasse, o vento era tão veloz que provavelmente teria levado-o para longe. Quando dei por mim, já estava metendo a mão na grade do portão e com os pés afundando na lama, correndo na direção dela.

— Deixe isso para lá, Helô! — eu gritei, mas ela nem sequer pareceu ouvir, continuou correndo de um lado para outro de uma maneira quase robótica. Seu olhar estava vidrado, como se ela não pensasse em nada além de proteger o jardim.

Gritei o nome dela algumas vezes, tentando tirá-la do seu transe, mas foi apenas quando eu a segurei pelos braços e a sacudi de leve, gritando "chega, Helô, não adianta!" que ela voltou a si.

As pernas dela cederam e ela começou a chorar desesperadamente.

Eu a segurei e a abracei com força, impedindo que caísse ajoelhada no chão.

Com dificuldade, eu a levei até a casa da minha mãe e a deixei sentada na mesa da cozinha, soluçando, enquanto ia buscar as toalhas.

Quando voltei, minha mãe já estava em pé ao lado dela, acariciando seu cabelo.

– Minha querida, – ela disse à Helô –, eu já te expliquei que chuva não tira a vida, apenas dá. Não tem porquê se desesperar, ainda temos duas semanas...

Heloísa abaixou a cabeça e seus ombros sacudiram de uma maneira que cortou meu coração.

Corri para cobri-la com a toalha.

– Ele não vai voltar... – soluçou ela. – Ele nunca vai voltar para mim porque eu não sei fazer nada direito!

Ela cobriu o rosto com as mãos e eu vi seus ombros sacudirem mais uma vez, em um choro completamente desesperado.

Minha mãe puxou uma cadeira para sentar do lado dela e eu fiz o mesmo, passando o braço ao redor dela e puxando-a para perto de mim.

Ela deitou a cabeça no meu ombro e olhou para a minha mãe, que segurou uma de suas mãos com ternura.

– Um jardim requer cuidado constante, Helô, é uma tarefa para a vida toda. Às vezes, as circunstâncias vão tentar destruí-lo, mas tu nunca deves deixar de amá-lo e de cuidar dele por isso. É uma promessa que deves fazer a si mesma, de jamais desistir do teu jardim. Cada um tem seu próprio jardim dentro de si e não há nada que possa impedir a primavera. Não importa o quão frio é o inverno, é ele que dá as condições para que as rosas floresçam novamente depois. São as pétalas caídas que nutrem as que nascem, num eterno ciclo em que não há nada além de vida.

Helô apertou a mão da minha mãe com carinho e eu afaguei seu ombro, tentando motivá-la.

Depois de se acalmar, ela nos contou mais sobre o ex-marido e o quanto ela havia sonhado que ele voltaria naqueles últimos dois anos.

— Mas talvez seja hora de seguir em frente — ela completou, desviando o olhar para as próprias mãos. — Tudo que quero agora é ver a Malu. Não tenho como mudar de cidade, mas posso fazer ela se sentir em casa quando vier me visitar também.

Aquilo me deu uma ideia. Saí de perto discretamente e fiz uma ligação a um amigo.

No dia seguinte, estávamos os três no jardim de Helô. Minha mãe sentada na cadeira como de costume e Helô e eu dividindo tarefas. Um cavava e o outro plantava.

Quando ouvi o barulho do caminhão se aproximando, virei para Helô e pedi que buscasse um suco para mim porque estava com a garganta seca, já sabendo que ela não se contentaria em me dar um suco que não estivesse fresquinho.

Enquanto ela estava na casa, eu corri para pagar o cara sob o olhar curioso e silencioso de Dona Rosa – posso jurar que vi um sorriso malicioso em seu rosto – e ajudei-o a carregar minha surpresa para Helô até um canto do terreno no qual ainda não havíamos trabalhado, próximo ao lago.

Ela quase derramou o suco quando voltou.

Lá estava Dona Rosa, sorridente, sentada num balanço colorido e eu casualmente empurrando-a.

– Acho que a Malu vai gostar – brincou minha mãe. – Está aprovado!

A Helô riu, maravilhada. Pôs o copo na varanda e correu com um sorriso de orelha a orelha em nossa direção.

Observei-a encher a mamãe de beijos na cabeça.

Meu coração acelerou, admirando o sorriso enorme dela.

– Eu não consigo nem acreditar! Vocês são as pessoas mais incríveis do mundo, a melhor coisa que já me aconteceu!

Ela me abraçou forte e eu retribuí com o mesmo entusiasmo.

Sabia o quanto significava aquilo para ela; ter um espacinho para brincar com a filha. Ela merecia isso.

A Helô era dessas pessoas que estavam tão acostumadas com o inverno, que ficavam desconfiadas quando chegava a primavera. Acho que, como a minha mãe, eu queria ser um pouquinho da primavera para ela, trazer um pouquinho de felicidade para o mundinho dela.

Eu bem deveria ter me lembrado, na primeira vez que segui minha mãe por aquele portãozinho, que ela "jamais dava ponto sem nó". Eu não havia dado a devida atenção quando ela disse que só Helô poderia consertar o jardim, mas que eu poderia ajudar.

E, nossa! Como eu queria ajudá-la com seu jardim!


Capítulo Cinco: O Desfolhar da Rosa

Voltei da pizzaria às 23h e me dei o luxo de apreciar o contorno que meu jardim estava tomando novamente por alguns minutos. Mesmo à noite, era magnífico de admirar.

Dois dias antes, eu havia tomado coragem para ligar para Marcos. Disse a ele que queria que viajasse com Malu para me visitar em duas semanas e que tinha uma surpresa para ela.

Ele ficou realmente feliz de eu ter ligado.

Era um homem respeitoso e um pai excepcional; sempre quisera me aproximar mais da Malu, embora eu não me sentisse preparada – por mais que eu desejasse essa reaproximação.

Abaixei-me perto do canteiro das rosas para sentir seu aroma, lembrando-me de como costumava pensar que aquele jardim refletia minha situação. Se antes ela era caótica, agora era um projeto em reconstrução – e eu estava aprendendo a estimar os mínimos detalhes da minha pequena e ordinária existência, do meu espaço.

Não entendia que precisava amar o meu espaço antes dele se tornar um "nosso". Agora que ele tinha mais a minha cara, eu podia ver com clareza com quem gostaria de compartilhá-lo.

Caminhei até a varanda e abri a bolsa para alcançar a chave quando notei um papel passado por baixo da porta. Apanhei-o.

Levando a mãe para o hospital.

Ass: Davi

Senti um aperto no coração.

Joguei logo a chave de volta na bolsa e fui para o hospital o mais rápido que pude. Só havia um na cidade, então não foi muito difícil.

Chegando lá, me informei na recepção e fui para o quarto.

Dona Rosa abriu um lindo sorriso ao me ver.

Não fosse pela bolsa de soro ligada a seu braço, eu diria que estava muito bem.

Dei um abraço em Davi e afaguei sua bochecha brevemente.

Apesar do aparente bem-estar da mãe, o semblante dele era de alguém cansado e preocupado.

Rosa apresentou a mim os outros dois filhos, que me cumprimentaram cordialmente, e pediu aos três que se retirassem para que pudesse falar comigo.

Achei estranho e percebi que eles tiveram a mesma sensação, mas eu já havia me convencido de que a Dona Rosa tinha suas peculiaridades mesmo.

– Eu espero que não fiques chateada com o que tenho para contar... – ela pegou minha mão, quando já estávamos a sós. – Seu Biné me representa. Eu sou a proprietária da tua casa...

Eu ergui as sobrancelhas.

A informação me deixou desnorteada por alguns segundos, mas acho que jamais seria capaz de ficar chateada com ela; não depois de tudo que ela fez por mim.

Quero dizer, sim, eu só estava reformando meu jardim porque ela ameaçara me deixar sem teto, mas com o tempo, essa deixou de ser a minha motivação.

Graças a Dona Rosa, eu não estava mais cuidando apenas de um jardim, estava cuidando de mim.

– Eu queria... – continuou Dona Rosa. – Eu queria ver aquele jardim bonito de novo e acho que... Acho que me convenci de que precisava te fazer construí-lo. Desculpa se passei dos limites...

Eu sorri e acariciei sua mão.

– Eu precisava disso, Dona Rosa. De verdade, muito obrigada!

Os olhos dela se iluminaram.

– Helô, eu já falei com o seu Biné – disse. – Ia te contar quando completasse o mês, mas agora suspeito que eu não vou estar aqui por mais de uma semana...

Eu esperei pacientemente.

– Vou deixar a tua casa para ti, minha querida. É tua!

Eu cobri a boca com uma das mãos.

– Dona Rosa! Eu... Eu... Mas e os seus filhos?

– Ah, não se preocupe, Helô. Minha casa, vou deixar para o Davi e tenho mais duas locações para o João e o Gabriel... Fora o sítio que dividirei entre os três.

– Minha nossa... Eu... – eu ri, nervosa. – Eu nem sei como agradecer!

Podia até sentir as lágrimas se formarem em meus olhos e um nó em minha garganta.

– Cuida do jardim que está de bom tamanho – respondeu ela em seu tom mandão habitual.

Eu ri, enxugando minha bochecha.

– Pode deixar, Dona Rosa. Nunca mais eu vou descuidar daquele jardim!

– Muito bem, moça! Mas só por garantia, vou pedir ao Davi que dê uma espiada de vez em quando...

Rosa sorriu com os olhos semicerrados, como se sugerisse que sabia de algo que eu não sabia.

Senti meu coração palpitar.

Antes que eu a interrogasse sobre isso, ela pediu:

– Agora, pede para os meninos entrarem, sim?

Dei um beijo demorado em Dona Rosa e saí para chamar os três.

Foi a última vez que a vi.

Dona Rosa faleceu naquela madrugada, pacificamente, enquanto dormia.

Prestei minhas homenagens no enterro, colocando sobre o caixão uma das rosas brancas que ela mesma me ajudara a cultivar, e ofereci a Davi minhas sinceras condolências.

Pensando em Dona Rosa, continuei com o trabalho no jardim logo na manhã seguinte, arriscando sempre uma olhadela para as janelas do andar de cima da casa dela.

Eu não iria mais ser despejada, mas, agora, aquelas flores tinham um significado novo para mim.

Por cada pedacinho de terra daqueles canteiros, havia um pouquinho da Dona Rosa, bem como em cada pedacinho da minha alma.

Faltando ainda um pouco menos de uma semana para a chegada da Malu, Davi passou pelo portãozinho de minha casa mais uma vez com um sorrisinho tímido.

Vendo-o sorrir daquele jeito para mim, eu entendi o que a mãe quis me dizer no hospital e tive certeza de que desejava ver aquele sorriso todos os dias.


Epílogo

De mãos dadas com Davi, eu esperei ansiosa pelo momento em que Malu sairia do carro.

Em todos os meus mais loucos sonhos, eu jamais teria previsto a reação da minha menina. Ela correu e abraçou as minhas pernas, como se houvesse me visto na semana anterior e não quase dois anos antes.

Eu a abracei forte e beijei seu rostinho enquanto Marcos descia do carro com uma malinha cor-de-rosa nas mãos e se apresentava para Davi.

- A casa está impecável. - elogiou Marcos, depois que convidei-o para entrar.

Sentado à mesa, ele explicou que ficaria em uma pousada e deixaria a Malu lá por todo o fim de semana.

Eu, então, expliquei que queria que ela visitasse mais vezes, principalmente quando estivesse de férias, e ele concordou que era um pedido razoável.

Vendo Marcos naquele momento, sentado em minha sala, pensei em quantas vezes havia desejado vê-lo ali. Não pude deixar de pensar, também, que ele ocupava um espaço especial em meu coração, mas de uma maneira diferente agora.

Ainda refletindo sobre isso, virei-me e olhei pela janela – agora com as cortinas todas abertas para ver bem o jardim do qual que me escondia – e sorri para a imagem de Davi empurrando Malu no balanço, como fizera com Dona Rosa duas semanas antes. Malu ria tanto que jogava a cabeça para trás.

Marcos e eu nos levantamos e nos juntamos aos dois do lado de fora.

Ao vê-lo, Malu correu para puxar o pai pela barra da calça, - Pai! Pai! Olha os peixinhos que a mamãe tem!

Ele admirou os peixes com ela por alguns minutos e então se despediu de todos nós, prometendo à Malu que voltaria para buscá-la na tarde do dia seguinte e dizendo a ela que se divertisse bastante comigo.

Enquanto ele partia e eu carregava Malu no colo, parei para contemplar o meu jardim uma última vez.

– Você gostou do jardim, Malu? – perguntei.

– É lindo, mamãe!

Eu então sorri para Davi.

– Foi ele quem me ajudou a construir. Ele e uma velhinha muito especial. Eles deram esse balanço de presente para você. Vai estar sempre aqui para você brincar.

Malu agradeceu a Davi, mas então fez uma careta.

– O que foi, Malu? – ele perguntou.

Ela olhou para cima e esfregou a mão no rostinho.

– Pingou água em mim...

Eu e Davi olhamos para cima também e sentimos as primeiras gotas de chuva lavar nossos rostos.

Fiquei alguns segundos aproveitando a sensação em silêncio.

Ao abrir os olhos, vi Davi abrir os braços em uma postura de agradecimento e reverência.

– Chuva é dádiva – eu disse baixinho.

– Chuva é dádiva – ele repetiu, segurando minha mão.

E, então, corremos os três na chuva, felizes, sem se importar com as roupas sujas de lama, rindo e rolando pelo nosso jardim.

Eu não tenho mais medo ou vergonha do meu jardim, das plantas que eu mesma semeei. Já não me aflijo com as pétalas que voam, pois sei que também é ser, deixar de ser assim. Reconheço que deixo aroma até mesmo em meus espinhos e agradeço porque o vento vai falando de mim. Entendo que, por desfolhar-me, não tenho fim.

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