Jake tinha de reagir. Tinha de começar a pensar finalmente com alguma coerência. Não permitiria que Aidan morresse daquela maneira. Não sabia como conviver com isso para o resto da vida. Caiu de joelhos perto do loiro e rasgou-lhe a t-shirt ensanguentada. Aidan percebeu-lhe o gesto e virou o rosto para ele, enquanto fazia um esforço sobre-humano para tentar respirar.
Numa asfixia crescente, Jake não sabia se lhe deveria desobstruir a traqueia para poder respirar livremente ou se lhe estancava a hemorragia. Com uma rapidez surpreendente, tirou a t-shirt que vestia e pressionou-a contra o peito baleado. Quase em simultâneo tirou-lhe a máscara ensanguentada do rosto para lhe facilitar a respiração e sentiu o pânico invadi-lo novamente.
- Tu não vais morrer, puto. TU NÃO VAIS! - As mãos tremiam-lhe enquanto lhe pressionavam o tecido, depressa ensopado, contra o grave ferimento. A respiração de Aidan saia aos borbotões, misturando-se com o próprio sangue que lhe assomava à boca. Jake tateou o chão à procura de algo afiado que lhe permitisse perfurar a garganta do amigo e o deixasse respirar, mas o loiro impediu-o. Aidan agarrou-lhe o braço com uma força ténue e apertou-lho o mais que pôde.
Jake sentiu as lágrimas de frustração e raiva queimarem-lhe a garganta e engoliu-as com esforço. Levou a mão à do amigo, no pedido de desculpa e de lamento mais sincero do Mundo. Quando deixou de sentir pressão sobre o braço permitiu-se finalmente chorar como não fazia há muitos anos.
As lágrimas fustigaram-lhe a face transpirada, inundaram-lhe os olhos azuis até ele deixar de ver com clareza. No entanto, continuou a pressionar o peito do amigo até os dedos ficarem brancos. Ignorando a dura realidade, iniciou uma massagem cardíaca que provavelmente lhe partiria o externo, mas o que tentava verdadeiramente ignorar era que o coração de Aidan parara para nunca mais bater. Jake não queria perceber isso e continuou, resoluto, até não conter mais os soluços da raiva mal contida. Até esmurrar o peito do amigo e soltar um grito excruciante.
Aidan.
Durante alguns minutos, que pareceram dias sob o calor intenso, Jake entrou num torpor doentio em que visualizava todas as suas ações anteriores e o que deveria ter feito para não ter conduzido o amigo àquele fim. Se ele não tentasse ser o melhor não teria que ceder ao apelo da criança doente e Aidan nunca teria sido ferido pelo pai desgovernado.
Morto.
Ele também pensou em tudo o que vivenciara com o loiro. O que era mais doloroso, para além da culpa que o asfixiava, era perceber que os últimos anos foram feitos essencialmente de Rachel, David e Aidan. Aidan estava presente em todas as suas memórias, nas boas e nas más. Nunca lhe dissera, mas ele era o irmão mais irresponsável e trapalhão que nunca quisera ter. Nunca lhe dissera o que era realmente importante, mas fora capaz de o agredir na noite anterior por causa de Kim. Dissera-lhe coisas de que se arrependera quase de imediato, e foram as últimas coisas que lhe tinha dito.
Inspirando o ar saturado da máscara que o protegia de tudo menos da dor, limpou as lágrimas que lhe escorriam pelo queixo e cerrou o maxilar para não gritar novamente. Depois de vinte anos, aquela não era a despedida certa. E nunca se conformaria. Nunca.
A decisão de sair de perto do corpo de Aidan foi demorada. Ele não soube quando tempo se tinha passado, mas na última vez que tocou no amigo para a despedida possível, o calor já o tinha abandonado. Subjugado por um novo instinto de sobrevivência, que se interpunha à dor e à culpa, arrastou-se para perto do homem que agredira até à inconsciência. Tocou-lhe o pulso e soube que não existia vida naquele corpo. Matara-o. A sua precipitação e raiva levaram-no a matar um ser humano e não conseguia sentir nada em relação a isso.
Ignorando o cenário de morte, pegou na arma que ele disparara e desarmou-a, vasculhou os bolsos dianteiros da camisa do homem, dos calções largos, com uma nova expressão carregada no rosto. Assim que encontrou um telemóvel, debruçou-se sobre a hipótese de ligar ao irmão para o vir ajudar, então pensou em Rachel e os olhos tornaram-se aguados novamente.
Limpou o suor que lhe escorria pelas têmporas, sujando a pele de sangue, e percebeu que tinha que ser autossuficiente. Por ele, por Aidan, pelo irmão e pela melhor amiga. Até por Kim.
Alheio a tudo o resto, caminhou mecanicamente até à casa onde o cão ainda latia sem parar. Eles tinham um carro no jardim e Jake precisava dele. Ele ainda olhou para trás, para as três pessoas estendidas no chão, e tudo o que conseguiu fazer foi continuar a olhar.
A criança morreria. A criança morreria ao lado do pai e o pobre animal agoniaria perto deles, provando a sua lealdade, mas Aidan não merecia aquele fim. Nunca mais conseguiria encarar os pais dele e Rachel se o deixasse na estrada, se não fosse sequer capaz de honrar a morte do melhor amigo.
Jake revolveu a casa do carrasco de Aidan e da criança, abasteceu o carro com tudo o que lhes permitisse sobreviver, e então fez o que tinha de ser feito.
***
Rachel e Kim estavam na sala de convívio do pequeno hotel há algumas horas. A morena parecia apática desde que Aidan e Jake saíram, e Rachel insistiu para que ela se abrisse, lhe contasse o que a atormentava. Kim não podia falar nas injeções que tomava regularmente para poder sobreviver, não podia falar que fora aquilo que a salvara, e por isso a conversa acabou por seguir o caminho natural: Jake.
Lá fora, o sol brilhava em tons dourados, anunciando a tarde que não demorava. E Rachel tinha fome. Não havia nada naquele hotel que lhes permitisse fazer um almoço decente, por isso ela foi-se valendo das bebidas do bar. Foi quando se preparava para ir buscar uma lata de iced-tea, que ouviu o som de pneus sobre a gravilha. Depois veio o silêncio, e então Jake entrou.
Kim foi a primeira a vê-lo, e o alívio estampou-se de imediato na sua expressão. Queria muito dizer-lhe que não vomitara o sumo, mas a loira adiantou-se.
- Finalmente, Jake! - Rachel aproximou-se do amigo e finalmente o assombro tomou conta dela. - Oh meu Deus... - ela observou-o atentamente e levou as mãos para cobrir a boca boquiaberta quando sentiu uma enxurrada de perguntas tropeçar-lhe na língua. - O que é que aconteceu?
Jake respirava fundo e olhava para ela. Simplesmente olhava, porque ela era a melhor pessoa a lê-lo. Rachel também olhava para ele, para as suas mãos e braços nus cobertos de sangue e poeira, para o seu peito igualmente sujo e despido. O suor escorria-lhe pelo pescoço e misturava-se com a pasta avermelhada que lhe cobria a pele. Só depois ela o olhou nos olhos e percebeu.
- Jake... - Ela tentou sorrir para ignorar os pensamentos que a tomaram de assalto ao vê-lo de olhos raiados de sangue. A dor que viu neles foi o suficiente para se aproximar do amigo, apesar da confusão.
- Não me toques - balbuciou ele, com uma rouquidão que não lhe era inerente - Por favor. - Ele não queria que ela lhe tocasse, não era justo para ela ter que tocar-lhe no corpo imundo, manchado com o sangue do próprio irmão. E também não era justo ele ter de carregar um fardo tão pesado, porque não queria sentir tanto e porque Rachel não merecia. Acima de qualquer coisa, ela não merecia.
- Onde é que está o Aidan?
O tom de voz da loira denunciava-lhe o pânico crescente e ele não lhe conseguiu responder. Finalmente fechou a porta atrás de si quando sentiu novas lágrimas se formarem. Ele engoliu-as e acenou negativamente com tanto pesar no semblante que Rachel copiou-lhe o humor.
- Eu... Lamento, Rachel.
Ele ainda a viu cair sobre o sofá, adotando uma expressão de apatia debilitante. Queria muito confortá-la, dizer-lhe que lamentava e explicar-lhe em detalhes o que vitimara o irmão. No entanto não o poderia fazer. Não quando a culpa o dilacerava por dentro, quando a raiva ainda borbulhava em doses desmedidas, fazendo-o desejar mais do que nunca voltar atrás no tempo e impedir que Aidan se fosse. Ainda não conseguia admitir para si que o melhor amigo se tinha ido para sempre, muito menos conseguiria forçar Rachel a aceitá-lo.
E foi por isso que se arrastou, com passos vagarosos, até à casa de banho para o segundo banho do dia. Porque apesar de não conseguir arrancar aquele dia da sua mente tinha que tirá-lo do seu corpo.
***
Kim podia não ter percebido porque Jake regressara sozinho, despido e ensanguentado, mas vira a dor nos olhos dele e prometeu a si mesma que era a última vez que o via. Ela ainda se debateu entre confortar Rachel, que entrara num estado de apatia que ela não conseguia compreender, mas David facilitou-lhe a escolha. Quando ele chegou, a loira finalmente cedeu e explodiu em violentas lágrimas. Kim achou que o lugar dela era perto de Jake, e que aquele momento na sala de estar era demasiado íntimo para que ela o perturbasse.
Ela procurou-o na suíte onde dormira com os rapazes, onde Aidan a forçara a carícias que ela desprezara mais do que tudo, e encontrou-o na casa de banho. A porta não estava fechada e por isso ela viu-o. Jake entrara na banheira e colocara-se sob o chuveiro sem mesmo tirar o resto das roupas sujas.
Kim entrou na divisão com alguma cautela porque nunca o tinha visto assim e não sabia como agir. Ele era sempre tão forte, porque é que havia dor naqueles olhos azuis?
- Jake - chamou-o num tom de voz quase inaudível, abafado pelo som da água corrente.
O rapaz só a olhou passado algum tempo, como se tivesse sonhado com a sua presença e, cerrando os maxilares com força, avisou:
- Eu não quero falar agora, Kim. Vai-te embora.
Kim abanou a cabeça em discordância e tomou coragem para finalmente se aproximar. Descalçou as sandálias que Rachel lhe emprestara e imitou-o, entrando na banheira ainda vestida. A surpresa refletiu-se no seu rosto apenas por breves instantes ao perceber que Jake se colocara sob água fria.
A água escorria-lhe pelo corpo, misturava-se com a sujidade impregnada na sua pele e ele parecia não notar. Apenas pareceu notar quando a rapariga levou os dedos esguios até às suas costas despidas e enregeladas. Contraiu os músculos com a carícia, presenteando Kim com toda a sua posse viril, que naquele momento servia apenas para cobrir um homem que sofria.
Ela dissera em tempos que ele nunca fora bonito, mas finalmente começava a perceber que mentira. Afinal, ela acabava de descobrir que poderia ficar horas a acariciar as costas dele, apenas para apreciar as contrações involuntárias que o percorriam de cada vez que passava os dedos, lânguidos e preguiçosos, sobre a pele escorregadia.
- Kim...
Ele finalmente virou-se para ela, desnorteado com o carinho que ela lhe dedicava. Kim ignorou-o e abraçou-o com força. Trémula de frio, enlaçou-o pela cintura e escondeu o rosto molhado na curva perfeita do seu pescoço.
- Deixa-me ajudar-te - murmurou a morena, num resquício de voz. - Eu só quero ficar contigo até deixar de existir dor nos teus olhos. Porque agora é a minha vez.
Ela lembrou-se do que sentiu quando Rachel adoecera. Jake fora a única pessoa a perceber que ela sentia demasiado com a doença da amiga, e tentou reconfortá-la da melhor maneira que se lembrava. Com o carinho que lhe era intrínseco, apenas a fechara num abraço apertado. E fora o primeiro de muitos.
Kim também se lembrou que o sorriso dele era o seu bálsamo e então deslizou os dedos sobre os lábios gretados e puxou-lhos para cima, para que ele pudesse sorrir. Jake apenas fechou os olhos e beijou-lhe os lábios, numa simples carícia de gratidão.
E eles ficaram ali. Ficaram até Kim tremer tanto contra o corpo dele que o forçou a finalmente temperar a água. E então ficaram um pouco mais, ela parou de tremer e serenou. Mas ao contrário de Kim, ele não conseguia serenar porque não esquecia. E nunca esqueceria.
***
NOTA DE AUTORA
Não me chamem já nomes feios. Custou-me imenso escrever isto, mas era necessário que acontecesse. Confesso que fui às lágrimas enquanto descrevia a reação do Jake e este é o único problema de mortes de personagens: lidar com o assunto do ponto de vista de quem fica.
Sim, não é justo ele ter morrido mas eu tive que jogar com as probabilidades realistas disto. Estão a morrer milhares de pessoas, a sociedade está destruída e é raro aquele que se safa. De um grupo tão grande há sempre alguém que se vai... Eu já salvei a Rachel uma vez. Terminou a clemência porque isto ainda é a Uprising. E porque até ao final nenhum deles está a salvo.
Gostava que me dessem a vossa opinião e prometo que não vou tornar os próximos capítulos demasiado fúnebres. O próximo já é importante.
PS: Bem-vindos à minha escrita de 2014. É provável que vão notar diferenças em relação aos capítulos anteriores. Apenas no final da história irei editar e uniformizar tudo.