Dia 36
Ela não podia ver. Não podia ouvir. Ainda não conseguia sentir. Antes que pudesse viver já alguém conspirava a sua morte.
Ele procurou por ela e não desistiu enquanto não a encontrou. Percorreu o longo corredor com passos vagarosos, sem pressa alguma. Assobiava, descontraído, e anotava mentalmente as anormalidades que vira naquele sector enquanto se encaminhava para outra fila, para analisá-los um por um.
Num pequeno tablet escreveu a letra K e acrescentou algumas notas adicionais. Fora alertado para aquele sector. Há algumas horas que um dos processos fora interrompido antecipadamente. Não era a primeira vez. Sempre que algo de errado acontecia tentavam retomar o processo, porém daquela vez não fora possível. Algo correra mal, não havia volta a dar. Encarregar-se-ia de identificar a falha para que pudesse ser eliminada.
Cantarolava animadamente um clássico dos Queen e ensaiava alguns passos trapalhões de dança enquanto examinava o primeiro.
– Hey, Mike! – Uma voz inoportuna rompera o silêncio. – Tens aí alguém para mim? – perguntou outro homem, conduzindo uma maca metálica repleta de sacos de plástico na direção dele.
– C17, E23, I9 e a K42 – respondeu Michael, confirmando novamente as suas notas. Depois olhou uma última vez para o último examinado e concluiu, sem hesitar: – Podes levar já esta, também.
Não existiam dúvidas quanto a ela. O seu processo fora subitamente interrompido e provocara danos irreparáveis. Já não tinha utilidade alguma.
– Que desperdício. – murmurou o outro ao observar a rapariga que o colega apontara. O tom arroxeado da pele, as pregas, os vincos engelhados, a ausência de pêlos, sinais, cicatrizes revelavam a sua prematuridade. Havia sempre utilidade num ser como aquele. Tinha de haver. – Ajuda aí – pediu o recém-chegado, com um suspiro.
O de bata retirou o cateter do pulso dela e pegou-lhe num braço e numa perna, esperando que o colega fizesse o mesmo depois de abrir o saco para a colocar. Num impulso apenas, levantaram-na do leito húmido e lançaram-na para dentro do saco.
– Essa ainda vive – informou Michael quando o outro fechou o saco. – Mas não acorda tão cedo, é tranquilo – brincou, antes de enumerar outros tantos deficientes que encontrara.
– Ok. Já cá venho buscar o resto – disse o outro, empurrando a maca já pesada novamente. – Até logo, Big Mike – despediu-se e encaminhou-se para fora do grande armazém.
Dia 81
– RACHEL! Chama o Jake, por favor! – berrou Kim, assustada com a novidade. A loira demorou a responder e ela sentiu o pânico apoderar-se de si.
– O que é que foi?
– Chama-o. Agora – suplicou, olhando para a porta fechada da casa de banho.
– Kim, posso entrar? – perguntou Rachel, batendo à porta. – Estás bem?
– O JAKE! – gritou, levantando-se da sanita para trancar a porta e encostar-se a ela.
– Eles já desceram. Precisas de alguma coisa? – Kim não respondeu e tentou pensar numa solução. Só queria Jake. Precisava dele. Rachel tornou a bater na porta, preocupada pelo silêncio prolongado da jovem. – Kim?
– Eu estou a morrer, Rachel – sussurrou a morena, tomada de uma coragem que não sabia possuir. Abriu a porta e colocou apenas a cabeça de fora para que a outra visse a sua expressão aterrorizada. – O Jake sabe o que fazer. Por favor, chama-o.
– Mas o que é que tens?! – insistiu Rachel, forçando a porta e obrigando Kim a berrar:
– Eu estou a sangrar!
– Magoaste-te?! – O assombro tomou conta das faces da loira. – Deixa ver, eu ajudo-te.
– Não! – gritou por instinto, assustada, mas forçou-se a acalmar. Rachel não lhe iria fazer mal. Iria ajudá-la, sabia. Todos a ajudariam.Deixou de forçar a porta e deixou a rapariga entrar. – Eu não fiz nada... – desculpou-se, apontando para baixo. Rachel não percebeu de imediato mas não demorou muito para compreender o pânico da rapariga e não conseguiu conter um suspiro de alívio.
– Meu Deus, Kim. Pregaste-me um susto de morte. Estás só com o período?
Kim fez uma careta e negou imediatamente até se aperceber de que desconhecia aquele termo.
– Estou com o quê?
Rachel estudou a rapariga atentamente, esperando que a máscara lhe caísse, que se risse e mostrasse como fora divertido gozar com ela.
– Estás a falar a sério? – testou, abrindo o sorriso. Kim não brincava. – Assustaste-me, Kim.
– Pois eu ainda estou assustada! Não quero morrer. Chama o Jake. – Kim tremia e já não conseguia controlar o pânico. Rachel troçava da sua desgraça e não a ajudaria a estancar a hemorragia.
– Querida, o Jake não é a pessoa mais indicada, acredita em mim. – sorriu amavelmente e afastou-se para procurar a sua mala. Tirou uma pequena bolsa do seu interior e deliciou-se com a expressão de Kim quando esta viu o tampão que ela retirara. – Isto é capaz de ser a tua grande ajuda.
***
Ele queria conseguir parar de pensar nela. Adorava conseguir ignorar o beijo da noite anterior e poder reagir normalmente pela manhã, como se nada tivesse acontecido. Talvez repetissem as carícias quando ambos assim o quisessem, mas não queria ter de ser confrontado apenas algumas horas depois. Se não se tratasse de Kim, aqueles pensamentos seriam inúteis e ridículos. Mas era ela e até o mais ridículo deixara de ser ridículo quando se tratava dela. Não a devia ter beijado, conseguira concluir isso assim que a soltara e a vira encaminhar-se novamente para o seu quarto, mas nunca esperara que ela correspondesse, que suplicasse por mais, que se mostrasse tão recetiva a algo que envolvia proximidade com outra pessoa que sempre a assustara tanto.
Mas eras tu, Jake.
- Cuidado, Jake. Estás a perder o jeito.
Aidan interrompeu-lhe os pensamentos desnecessários e fê-lo virar-se em direção à voz. O amigo sorria, enquanto esborrachava um cigarro com o ténis e expelia o fumo pela boca, com graciosidade.
- Perdi alguma coisa? – Jake encostou-se ao carro de Rachel e franziu o cenho, sem perceber a insinuação do amigo.
- Acredita que não é por olhares para a porta que ela vem a correr. – O moreno demorou a entender o que lhe dizia.
- Ela quem?
- Ok, puto – O loiro riu. – Isso afinal é mais grave do que eu pensava. Esquece o vírus. Tu estás doente e já não sabes lidar com uma miúda. Lamento, amigo. – Aidan aproximou-se do amigo, bateu-lhe no ombro com uma sentimentalidade demasiado fingida expressa no rosto e, com um sorriso malicioso afastou-se, para ir buscar as restantes malas.
Jake percorreu o varandim com o olhar novamente e praguejou ao compreender o que o amigo notara. Não estava paranoico. Não perdera o jeito e continuava a saber lidar com miúdas. Nem sequer olhava fixamente para o quarto dela à espera de a ver sair. Chateado consigo mesmo, entrou no carro alugado. Esperaria ali por todos e não olharia uma única vez pela janela. Havia uma longa viagem a ser feita, a vida deles continuava em perigo. Não se vivia uma situação propícia a um romance quase infantil e já tinha idade para ter juízo.
Ele levou tão a sério a decisão de não voltar a olhar para o motel que não vira Kim sair do quarto. A rapariga correu pelo alpendre, com a grande e preciosa mochila às costas, como uma criança ao fim de um dia de escola. Ele só deu pela presença dela quando a porta do carro foi aberta e ela entrou, apressada. Sentou-se ao lado dele, tirou a mochila e suspirou fundo, acalmando-se.
Jake estranhou a reação e perguntou-se se fora ele o causador de todo aquele medo repentino. Teria ela chegado às mesmas conclusões que ele?
- A Rachel está doente de novo, Jake! Ela não pode estar simplesmente bem – disse Kim demasiado rápido para que ele percebesse. Ele apenas percebera que tudo continuava como sempre fora. Nada havia mudado para ela e não sabia se ficara desiludido ou aliviado com a constatação.
- Eu adoro-a, ela é tão querida, mas queria enfiar-me um... - continuou a rapariga, gesticulando e imitando o que Rachel lhe mostrara. - Oh esquece, supostamente não é conversa de homens. Mas queria mesmo que soubesses que ela está a endoidecer. Eu disse que não queria dormir com ela, ainda para mais supostamente o David não sangra e deve gostar mais do que eu. Oh desculpa, ela também disse que eu não devia falar-te nisto. Burra, Kim. Burra.
Ele poderia ter rido, já que não compreendera nada do que ela tentara dizer, mas Kim encostou a cabeça ao seu ombro e ele percebeu que apenas talvez não quisesse que ela lhe tocasse. A não ser que não tivessem de falar acerca da noite anterior não queria estar tão próximo dela. Não a queria afastar nem assustar, só não queria tocar naquele assunto. Com um sorriso esquivo obrigou-a a desencostar-se do seu ombro, abriu a porta e saiu, deixando-a mais confusa do que quando vira sangue na casa de banho.
- Hey, Aidan? – chamou Jake, ao ver o amigo descer as escadas do motel. Era a sua deixa perfeita. – Ainda é preciso ajuda? – perguntou, fechando a porta atrás de si com alguma força e encaminhando-se para o loiro.
Aidan passou-lhe uma pequena mala para as mãos e Kim abraçou o próprio corpo, enquanto o via voltar a entrar no motel. Apesar de não saber descrever por palavras sabia que fora desprezada e a sensação não era boa. Não podia ser depois da cumplicidade da noite anterior.
***
NOTA DE AUTORA
O que retiraram da primeira parte do capítulo? Na verdade ele é uma continuação breve do prólogo para que o entendam melhor e possam juntar algumas das peças do puzzle Kim. Vão começar a haver mais destes flashbacks daqui para a frente. Teorias?
Porque acham que coloquei uma protagonista a ter a menstruação pela primeira vez? Talvez fosse apenas para aligeirar o ambiente, talvez não...