Kim talvez não o soubesse, mas a ignorância era a sua melhor amiga para o que estava por vir. Sentia uma certa curiosidade sobre a razão da profunda preocupação de David, embora também soubesse que se tratava de Rachel, e preferia não se intrometer. Sabia apenas que a rapariga tinha sido forçada a tomar alguns analgésicos para as dores de cabeça e estômago, mas nada para além disso. Não tinha feito perguntas, ninguém lhe dissera.
Jake ensinara-lhe a usar a televisão e também com ele aprendera que o pequeno ecrã podia ser verdadeiramente divertido e uma forma de escapar dos problemas, mesmo que por breves minutos. O filme ao qual estava a dedicar a sua atenção começara a despertar-lhe curiosidade sobre coisas que tinha esquecido. Planeava bombardear Jake com perguntas assim que terminasse, mas a sua sessão de cinema caseiro foi abruptamente interrompida quando Aidan se atirou para cima do sofá, sentando-se quase em cima dos seus pés descalços. Parecia que ele nem se tinha apercebido da sua presença no sofá, e ela, resignada, ignorou a situação e continuou a perder-se na televisão.
– O que é que vais fazer?
Kim sentiu uma emoção nova e desconfortável por ser interrompida novamente, desta vez por David. Ele parecia mais curioso com a reação de Aidan. Vindo do quarto de Rachel irritado e quase a correr, o loiro ligou o pequeno portátil da irmã.
– Pesquisar – respondeu Aidan, digitando os termos que pretendia descodificar. – Se ninguém em casa consegue entender o que está a acontecer com a minha irmã, temos de descobrir por nós próprios. – A seriedade no seu rosto não deixava espaço para dúvidas. David sentou-se ao lado do amigo, sem pedir licença, fazendo Kim revirar os olhos e cruzar as pernas o máximo possível para evitar que as suas ancas e ombros tocassem no corpo dele.
– Ok, e o que é que pensas procurar aí? – perguntou David, atento à pesquisa.
– Invictus.
David fez uma careta e negou para si mesmo antes de verbalizar:
– Ela nem tem ido trabalhar nos últimos dias. Desde que chegámos aqui, mal saímos de casa. Isso é impossível. – um riso nervoso escapou.
– É bom que tenhas razão... – murmurou Aidan, procurando um site que fornecesse as informações que procurava de forma clara e sucinta, sem muitas voltas. – Isso é coisa de notícia sensacionalista – ele menosprezou o link que David havia apontado. – Eu quero os sintomas. Francamente, dizem que se pode encontrar tudo na internet, mas...
David revirou os olhos ao ler termos científicos que destoavam da sua língua natal.
– Ok, Aidan, vai direto ao assunto. Não estou interessado em ler toda a história da doença. O que é que isso faz?
Eles voltaram a focar-se na tela do computador, abrindo e fechando vários sites informativos, mas nenhum deles parecia útil. David eventualmente tirou o portátil das mãos do amigo e pô-lo no colo, começando uma pesquisa mais detalhada até encontrar a informação que precisava.
– O vírus infeta a célula hospedeira com o seu DNA, que é replicado, produzindo milhares de fragmentos de DNA viral. A célula rebenta e o vírus espalha-se facilmente pelo organismo. O sistema imunitário responde com uma reação citotóxica invulgar, destruindo as células antes que o vírus se possa replicar e infetá-las. O vírus produz proteínas que lhe conferem resistência à resposta imunitária, mas isso leva a sucessivas... – ele precisou parar a leitura. – A sucessivas, quê? Que raio de palavra é esta?
– Apoptoses – completou a única voz que eles nunca imaginariam ouvir.
Aidan e David viraram-se em simultâneo para Kim, que até então parecia transparente, e não conseguiram conter a surpresa.
– O quê?
– Morte celular – repetiu ela, num tom mais baixo, temendo a reação deles. – Morte dos tecidos, morte dos órgãos. – ela esperou uma reação que não veio. – Desculpem, eu não queria interromper, mas vocês estavam a falar demasiado alto e eu estava a tentar ver este filme e não consigo concentrar-me. Então eu ouvi-vos sem querer e...
– O que é que tu sabes sobre vírus? – David não parecia zangado, apenas surpreendido e curioso para saber mais.
– Bem, eu sei como eles funcionam. Pelo que vocês leram, o vírus desencadeia uma resposta do sistema imunológico que o destrói. Isso permite que ele se replique livremente e infete todas as células do corpo. O problema é que, assim que isso acontece, as células... hum... – Kim não sabia como explicar os termos científicos, mas estava entusiasmada por partilhar o seu conhecimento. – suicidam-se. Elas fazem-no regularmente para evitar doenças quando há erros na divisão celular, por exemplo. Mas como não há resposta imunológica, elas não conseguem reconhecer se estão infetadas ou não, então optam por este mecanismo para proteger o corpo, quando na verdade o estão a destruir. Os tecidos morrem, os órgãos entram em colapso e os sistemas falham.
Ambos ficaram imóveis, olhando para a rapariga que não sabia quem era, nem quantos anos tinha, e nem mesmo como diferenciar um garfo de uma colher. Kim viu a surpresa refletida nos rostos deles e rapidamente percebeu o motivo. Ela cobriu a boca com as mãos e os olhos arregalaram-se.
– Meu Deus – murmurou quando finalmente entendeu.
– Afinal lembras-te? O que estudaste? – perguntou David, arqueando uma sobrancelha.
– Não. Apenas sei isto. Eu só sei – murmurou ela, tentando pensar no que mais sabia sobre o funcionamento das células, sobre a fisiologia do corpo humano. Nunca fora forçada a pensar naquilo até então. Se ela podia explicar o que acontecia na unidade básica da vida, também deveria ser capaz de explicar por que precisava tanto de injetar um suplemento desconhecido, e por que o seu estômago recusava qualquer tipo de alimento. E como não tinha morrido de fome até àquele momento. Mas não sabia.
– E o que acontece depois? O que isto tudo significa? – David trouxe-a de volta à realidade, e ela percorreu o olhar pela sala à procura de um exemplo que a ajudasse. Os olhos pousaram no computador e ela tentou:
– O nosso corpo é protegido por um sistema de segurança. Como a polícia. Há uma patrulha constante à procura de intrusos. Basicamente, sempre que algo desconhecido entra no sistema, o corpo tem de decidir entre neutralizá-lo, destruí-lo ou ignorá-lo, de acordo com o perigo. Com este vírus, o corpo só reconhece uma opção: ignorar e autodestruir-se. Depois disso, a infeção é fácil, e acaba na morte...
– Autodestruir-se? – a voz de Aidan vacilou, finalmente percebendo o raciocínio dela.
– A Rachel não está a autodestruir-se. Eu sei que estamos em Hollywood, mas deixem a ficção para quando sairmos daqui – replicou David, frustrado por perceber o que ela queria explicar e por desejar, de alguma forma, permanecer na ignorância. Rachel só sentia náuseas, vómitos e algumas dores de cabeça. Se fosse como ela descrevia, seria tudo diferente e mais doloroso. Não parecia estar a entrar em colapso. Não podia estar. O que Kim descrevia não se alinhava ao que a namorada estava a sentir. Talvez ao querer ajudar, ela os tivesse levado em erro.
Eles voltaram a focar-se na página informativa na internet e procuraram o que realmente importava.
«Febre alta nos primeiros dias, resposta do sistema imunitário ainda ativo, e tende a diminuir após 2 a 3 dias. Dores de cabeça, dores musculares, mal-estar, vómitos e tosse seca. As características mais marcantes da doença são as fortes hemorragias (5 a 6 dias após a infeção) causadas pela destruição das paredes dos vasos sanguíneos, e...»
Assustado, David não conseguiu ler a informação até ao fim. O seu coração começou a bater mais rápido e arrepios percorreram o seu corpo. Os primeiros sintomas eram semelhantes aos descritos, e ele não podia fugir mais da verdade, tendo testemunhado o que a namorada estava a sentir. Talvez fosse ansiedade que causasse a dor em seu peito, talvez fosse porque ele não queria admitir a possibilidade de Rachel se esvair em sangue até à morte. Talvez fosse porque ele estava a tentar negar a realidade. Não podia ser verdade.
«Colapso da maioria dos órgãos vitais ao fim de 10 a 12 dias.
As principais formas de contágio do vírus são o contacto direto com a pele, onde pode haver lesões que permitem a disseminação pelo sangue; inalação ou consumo de água e alimentos contaminados. (saber mais sobre esta forma de contágio aqui)»
David carregou no link proposto e após uma leitura atenta, fechou a tampa do computador portátil com força e levantou-se do sofá.
– O que foi? – perguntou Aidan, surpreendido com a reação violenta do amigo.
– Ok, Aidan, pensa comigo. Tenta lembrar-te de algo que apenas a Rachel tenha comido ou bebido ou consumido recentemente.
– Não faço ideia...
– Nós, hum... – Kim não sabia se podia intrometer-se novamente, mas David parecia aflito e ela queria ajudá-lo no que pudesse. – Há uns dias, ela comeu lasanha – disse, recordando-se da hospitalidade e da conversa franca que tivera com Rachel. – Eu só provei, mas senti-me tão mal disposta que vomitei.
– Quando foi isso? – perguntou Aidan, tentando não pensar na relação entre os sintomas e os dias que se passaram. Rachel podia ter menos tempo do que qualquer um pensava, e ele não queria ser o primeiro a considerar isso e sofrer.
– No meu primeiro dia cá em casa – ela tentou recordar-se. Sim, tinha a certeza absoluta.
– Terá sido?
– Não pode ser – contrariou Aidan, confuso com a analogia. – a Kim comeu. Também estaria doente. Isso não faz sentido. – David sabia que ele tinha razão, e sentiu-se destruído por não poder fazer mais do que lançar suposições erradas. Quando é que acordaria daquele enorme pesadelo?
– Esse site fala em guerra biológica – informou David, quase num sussurro. – O vírus não apareceu do nada. Alguém o trouxe de volta e espalhou rapidamente. É um vírus novo. Parece uma mistura grotesca de HIV com varíola, e a varíola está erradicada há anos. Só existe em laboratório. Fomos todos vacinados contra essa porcaria, então qual é a explicação agora?
– Isso é só teoria da conspiração, David – tentou acalmar Aidan, recusando-se a aceitar a possibilidade de uma guerra biológica. Não havia armas, tiros, tanques, bombas ou ameaças óbvias nos meios de comunicação.
– Talvez, mas até agora as teorias têm sido mais que exageradas. Todos ignorámos. O Jake tem amigos no exército que foram vacinados com um novo soro-teste para uma doença há uns meses. A maioria deles adoeceu. Isso não é coincidência demais? – David parou o discurso inflamado por um momento. – Como é que não pensámos nisso antes?
– E o que isso interessa, David? – Aidan estava visivelmente nervoso. – Isso não vai curar a Rachel.
ake desceu as escadas no instante seguinte. A uma velocidade alarmante e a respirar de forma entrecortada, ele começou a tirar a roupa, atirando-a para o chão. Antes de apanhar a pilha de tecido e dirigir-se à casa de banho, disse:
– Eu acho que ela está...
– Infetada – completou David, percebendo a ação de Jake e sentindo as lágrimas ameaçarem inundar os seus olhos. realidade estava a cair sobre ele da forma mais cruel. Talvez tivesse sido melhor permanecer na ignorância.
Ou talvez nunca lá devessem ter estado.
***
NOTA DE AUTORA
Como acham que a Rachel ficou doente? Se a lasanha foi o veículo de transmissão então porque a Kim não apresenta sintomas?
Para além disto, e apesar de parecer que eu estou sempre a escrever sobre coisas banais, há muita coisa nas entrelinhas desta história, a começar logo pelo primeiro capítulo. A Rachel é jornalista e recebeu uma carta estranha. No eventual caso de haver uma guerra biológica, a disseminação de um agente patogénico (vírus, bactéria, etc) começaria pelos serviços que mais podem mostrar às pessoas, como a comunicação social. Redações e embaixadas são os primeiros alvos. Porque foram também vacinados soldados meses antes e acabou tudo doente? É isso ;)