"...Há um assassino na estrada
Seu cérebro está se contorcendo como um sapo
Tenha um longo feriado
Deixe suas crianças brincarem
Se você der
uma carona a este homem
A doce família morrerá..."
- Riders On The Storm -
THE DOORS
Há um assassino na estrada.
Todos de São Luís sabem disso.
Aqui, nesta cidade fria como meus lábios, crimes são tão comuns quanto areia no deserto.
No entanto, há este impostor perambulando por aqui. O maldito antecipa mortes e redesenha o destino dos ludovicenses.
Ele caminha invisível pelas ruas, carrega um canivete no lugar do coração e a sua respiração é venenosa como a mordida de um Dragão de Komodo.
O olhar deste mortal é como o de um Basilísco e a ferocidade que o empurra parece abastecida pelas chamas do Inferno.
Ninguém jamais o viu.
Ninguém sobreviveu ao ataque do Assassino da Estrada.
O que sobra por onde ele passa é puro caos.
Crianças são estranguladas.
Homens e mulheres são violados e mortos.
Um banho de sangue.
Neste exato momento eu, a Morte, calço Jeans e camiseta do Black Sabath. Flutuo pelas ruas desertas farejando o caos que meu rival espalha.
Cláudio Seixas. É o homem que desequilibrou a balança.
Nosso encontro se dá próximo à encrusilhada entre as Ruas Labirinto e Linoge.
E nesse instante, os olhos esverdeados do Assassino da Estrada saltam de um beco a outro à procura de algum alvo.
O sangue frio pulsa pelas veias e oxigena o corpo adormecido por narcóticos.
A língua dele serpenteia sobre os lábios e os dentes enegrecidos estampam o sorriso gélido.
O branco dos olhos vive sob o domínio de ramificações vermelhas e as pupilas reinam abertas ao máximo.
O hálito asqueroso remete ao Senhor das Moscas...
A faca escondida sob a blusa ostenta o líquido escarlate de Andrea Doria, a mais recente vítima do Assassino da Estrada.
O sangue impresso na lâmina é um troféu.
O vento frio que corta minha existência esbarra na máscara de concreto que é o rosto de Cláudio e por um momento o olhar dele parece me notar.
O sorriso do impostor se estica ainda mais. Parece saber o que está por vir; aquilo que acontece com quem retira o equilíbrio da balança.
O que ele anda fazendo é inaceitável. Matar quem não está na Lista Negra é proibido.
Agora ele caminha em minha direção.
Vejo os lábios dele colidindo entre si, mas não ouço as palavras.
Eu empunho a foice e ela brilha sob a lua; a lâmina pesa e solta um silvo quando corto o ar jogando-a para a mão direita.
Cláudio saca um revólver.
Mira.
Engatilha.
Atira.
E atrás de mim ouço um lamento animalesco.
Olho para trás e vejo o rato com a barriga estourada; as tripas desenhando um tapete sanguinolento.
Cláudio caminha através de mim e junta o animal.
Arranca a cabeça com uma bocada só.
Mastiga.
Se lambuza nas vísceras.
Engole.
Limpa a boca com a costa da mão.
Guarda o revólver.
E caminha como o Rei das Ruas.
A quatro quarteirões sei que ele encontrará o Destino e eu mais uma vez vou estar presente.
Chegamos no local e a primeira coisa que eu e o Assassino da Estrada notamos é que há um furgão lá no fim da rua.
O veículo é preto como a noite.
Sacoleja pra esquerda e pra direita. O vidro embaçado vomita bolhas de vapor, o escapamento ronrona derramando um caldo de fumaça.
Grunhidos emanam do furgão.
Cláudio olha para os lados apenas para se certificar de que não haverá testemunhas.
Se aproxima do veículo.
Saca o canivete e fura um dos pneus.
O sorriso apodrecido surge e ele olha para trás.
Tenho quase certeza de que desta vez me viu.
Ele prossegue.
Tenta ouvir os sons de dentro do furgão. Está excitado imaginando algum jovem casal extravasando os desejos da carne.
Mas não há mais sons.
O carro não balança mais.
Cláudio saca o revólver e aperta firme o canivete quando escuta as travas das portas traseiras sendo abertas.
Nesse momento minha foice esquenta.
Chegou a hora.
As portas do furgão se abrem...
De onde estou vejo uma jovem, Roberta Martins, prostituta desde os dezesseis.
O dia "D" dela é hoje, mas apenas daqui a alguns minutos.
Por enquanto ela se engasga com o próprio sangue, as pernas se balançam de um lado para o outro numa tremedeira de quase dar pena.
Já Cláudio... ele está paralisado.
O dedo no gatilho dorme.
Os olhos petrificaram, a boca se esticou num sorriso amarelo.
De dentro do furgão salta um ser ainda mais cruel do que o Diabo.
Os olhos vermelhos são duas tochas e incendeiam as próprias órbitas.
A boca ensanguentada do motorista do furgão se estica num sorriso morto há mais de cinco séculos.
Vejo os caninos extravagantes, a língua bífida, as orelhas élficas e sinto aquele azedume encontrado em tumbas decrépitas.
Cláudio recua quando o Vampiro lambe os lábios.
E ao tentar usar o revólver percebe que já não há uma mão esquerda.
O sangue esguicha.
O medo causa cãibras ao diafragma do Assassino da Estrada, a bexiga se espande e o intestino se descontrola deixando o Usurpador em uma situação lamentável, mas merecida.
Salto do meu camarote e flutuo gargalhando.
Minha foice primeiro dança contra a alma da Roberta e lhe concedo um infarto fulminante.
Creio que seja melhor do que morrer afogada.
O Vampiro foi interrompido por Cláudio e não a bebeu por completo...
E por falar no meu impostor... Ele agora corre.
Grita pela própria vida.
Mas...
O Vampiro o alcança; desliza e afunda as unhas na costa do Assassino da Estrada. Desce as garras até a base do quadril e arranha pra direita.
Parte da carne voa e deixa três costelas à mostra. Os músculos ficam em fiapos, o sangue escorre e ensopa a calça de Cláudio.
O impostor escorrega no próprio sangue.
A proximidade do Fim faz a mente dele se abrir e ele finalmente pode me ver.
Os lábios dele se encontram e a voz sai molhada, dolorida.
"Black... Sabath...?!"
As garras do Vampiro descem formando um "X" e encontram a nuca de Cláudio no momento em que a minha foice expurga sua alma.
Quites... Eu acho.
Vou embora com mais uma missão concluída.
Flutuo com os sons da sucção do Vampiro reverberando dentro de mais um cadáver.
TOTAL DE PALAVRAS: 1065
TABELA: VERÃO
PALAVRA/TEMA: CANIVETE