Relicário

By nanzcampos

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VENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para... More

SINOPSE
Notas da Autora
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
BÔNUS
ATENÇÃO PARA O COMUNICADO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
TRINTA E UM
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
TRINTA E CINCO
TRINTA E SEIS
TRINTA E SETE
TRINTA E OITO
TRINTA E NOVE
QUARENTA
EPÍLOGO

TRINTA E QUATRO

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By nanzcampos

Há outdoors meus em todos os lugares da cidade. Por um momento de confusão, encaro a garota estampada nas propagandas e me pergunto de onde a conheço. Há resquícios que nos aproximam por baixo da maquiagem pesada e escura, dos cabelos bagunçados e arrepiados. É algo no olhar verde desesperado, gritando por socorro em silêncio enquanto a boca sorri placidamente para a câmera. Então, percebo: sou eu.

Sou eu da forma que nunca quis ser.

Pisco os olhos com rapidez tentando afastar as lágrimas. Devia ter imaginado que a confusão em que meu pai acha que me meti o faria adiantar essa publicidade – agora todos da cidade tem o que falar. O importante não é evitar que as pessoas falem de mim – é fazê-las falar pelo motivo certo. Por mais que os motivos certos não contemplem o que eu acho que devia contemplar.

— Dafne ficou bonita – Fernando diz, ao meu lado, quando saímos da escola e damos de cara com o primeiro outdoor, bem em frente ao Eliodora.

Não consigo me mover, então nós dois ficamos parado na calçada enquanto todos os alunos do colégio saem de suas aulas. Eles também se acumulam na saída. Há um silêncio no primeiro momento, mas dura menos de dois segundos antes de metade da minha sala começar a me zoar. Os garotos dizem que nunca me viram tão bonita. As garotas dizem que estou desperdiçando meu tempo no esporte.

Eu quero dizer a eles que não interessa.

Não sou eu. É só uma imagem bem-feita que não representa um milímetro que quem sou, de quem quero ser. Não importa. Todos meus colegas só ligam para a imagem. Às vezes me acho velha demais para ser adolescente.

— Agora você só precisa fazer um ensaio de lingerie – um dos garotos diz.

Todos riem.

Menos Fernando e eu. E é por isso que ele é meu único amigo.

— Fernando não entende – ele resmunga, se balançando nos pés.

Eu também não, quase sorrio, mas tudo em mim está congelado, mesmo que o sol acima de nós esteja tão laranja que cega. Pisco com mais força, porque a claridade não ajuda a espantar as lágrimas. Não quero chorar na frente deles. Não posso chorar na frente deles. Essa é a hora que preciso pensar como meu pai. Essa é a hora que preciso ser uma Vale.

Por isso, apenas resmungo elogios, seguro a mão de Fernando e o puxo para sair dali, o mais devagar que consigo. Se eu correr, todos saberão que estou desesperada. Se eu fugir, só serei mais uma fraca. Então, finjo que está tudo bem. Finjo tão bem que, antes do quarto outdoor, o único que se aproxima um pouco do que sou – onde estou segurando uma bola de vôlei que combina pouco com o salto que me obrigaram a colocar nos pés – já consigo respirar sem sentir o peito ser esmagado por mãos invisíveis.

Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Emily sumiu. Ainda não conversei com meu irmão. Não consigo me encarar no espelho. E agora sou obrigada a me ver em todos os lugares. Ponte Belo sempre foi um lugar que me sentia segura, porque sabia que as pessoas que importavam me protegia. Mas agora a sensação que me domina é bem próxima de pânico, porque sei que, ainda que quisessem, ninguém poderia me proteger.

Estou no meio do furacão.

Tudo está sendo revirado e eu mesma não consigo colocar os pés nos chão. Sinto falta de quando minha única preocupação era não me machucar num jogo. Sinto falta do esporte na minha vida. Sinto falta da paz que tinha dentro da quadra. Acho que é por isso que, quando deixo Fernando em sua casa, ligo para a primeira pessoa que me vem a mente.

Queria que fosse meu irmão, mas sei que ele não poderá me atender. Além disso, não sei se estou pronta para ter A Conversa. Não nos falamos desde que ele me acompanhou à reunião com Olavo e meu pai. Ele está ocupado e sei disso – o período se encaminha para o fim e há uma pilha de provas e trabalhos sobre sua escrivaninha. Há post-its espalhados em todos os lugares, também, numa tentativa de ele de arrumar seus pensamentos para artigos que precisa fazer e teses que precisa avaliar. Mesmo assim, mesmo sabendo que é um momento ruim para ter Pedro por perto, sinto tristeza de só ter sua presença como um fantasma sem forma, mas muito barulhento, perambulando as madrugadas em sua casa.

Lavínia demora quase vinte minutos para chegar à casa do meu irmão. Ela não pergunta porque a chamei num horário tão ruim quanto um pós-almoço. Ela não comenta sobre a bagunça de papel que Pedro deixou para trás, provavelmente ao estar atrasado para alguma aula. Ela só se manifesta quando ligo o ar-condicionado:

— Eu queria ser rica só para ter isso.

Deixo uma risada escapar e jogo a mochila nos pés do sofá, me jogando nele logo depois. Lavínia é mais comedida e seria engraçado, se eu não tivesse tanta angústia dentro de mim.

— Você estava ocupada? – pergunto.

— Entregando currículos.

— Ah, nossa, estou te atrapalhando?

— Tá brincando? – Ela coloca a mochila nos pés. – Até o diabo acha que eu mereço uma pausa.

— Você tá com fome?

Lavínia dá de ombros, então caminho até a cozinha e vejo o que Pedro deixou na geladeira. Geralmente, almoço na rua, mas Pedro é mais chato do que eu para comida. Pego as pequenas conservas que ele fez e coloco sobre a mesa. O cheiro de lasanha deveria me fazer salivar, mas meu estômago embrulha.

— Eu consegui uma bolsa para o cursinho da sua escola – ela fala, sentando-se na cadeira. – Começo hoje.

— Não sei se dou parabéns ou pêsames.

— Quanta animação para fazer o melhor cursinho do interior de Minas...

— Eu passo dezesseis horas naquela escola. Não aguento mais.

Ela dá um sorriso e balança a cabeça.

— Às vezes eu queria que meus problemas se resumissem a isso. Não é uma crítica – completa, quando a olho. – Acho que sempre vamos reclamar, independente da vida que temos. Mas acho que me sentiria bem reclamando de uma educação de qualidade. Minha escola não tem água por metade da semana.

— Não quis parecer egoísta – franzo o cenho.

— Eu sei. Você só não conhece o outro lado da ponte. Tá tudo bem. Seu irmão tem uma casa bem legal, hein? Quer dizer, é bem menos opulenta do que imaginei.

— Meu irmão não é rico.

— Mas ainda é um Vale.

É, penso. E essa é a frase que resume tudo. Não importa quem sou, os meus gostos, o que quero para minha vida, meus planos e ambição. Nada disso importa porque meu destino foi traçado antes de nascer. Foi traçado quando meus avôs se tornaram tão ricos e poderosos que dominaram a cidade em poucos anos. Não é culpa deles no que família se transformou, mas não quer dizer que eles não sejam responsáveis.

Responsabilidade é uma palavra complicada.

Para Lavínia, responsabilidade é conseguir um emprego, agora que está de férias do vôlei, para ajudar as contas de casa. Ela é mais velha que alguns de seus irmãos, então provavelmente tem responsabilidade de cuidar deles. Ela é um exemplo para o caçula como Pedro é meu exemplo. É outra vida, outro lado da ponte, outros dilemas e cobranças, mas, ainda assim, é uma vida que importa, que devia ser mais vista, que devia ter oportunidades de ter um destino diferente.

Minha responsabilidade é continuar o legado que me pertence. É não manchar a imagem que as gerações anteriores da minha família construíram. É não só estar dentro do padrão, mas preservar o lugar que me pertence. É ser bela, recatada, do lar. É ser um exemplo para uma sociedade que todos dizem que me representam, mas que eu não me sinto representada. E que, com certeza, não vai querer me representar se descobrirem quem eu sou, por trás da imagem que tenho que carregar.

— O que foi? – Lavínia arqueia as sobrancelhas para mim.

— Só pensando em como seria se eu tivesse irmão mais novo.

— É cansativo. Mas tem seus momentos bons.

Pedro acha cansativo também?

Isso explica porque, desde o acontecimento, ele não trocou mais do que três frases comigo?

— Essa semana meu irmão menor fez um cartão na escola para mim. O português estava horrível, mas a mensagem era linda. Então, estou de bem com a vida com esse lugar. O que, claro, vai mudar daqui um ou dois dias, quando ele grudar mais um chiclete no meu cabelo ou roubar meu pedaço do bolo de chocolate...

— É engraçado ter uma família grande e não viver nada disso.

— Acho que é mais triste. Família é uma desgraça, às vezes, mas não posso reclamar da minha.

— Acho que ninguém espera que eu reclame da minha.

— Você sabe o que dizem, né? Com grandes poderes vem grandes responsabilidades.

Rio porque não esperava que Lavínia citasse algo da cultura nerd. E, então, paro de rir, porque esse é o tipo de pensamento que não deveria ter. É reafirmar um estereótipo de mulher, talvez até de mulher negra, sem se dar conta. E perceber isso, perceber que essas coisas me escapam, não torna a sensação melhor – na verdade, a situação fica ainda pior.

— Você vai fazer ENEM pra que curso? – pergunto, colocando o prato de comida no micro-ondas.

— Engenharia. Se tudo der certo, civil.

— Meu primo é engenheiro civil. Ele ganha dez mil por mês, e não é das empresas da minha família.

— Essa é minha meta de vida. – Ela sorri no exato momento que o micro-ondas apita. – E você?

— Não consigo me imaginar em nenhum lugar que não seja jogando vôlei. Se não der certo...

— Você não precisa de um plano B. – Ela pega o prato, quando o estendo. – É uma Vale. Sua irmã não trabalha, não é?

— Minha irmã só tem o ensino médio – suspiro. – Estou cansada disso.

— De quê?

— Das pessoas acharem que, por eu ser uma Vale, não preciso provar meu valor.

— Você precisa provar no vôlei. Talvez, por isso, o esporte seja seu sonho.

Nunca tinha parado para pensar por esse ponto de vista. E essa fala me faz perceber que gosto mesmo de Lavínia – ela é uma garota que traz paz, muito diferente de outra garota que gosto. Não estou apaixonada por nenhuma das duas e isso é óbvio. Mas, se pudesse escolher, sentiria atração física pela negra a minha frente.

Essas coisas não se escolhem.

E é claro que meu desejo está todo destinado a uma garota que não tem o menor comprometimento com o que quer que seja, além de si mesma.

— Talvez. Mas é insuportável que todo mundo sempre espere coisas de mim.

— A sociedade sempre espera coisa demais das mulheres, Daf – ela diz, sorrindo. – De você, uma imagem perfeita; de mim, o sexo fácil da negra. De todas, o silêncio. Temos duas saídas: ou acatamos e dizemos amém, ou mandamos a sociedade se foder. As duas vão trazer consequências, mas seguir a segunda nos faz ficar mais próximos de algum vestígio de felicidade.

— Você acha?

— Quanto mais você concordar com a sociedade, mais coisas ela pedirá em troca. Mais silêncios nossos terão que ser feitos. É infinito porque a mulher que eles querem é uma mulher de plástico, plácida, plena, que não existe. A gente se mata tentando alcançar esse posto e nunca vamos chegar lá. É uma luta fracassada.

Faz sentido. E dói, como quase todas as reflexões que fazem sentido.

— A segunda saída causa mais desconforto na sociedade e isso pode trazer retaliações, para algumas mulheres mais do que para outras. Mas em algum momento somos dada como perdidas. E é libertador.

Não sei o que dizer, então fico em silêncio enquanto Lavínia almoça.

Ela também não fala e a falta de conversa é confortável, porque me permite organizar boa parte dos meus pensamentos. Claro, ainda tem nós. Sempre vai ter e sei disso. Mas consigo esticar algumas pontas e respirar mais aliviada, porque as dúvidas já não estão esmagando meu peito.

— Se eu dissesse que sou lésbica, o que você falaria? – pergunto, por fim, quando ela afasta o prato pela mesa.

— Diria que você tem bom gosto.

Dou uma risada fraca, sem conseguir evitar.

— Pode parecer que é brincadeira, mas tô falando sério.

Aí eu rio mais. Rio tanto que vira gargalhada, meus ombros se sacodem, meus olhos lacrimejam. É a primeira vez em dias que gargalho, então o efeito parece mais intenso. Lavínia me acompanha, mesmo que a risada faça pouco sentido. O que ela disse não é uma mentira. Eu nunca gostei mesmo de homens, por que, então, me descobrir lésbica é tão assustador e confuso?

Eu sei, é por causa da minha família.

Mas eu não sou a minha família.

Sou parte dela e isso não pode ser negado. Mas sou maior que ela. Não sou?

Alguém tosse na porta e eu levanto os olhos. A risada para no mesmo momento em que encaro o ponto verde bem conhecido por mim. Pedro tem uma expressão neutra, não parece nem contente nem zangado, e isso me deixa mais aflita do que todos os silêncios. Ou, talvez, por causa dos silêncios.

Fico ereta e tensa.

— Ei! – Lavínia diz, quando o silêncio fica tão denso que dá a impressão que se pode segurar com a mão – Sou a Lavínia. Dafne fala muito de você.

— Ela também fala muito de você.

O silêncio volta. Pedro coça a garganta de novo, Lavínia se mexe na cadeira, eu continuo imóvel e contraída perto da bancada.

— Eu não quero ser mal-educado e interromper vocês... – ele diz, com a voz branda. – Mas...

— Sei, não se preocupe. Tenho mesmo que ir, aquela pilha de currículos não vai se entregar sozinha – ela brinca e meu irmão sorri. – Até de noite, Daf.

Eu observo Lavínia sair, como uma anfitriã que deixaria minha mãe com os cabelos em pé, enquanto Lavínia pega sua mochila, sua pasta e sai da casa do meu irmão, sem olhar para trás. Preciso pedir desculpa para ela depois por deixá-la sair sozinha. Eu teria acompanhado-a, se conseguisse me mover.

Meu irmão puxa a cadeira e se senta, colocando sua bolsa de couro sobre a mesa. Não há nada na cena que me acalma, mas tudo o que meu irmão, finalmente, diz é o que desejei tanto ouvir que quero gritar:

— Precisamos conversar.

Vocês estão mais GIF 1 ou mais GIF 2? acho que tô uma mistura hehehehe

Queria me desculpar pela demora desse capítulo - desde que escrevi a história da Jubs (inclusive já está com prévia aqui e passando pela última revisão para ser, finalmente, lançada) a preguiça de escrever já tá maior que tudo hahahaha Acho que foi porque fiz cem mil palavras em três meses? fica aí no ar. De todo modo, essas duas últimas semanas foi dia de ser adulto, isto é, tirar meu registro profissional, fazer cartão de visita, marcar horário de consulta, e ainda articular isso com minha segunda graduação porque, né, eu sou frenética.

Mas vamo com fé que o final sai.

Inclusive, num falta muito pro final dessa história. Já to sentindo saudades***

Felicis pra todas.

&, sempre, beijos cafeinados.

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