Os Novos Pecados Capitais

By PablodeAssis

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"Congratulamo-nos por haver atingido um tal grau de clareza, deixando para trás todos esses deuses fantasmagó... More

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Os Novos Pecados Capitais: um breve ensaio
A Louca dos Gatos

A Sala dos Espelhos

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By PablodeAssis


Antero era um sonhador. Mas não daqueles sonhadores esperançosos. Ele se lembrava de praticamente todos os seus sonhos, bons e ruins. Isso começou depois de sofrer bastante com pesadelos na infância. Ele mal conseguia dormir. Mas seu pediatra recomendara que procurasse terapia, pois medicação hipnogênica em um cérebro tão jovem poderia ser prejudicial. Seu terapeuta na época começou a trabalhar bastante com seus sonhos e o incentivou a começar um diário de sonhos. Com o tempo, ele começou a acumular cadernos com seus sonhos relatados e a intensidade dos pesadelos começou a diminuir. Principalmente quando ele começou a treinar a ter sonhos lúcidos.

Ele criou um ritual. Várias vezes durante o dia, ele estalava os dedos três vezes e sussurava "eu estou acordado". E, fazia isso principalmente quando estava diante de um letreiro ou algo escrito e se focava nas letras por pelo menos uns quinze segundos. Esse ritual, de tão habitual, passava a ser feito também enquanto sonhava e isso passou a fazer com que ele percebesse que de fato estava sonhando. E, diante dos pesadelos, ele simplesmente acordava quando percebia que não valia a pena continuar sonhando com aquilo.

Em seu pesadelo mais recente, Antero sonhava que estava dirigindo seu carro por uma rua movimentada, com muitos prédios e comércios abertos, quando ele avistou um leito de hospital no meio da rua. Ele diminuiu a velocidade e parou do lado do leito para ver do que se tratava, quando viu, deitado sobre o leito, um corpo de uma mulher, presa por amarras. Antero não sabia dizer se a mulher estava morta ou apenas desacordada. Ele via que outras pessoas se aproximavam, a maioria deles, moradores de rua. Um deles, inclusive disse, "não se preocupem, o especialista está chegando!" e em breve, de fato, ele chegou. Mas parecia mais um fugitivo de hospital psiquiátrico, carregando um cutelo sujo em uma mão e um pé congelado na outra. "O que vocês vão fazer?" perguntou Antero. "Não se preocupa, o especialista sabe o que 'tá fazendo!" Esse especialista, então deixa o pé congelado ao lado do pé da moça e usa-o como medida. Remove as amarras do pé direito e se prepara para cortá-lo com o cutelo, quando aquele primeiro homem diz, "Não precisa agora, vamo' lá p'ra dentro", e começou a empurrar o leito em direção a um galpão no final da rua. Foi quando Antero percebeu que aquela não era uma região comercial, mas sim de velhos galpões e indústrias abandonadas, todas ocupadas pelo que pareciam ser sobreviventes de instituições psiquiátricas abandonadas. Ele também começou a perceber outros pedaços de corpos espalhados e pensou que deveria chamar a polícia, mas para isso, precisava saber onde estava. Ele olha em volta e procura algum letreiro, placa de rua ou nome de loja e, ao avistar uma, tenta focar no nome, que rapidamente muda de forma e ele não consegue ler. Ele até tenta chamar a atenção de uma pessoa que estava em uma das janelas de um dos prédios Foi quando Antero percebeu que estava sonhando e de que não precisava passar por aquilo e acordou. Em outros tempos e seu suas práticas e exercícios, Antero teria ido até o fim com o sonho e provavelmente teria visto coisas das quais desejaria desver.

De diário de sonhos, Antero migrou para aplicativos de sonhos. Nesses aplicativos ele conseguia anotar com facilidade e recordar dos sonhos quando precisasse, inclusive os que ele tinha quando tirava sonecas no meio do dia. Também, uma vez a cada seis meses, ele fazia o download de seus sonhos e os imprimia, guardando em uma pasta junto com seus outros cadernos e diários de sonho, continuando com seus rituais. Antero às vezes sentia que sua vida era mais vívida nos sonhos do que acordado, mas sabia diferenciar as duas realidades por conta de seus rituais.

Antero, então, deitou-se para dormir e começou a sonhar. Em seu sonho, ele se encontrava em uma sala cheia de espelhos, como se estivesse em um parque de viersões. Muitos desses espelhos distorciam sua imagem e alguns, inclusive mostravam cenas que ele não gostou de ver. Um desses, por exemplo, mostrou-o dentro de um cemitério, de noite, com vários túmulos abertos e revirados, alguns mostrando corpos em decomposição a seu aberto, outros semi-enterrados. Outro espelho mostrou o seu corpo em forma espectral, translúcido e brilhoso, dentro de um casarão de época, com móveis de veludo e uma lareira acesa ao fundo, como se ele fosse o fantasma assombrando aquela residência. Diante desses espelhos, ele estalou seus dedos três vezes e disse "eu quero acordar agora" e de fato acordou.

Mas ao abrir seus olhos, ele estava ainda nessa sala com espelhos, mas eles estavam muito mais vívidos, nítidos e claros, como molduras espalhadas pelo espaço, que parecia um grande salão branco, sem portas ou janelas, repleto desses objetos. Ele fez seu ritual novamente e confirmou que de fato estava acordado. Começou a prestar atenção nos detalhes que eram tão vívidos quanto qualquer outro que ele pudesse ver acordado. Nada ali parecia ser um sonho. Mas onde seria esse ali?

Ele olhou em volta e não percebeu nenhuma porta ou até mesmo parede. O que ele via eram incontáveis espelhos de todas as formas e tamanhos espalhados pelo ambiente. E cada espelho mostrava seu reflexo de forma diferente. Em um deles, ele estava em um cômodo de paredes de mármore ou pedra branca, vestindo o que parecia ser uma túnica. Seu rosto parecia queimado de sol e seus cabelos mais cacheados do que de costume. Ele reconheceu que havia escritos na parede branca, escritos no alfabeto grego. O mais estranho era ele fixamente olhando para o reflexo e o reflexo fixamente olhando para ele, repetindo cada ação que fazia com um ligeiro atraso, quase imperceptível. Ao lado desse, ele viu outro onde sua pele era quase negra, sua cabeça raspada e usava túnicas brancas, dentro de algo que parecia um templo com hieróglifos nas paredes.

Ele foi percebendo que cada um desses espelhos o colocava em algum cenário diferente, em alguma época diferente, quase como se ele pudesse ver-se em suas incontáveis vidas passadas. Mas não eram só espelhos grandes, tinham também alguns pequenos. Um deles, um espelho de mão descansando sobre uma mesa de estilo rococó fez com que ele se visse com rosto feminino, usando uma peruca alta. Outros espelhos pareciam mais escudos de metal e mostravam cenas ainda mais antigas. E ele eventualmente encontrou até a tela de LED de um smartphone.

Ele sabia que muitas pessoas usavam esses aparelhos como espelhos, pela função de sua câmera frontal. Mas esse aparelho genérico estava ligado. Ele abriu, curioso até para verificar se possuia sinal e se poderia ligar para alguém e averiguar seu paradeiro e viu na tela inicial um ícone de aplicativo que possuia o seu próprio rosto! Como assim, a foto de seu rosto estava em um aplicativo de um aparelho desconhecido? Ele então abriu o aplicativo que iniciou com a frase, "Bem Vindo a Seu Livro!"

Enquanto ele abria, o aparelho mostrou uma notificação de um outro aplicativo, com rosto de outro rapaz. Com medo, ele fechou o celular e largou-o sobre a mesa onde estava. O celular começa a vibrar e acender, como se estivessem ligando para ele. Com medo, Antero se esconde atrás de um espelho de corpo inteiro que estava por perto.

Alguns segundos depois, o celular brilha forte e ao lado dele aparece aquele rapaz que aparecera na notificação. Isso poderia até ser normal se aquilo fosse um sonho, mas não era um sonho. O rapaz vestia uma calça jeans com uma camisa de flanela. Sua cara era coberta por uma barba cheia e seu cabelo preso por um boné. Ele tira o boné, bagunça o cabelo e olha para um desses espelhos e Antero consegue ver o reflexo do jovem, que aparece novo, sem barba, com cabelos loiros e cacheados, seminu, portando uma aljava com flechas e um arco e em suas costas saia um par de asas. O rapaz suspirou e disse, "Saudades..." E olhando o espelho, parece que ele consegue ver outra coisa atrás de si e diz:

-- Estou vendo você aí.

E o rapaz se vira, olha para o espelho que está escondendo Antero e continua:

-- Você está atrás do Espelho da Alice. Eu consigo ver através dele.

Antero se levanta e sai de trás do espelho:

-- Desculpe, mas não sei como vim parar aqui. Estava dormindo e sonhando e quando acordei, eu me vi aqui dentro.

-- Ah, de vez em quando isso acontece. E dependendo da pessoa, acaba provocando um belo estrago. Mas, na maioria das vezes, elas acham que estão dormindo e sonhando e a gente consegue reverter a situação.

-- Mas onde é aqui?

-- Você está na Sala dos Espelhos, um lugar entre os mundos, entre as épocas e entre as realidades. Você deve ter derrapado aqui enquanto sonhava.

-- E quem é você?

-- Eu sou conhecido por muitos nomes, mas talvez você me conheça por meu nome mais comum: Cupido.

-- E o que o Cupido estava fazendo dentro de um Celular?

-- Estava usando o Tinder, facilitando uns matches!

-- Como é que é?

-- Você acha que a gente vai continuar morando p'ra sempre no alto de uma montanha que virou atração turística? A gente precisa se adaptar, meu bem.

-- Okay. E como é que eu faço pra sair daqui e voltar pra casa?

-- Bom, como você chegou aqui através de um sonho, talvez você precise voltar através dele também. Peraí que vou chamar um velho amigo meu.

Cupido então alcança o Smartphone que estava sobre a mesa e procura um contato na lista e o chama. Em alguns instantes, alguém na outra linha atende e eles conversam:

-- E daê? Viu, a gente tá com mais um perdido aqui na sala, tem como você ajudar? Tá bom, eu aviso.

-- Com quem você estava falando? perguntou Antero.

-- De novo, ele teve muitos nomes, mas o mais famoso era Hipnos, o deus grego do Sono. E ele diz que já vai chegar.

E de fato, Antero percebeu um movimento diferente em um reflexo justamente naquele "Espelho da Alice" atrás do qual ele se escondia. E esse vulto ganhou a forma de um homem que saiu do espelho. Esse homem tinha uma aparência mais velha, parecia um médico, de barba curta, cabelo e terno engomados e óculos redondo.

-- É você que está perdido? Pergunta o homem.

-- Sim, responde Antero. Você é Hipnos?

-- Sim e eu vou lhe ajudar a dormir para conseguir voltar para sua realidade.

Hipnos tirou do bolso de seu paletó um antigo relógio de bolso preso em uma corrente.

-- Você vai me hipnotizar? Pergunta Antero.

-- Antigamente eu usava um pó que fazia as pessoas pegarem no sono. Mas, hoje em dia, andar com um pó desses no bolso, além de pouco prático, pode levantar suspeitas. Então, quero que você olhe fixamente nesse relógio e em seu movimento. Ignore todo o resto.

E Antero tentou obedeceu a cada palavra, a cada sugestão. Mas não parecia funcionar, mesmo ele reproduzindo artificialmente cada comando.

-- Você está ficando com sono, suas pálpebras estão ficando pesadas. Neste momento, a única coisa que você consegue pensar é em como voltar para seu mundo, sua realidade. Vou contar até cinco e no cinco você vai estar profundamente dormido. Um... seus olhos estão pesados e você está com sono. Dois... sua respiração está pesada, seu bocejos estão incontroláveis... Três... seus olhos estão fechados já e sua mente está cansada. Quatro... você está com muito, muito sono e está prestes a dormir. Cinco...

E Antero esperou o final do comando por um tempo e, como ele não ouviu mais nada, ele abre os olhos para se encontrar sentado, em seu trabalho, na frente do computador que está inicializando. Ele olha em volta e vê seus colegas de trabalho, alguns chegando, outros já instalados em suas mesas. Quando seu computador liga, ele tenta ver na barra de tarefas o relógio, para saber que horas são. Mas ao olhar os números, eles pareciam mudar de forma, não estavam claros. Ele esfrega seus olhos e tenta ver de novo e, novamente, as letras não parecem fazer sentido. Ele tenta falar algo, chamar a atenção de seus colegas, mas sua voz não sai.

Imediatamente, ele estala seus dedos três vezes - que não fazem som algum - e diz, "será que estou sonhando?"

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