Os Novos Pecados Capitais

By PablodeAssis

136 8 13

"Congratulamo-nos por haver atingido um tal grau de clareza, deixando para trás todos esses deuses fantasmagó... More

O Dragão na Garagem
A Terra dos Sonhos
Devaneio - População: 108 habitantes
Os Novos Pecados Capitais: um breve ensaio
A Sala dos Espelhos
A Louca dos Gatos

O Mapa de Ilim-Rüyalar

23 1 2
By PablodeAssis


Ja faz um tempo percebi que meus sonhos sempre acontecem em uma mesma cidade. Não é nenhuma cidade real - mais parece um amálgama de todas as cidades que conheço e já visitei. Comecei a perceber isso quando nos meus sonhos eu tinha a sensação de conhecer aquele lugar, por mais que racionalmente eu soubesse que nunca havia estado lá. Depois disso, esses mesmos lugares começaram a aparecer em diferentes sonhos. E, em pouco tempo, essa cidade ganhou uma forma tão real quanto qualquer outra cidade.

E isso chamou minha atenção. No início, achei interessante como isso acontecia. Nos sonhos, eu pegava uma estrada deserta e sabia exatamente onde estava e onde queria chegar. Se virasse à esquerda, chegaria em um bairro, à direita a outro. No centro da cidade, em uma das várias praças interconectadas por uma grande avenida, eu sabia exatamente onde encontrar vários prédios, teatros, lojas, restaurantes e museus.

Foi quando resolvi desenhar um mapa dessa cidade. Eu sempre quis ser arquiteto e desenhar mapas de cidades sempre foi um hobby meu. Então, no meu tempo livre, juntava papel e lápis e começava a rabiscar a cidade que aparecia nos meus sonhos e aos poucos o mapa foi crescendo. E quanto mais crescia, eu ia juntando folhas A4 e ampliando a área do mapa. Em pouco tempo, já tinham dez folhas grudadas formando o grande e detalhado planisfério.

Então eu cometi o erro de ver a cidade à distância. Pendurei o mapa manuscrito na parede e me afastei. Foi assim que percebi o padrão que nunca havia visto: a cidade parecia uma espiral, por mais que as principais avenidas fossem retas e as quadras assimétricas. Era algo estranho, uma espiral formada por retas e quadras - algumas triangulares, outras quadradas e vários ângulos obtusos e agudos, com algumas praças circulares, rotatórias, e várias figuras geométricas interconectadas, mas o mapa da cidade formava claramente uma espiral. Tentei encontrar algum padrão matemático na espiral, mas me parecia muito irregular.

E, ao me aproximar novamente, procurando o centro da espiral, foi que encontrei o que nunca deveria ter encontrado. No início, a quadra parecia mais uma quadra normal, como qualquer outra. Neste caso, era uma quadra comercial, com prédios e lojas e, como muitas outras quadras, no meio dela, longe das ruas, havia um pequeno parque.

E foi então que os pesadelos começaram.

No primeiro da série, eu estava justamente nesse pequeno parque no meio dessa quadra, no que parecia ser uma grande tempestade. Nesse parque não havia muita coisa além de alguns bancos de cimento e grama. Mas era noite e a chuva era forte. Eu olhava os prédios em volta e não conseguia ver nenhuma luz acesa. Quando relâmpagos caiam, conseguia ver alguma coisa mais detalhada, mas nada muito preciso. Olhei em volta para procurar algum abrigo, quando vi que do outro lado da praça havia uma pequena galeria que levava até a rua e achava que lá eu iria ao menos conseguir me proteger da chuva. Corri do outro lado, pisando nas poças de água e na lama formada no temporal, mas quando foi passar pelo meio, o que parecia uma simples poça de água acabou se mostrando uma profunda piscina. Pisei no buraco e mergulhei na água suja, como se caísse em um poço. Acordei antes de me afogar por inteiro.

Tive dificuldade em voltar a dormir nessa noite, principalmente porque quando acordei, de fato estava chovendo lá fora. Não me lembro de outro sonho naquela semana.

No próximo sonho vívido que me lembro, eu estava em uma avenida principal da cidade, quando resolvi caminhar até aquela quadra. Cheguei na frente da galeria e resolvi atravessar até a praça. Só que quando cheguei do outro lado da galeria já era noite e bem no centro da praça identifiquei uma figura que parecia uma pessoa encapuzada, vestindo uma espécie de túnica velha, grossa, suja e pesada, com um capuz cobrindo o rosto - não conseguia ver ou identificar nenhum detalhe do rosto. Ela estava no centro da praça, onde antes eu mergulhara no que parecia ser um poço escuro e sem fundo. Ela olhava na minha direção e esticou seu braço para mim. Senti uma grande necessidade de ir até ele, por mais que racionalmente soubesse que não deveria fazê-lo. Mas, racionalmente também percebi que aquilo era só um sonho e nada de mal poderia acontecer. Quando me aproximei, o ser segurou meu braço com seus longos e finos dedos e consigui sentir suas longas e sujas unhas furando minha pele. Tento soltá-lo, mas não consigo: ele é mais forte do que eu. Eu então ouço uma voz rouca, com um grito surdo que parecia ecoar no silêncio dizendo: "Ilim-Rüyalar". Então essa figura se desfaz em uma pilha de poeira e some. Eu acordo.

Naquele momento, minha curiosidade é atiçada e eu resolvo explorar cada vez mais aquele ponto. Eu não sabia no que iria me meter.

Nos próximos sonhos, eu resolvi explorar cada vez mais aquela praça, pois algo me dizia que ali iria encontrar alguma coisa. Além disso, precisava saber o que era "Ilim-Rüyalar". Em uma série de sonhos que, estranhamente se complementavam, eu consegui iniciar uma escavação naquele local. Aos poucos, fui encontrando diferentes evidências naquelas escavações, até encontrar um túnel recheado de desenhos e escritos que não compreendia. E, como em todo sonho, esses desenhos sempre apareciam diferente. Não sabia se era alguam forma de alfabeto ou hieróglifo desconhecido, mas parecia ser racional. E não sei porque insistia nessa busca, pois todos os sonhos terminavam com algo ruim ou com um forte sentimento de opressão, como acidentes, túneis caindo, mortes, vultos, sombras e pessoas desesperadas.

Até que encontrei uma placa, com escrita latina que parecia estar estática e não mudava com o tempo. Ela dizia "Ilim-Rüyalar".

A placa estava na abertura de um longo túnel. Como era um sonho, nunca me questionei como conseguia enxergar no escuro, mas tinha a sensação que ali era um ambiente de total escuridão, por mais que conseguisse ver formas básicas. Assim que entrei no túnel, meus sonhos e pesadelos mudaram: eles ganharam substância e se tornaram cada vez mais reais. Era quase como se eu não conseguisse diferenciar entre o estar acordado e estar dormindo, sonhando, pois havia continuidade nos sonhos e cada noite eu voltava a sonhar de onde havia parado. Além disso, eu tinha total consciência do que estava acontecendo comigo e sentia que passava nos sonhos as mesmas horas que estava dormindo.

Em todos esses sonhos, eu estou sozinho. Eu eventualmente atravesso o túnel e encontro a abertura de uma grande caverna. E dentro dessa caverna encontro uma cidade abandonada. É difícil descrever essa cidade. É quase como ela fosse construída na borda de um gigantesco fosso cavado em forma de funil, como se ali fosse uma antiga mina de algum metal precioso ou minério importante. As construções eram escavadas nas paredes e havia uma espécie de estrada que descia esse fosso em forma de espiral. Olhando para cima, pude perceber que eu estava no início desse buraco e no alto havia apenas pedras e estalactites, como o teto de uma caverna.

No decorrer das noites, eu comecei a explorar essa cidade. Ela estava completamente abandonada, com a exceção daquele ser encapuzado que sempre aparecia no final do sonho, um pouco antes de eu acordar. Sempre que olhava para ele, eu acordava e não conseguia mais dormir. Tornou-se a minha missão encontrar esse ser.

Cada noite eu descia mais e mais. Encontrava casas abandonadas, onde haviam camas corroídas pelo tempo e objetos pessoais. Haviam estabelecimentos comerciais vazios, com mesas destruídas e vidros quebrados. Encontrava de tudo que pudesse existir em uma cidade, menos qualquer evidência da existência de pessoas vivas ou mortas. Eram como se ali vivesse uma comunidade de mineradores com suas famílias que abandonaram o trabalho assim que chegaram no final do poço.

E, da mesma forma como fazia com a minha cidade dos sonhos, resolvi fazer com Ilim-Rüyalar. Enquanto estava acordado, resolvi fazer um mapa detalhado da cidade. O mapa era uma vista lateral das casas esculpidas nas paredes que depois poderia ser montado para parecer o funil até a base. Eu estava entrando em uma empreitada emocionante, mas do qual não conseguia imaginar como acabaria.

Mas o que eu descobri foi muito mais aterrorizante. Estava descobrindo os segredos da cidade abandonada de Ilim-Rüyalar.

Descendo cada vez mais pelas paredes desse precipício, fui encontrando algumas outras e novas evidências. Encontrei livros e registro, catálogos das escavações e conseguia ler tudo como se eu realmente estivesse no local. Aparentemente, ali era o que sobrou de uma grande escavação arqueológica no interior da Turquia, que estava seguindo os indícios de vários relatos diferentes e independentes que coincidiam apenas com o local.

Os relatos falavam de alguma força misteriosa localizada no subsolo do deserto. Era uma força que parecia chamar viajantes incautos, heremitas e vários monges. A maioria das pessoas sentia essa força de noite e muitos durante o sonho. Mas os que conseguiam relatar - principalmente os monges que viviam na região e faziam peregrinações ao local - diziam sentir essa força durante o dia. Esses relatos voltavam à Idade Média, até o final do século XIX quando esse grupo de exploradores liderado por um arqueólogo inglês e financiado pelo Império Otomano encontrou a entrada de um túnel na base de uma montanha próxima ao monte Ararat. Como se tratava de um local sagrado para várias religiões, o Império fez questão de manter tudo em segredo.

Os vários documentos que encontrei relatavam diferentes partes dessa mesma história. Ali eles encontraram o resto de uma cidade abandonada que remontava ao século CXX antes da nossa era, de alguma civilização desconhecida, aparentemente surgida logo após a era glacial. Ao escavar a cidade, os exploradores foram reorganizando-a para servir à sua escavação. Parecia que no topo da escavação encontravam-se as residências dos operários, enquanto no fundo eram guardados os materiais mais secretos, justamente para evitar que eventuais saqueadores pudessem descobrir do que se tratava. O relato oficial era que ali estavam sendo feitas escavações para uma possível mina de sal e outros minerais essenciais.

O que iria me impressionar mais era o que havia no final desse percurso. Quem me mostrou foi ninguém menos do que aquela figura encapuzada.

Depois de algumas semanas descendo e explorando as construções da cidade subterrânea nos meus sonhos e desenhando o que descobria durante o dia, em uma noite, entrei em uma das construções bem no fundo do fosso e dentro da casa estava aquela figura. Quando o encarei, pensei que iria acordar, como acontecia todas as noites. Porém, desta vez foi diferente. A figura estava em pé, encapuzada, mas desta vez eu conseguia ver a sua boca semiaberta com seus dentes apodrecidos. Também sentia um fedor horrível emanando dele, como se ele estivesse ou fosse pura carniça. Se ali não fosse um sonho, provavelmente teria vomitado.

Esse ser deu alguns passos na minha direção e retirou seu capuz. Não saberia descrever o asco que senti de sua figura. Não via olhos, nem sinal de globo ocular. Era como se sua testa terminasse nos lábios e não houvesse nada além do nariz, fino e também carcumido pelo tempo. A figura era completamente calva e suas orelhas também pareciam que foram comidas por animais. Com sua voz rouca e indistinguível, que parecia consonar diversas vozes distintas, masculinas e femininas, jovens e velhas, consegui ouvir algumas palavras:

"Assim, o Devorador de Almas não consegue me pegar."

Devorador de Almas? Do que esse ser estaria falando?

"Se você chegou até aqui, cuidado, pois se prosseguir, pode nunca mais voltar." Ele completou seguindo um sorriso que não sabia se era irônico ou sincero e ele realmente não queria que eu saísse mais de lá. Mal sabia eu que aquela era a minha última chance e aquele foi meu último sonho antes de eu encontrar com o Devorador de Almas.

Na noite seguinte, o sonho iniciou-se comigo naquele cômodo, de frente ao ser. Logo de cara eu disse:

"Eu quero conhecer esse Devorador de Almas".

"Você não sabe o que está pedindo", retrucou o ser.

"Eu sei que isto é só um sonho e que nada aqui pode me fazer mal," respondi, com certo ar de superioridade.

"Você não sabe do que está falando," respondeu, agora com um tom mais sombrio.

"Quem é o Devorador de Almas?"

"É o ser que vive no fundo deste poço"

"E o que ele faz?"

"Devora almas."

"Foi isso que aconteceu com os exploradores da cidade?"

"É isso o que acontece com todas as pessoas que vão longe demais. Ninguém quer que vá longe demais."

"Como é esse Devorador de Almas? O que ele faz?"

"Não sei descrevê-lo, pois nunca o vi. Mas sei que ele é um terror inimaginável, capaz de destruir a vida de um ser e oferecer um destino pior do que a morte."

"E como ele faz isso?"

"O Devorador possui quatro bocas e cada boca devora um pedaço da alma. A primeira boca devora o medo e a pessoa nunca mais teme nada."

"Isso não parece ser tão ruim. Neste momento eu poderia não ter medo, já que estou me borrando todo com a situação," e estava sendo sincero ao dizer isso. Nunca havia sentido tanto medo na minha vida. Mas como era um sonho, sabia racionalmente que nada de realmente mal poderia acontecer comigo.

"A segunda boca devora a morte e a pessoa nunca mais pode morrer. Essa foi a única boca me devorou e por isso nunca morri."

"Vida eterna? Novamente, não me parece ser tão mal. O que mais?"

"A terceira boca devora o sofrimento..."

"E a pessoa nunca mais fica triste? Felicidade para sempre? Acho que estou começando a gostar desse tal Devorador de Almas!"

"E a última boca devora a revolta, deixando a pessoa cheia de esperança."

"Então, deixe-me ver se entendi: esse tal Devorador de Almas que vou encontrar no fundo do fosso ele me dá coragem, imortalidade, felicidade e esperança? E por que eu teria medo dele? Eu acho que quero sim ver esse Devorador de Almas!"

"Você não sabe o que está sentindo."

O ser deu alguns passos para trás e apontou para a porta. Naquele momento, eu não sabia o que esperar quando saísse e descesse as últimas voltas da espiral.

Mas foi exatamente o que fiz. Conforme descia, a espiral ficava menor e a jornada era mais rápida. Se demorei semanas para chegar naquele ponto, naquela noite, em questão de uma hora de descida direta consegui chegar até o fundo. E ali encontrei um platô circular que não tinha mais que vinte metros de diâmetro.

Caminhei até o centro, tentando encontrar esse Devorador de Almas. E chegando no exato centro, onde havia um cristal encrustrado no chão, foi que vi o Devorador se materializar.

Da lateral do platô, das paredes do precipício, das quatro direções em volta, eu vi uma fumaça empoeirada vindo na minha direção, cercando-me por todos os lados. Perdi completamente a noção da realidade e sentia como se cada grão daquela poeira estivesse me ameaçando e fosse devorar a minha carne. O medo tomava conta de mim como nunca na minha vida. E tudo era pior pois, geralmente, quando chegava a um ponto onde eu me sentia fisicamente ameçado como estava me sentido naquele momento, eu simplesmente acordava. Mas não ali. Medo era a única coisa que sentia.

Então, do redemoíno que se formou em minha volta, vi se materializar uma boca monstruosa como nada que um dia houvesse imaginado. Era um amalgama de monstros e seres, com dentes de todos os tamanhos e formas e várias linguas que se movimam como tentáculos. A boca veio em minha direção e me mordeu, passando direto por mim. Naquele momento perdi o medo.

E sem o medo não me senti corajoso, mas depois percebi que ficara imprudente. Sem medo, fiquei curioso para saber o que mais viria pela frente e como seriam as outras bocas. Sem medo, os meus sentidos ficaram mais aguçados e eu conseguia perceber todos os detalhes que antes me pareciam despecebidos. Olhei para cima e vi toda a cidade e via o que não estava lá, como as pessoas que um dia moraram naquele lugar.

Percebi também a segunda boca se materializando. Era uma boca decrépita, com dentes quebrados, sem lingua, que exalava um cheio horrível de morte, como se centenas de criptas estivessem abertas ao mesmo tempo no meio de um dia de sol escaldante. E, quando essa boca passou por mim, soube que havia perdido a capacidade de morrer.

Não sentia medo, mas caiu sobre mim um enorme desespero. Sem poder morrer, o que me aguardava pela frente? Como seria a minha vida? Será que eu seria um corpo ambulante como aquele ser que me acompanhou na minha descida? Teria eu saúde, amizades, uma vida normal? Como será que eu iria envelhecer? Será que eu iria ver todas as pessoas que amo morrer? Diante de mim, se abriu um mar de angústia e agonia como nunca antes na vida. Principalmente agora que sabia que minha vida era eterna. E eu não queria viver a eternidade com essa angústia.

A terceira boca se materializou em pouco tempo. Ela era maior que as outras, com dentes afiados que escorria um líquido verde muito quente. Eu via fileiras e fileiras de dentes de metal, uns mais afiados e outros completamente enferrujados que mais pareciam projetados como máquinas de torturas medievais. Ao passar por mim, senti um enorme alívio e senti que todo o sofrimento havia sido devorado do meu ser.

Sumiu minha angústia, meu desespero, toda aquela agonia existencial que estava sentindo diante da eternidade da qual estava condenado. Porém, ao invés de me sentir feliz, comecei aos poucos a me sentir entediado. Sem medo, percebia tudo. Sem morte, porém, sem sofrimento, não sentia nada. A felicidade perdeu o sentido. A alegria não tinha mais razão de ser. A eternidade não tinha mais propósito e a única coisa que eu conseguia sentir naquele momento era raiva. Raiva do Devorador de Almas. Raiva de Ilim-Rüyalar. E principalmente raiva de mim mesmo por permitir chegar naquele ponto.

A última boca se materializou como uma enorme máquina de guerra, com facas, canhões e muita fumaça e fogo. Essa boca passou por mim e devorou minha revolta. Finalmente restou-me o que aquela figura encapuzada prometera: a esperança.

Sem raiva ou revolta em mim, a única coisa que eu podia sentir era uma enorme esperança de que aquela situação iria um dia mudar. Imaginava que um dia iria conseguir sair de lá e acordar desse pesadelo. Achava que eventualmente poderia sair daquele poço e voltar à superfície. Agora estava sem medo, sem sofrimento, vivendo eternamente esperançoso por uma mudança e por uma vida que eu não tinha o menor conhecimento se iria acontecer.

Mas, ao invés de eu fazer alguma coisa, a esperança me fez esperar. E percebi que o Devorador de Almas me deu um destino muito pior do que a morte: me deu uma vida sem sentido da qual eu nunca poderia me livrar. Estava sem ação diante da vida, paralizado, mas mentalmente esperançoso. Não agia porque era a angústia que me movimentava. Não decidia pois era a revolta que me alimentava. Agora, sem combustível, me restava ficar parado, no fundo de Ilim-Rüyalar, esperando o meu destino, o dia em que as coisas seriam diferentes - se é que um dia elas serão.

------

Relatório Prognóstico Semestral No. 1

O paciente encontra-se estável e medicado. A depressão aparentemente está controlada e o paciente parece responder às terapias ocupacionais indicadas. A catatonia entrou em remissão, porém, os delírios ainda permanecem. O paciente fala da "cidade dos sonhos" e que precisa terminar o mapa da cidade subterrânea. Indico terapia ocupacional que envolva trabalhos físicos e não recomendo trabalhos manuais, pois seu delírio obsessivo pode ser acentuado caso ele retorne a produzir compulsivamente aquele mapa, como fazia antes.

O psicólogo relata que em suas sessões de terapia semanal, o paciente tem aos poucos contado sobre seus sonhos, já que ele se recusa a falar sobre sua vida pessoa. Mas todos os sonhos são os mesmos. Segundo o psicólogo, o paciente sonha que está preso no fundo de um poço, mas não há nada que o prenda fisicamente, porém, ele está completamente sem forças para subir. Seu diagnóstico é que o sonho descreve seu estado atual de depressão. Isso me faz pensar em aumentar a dose do antidepressivo.

O prognóstico é satisfatório, levando em conta o caso crônico de Transtorno Esquisoafetivo. Aparentemente os sintomas do Transtorno Obsessivo-Compulsivo não aparecem mais, mas continuaremos com o medicamento, pois ele parece estar surtindo efeito. Ao menos ele não está piorando. Estudando o relato de seu antigo médico, parece que ele chegou à clínica com um quadro de depressão grave, em pleno Episódio Depressivo. Porém, depois de algumas semanas internado, ele foi acometido de delírios e catatonia, agravando o seu quadro. Foram quatro dias de crise antes de começar a atendê-lo e antes de ele apresentar os sintomas de TOC durante o segundo mês de tratamento.

Agora, seis meses depois, as coisas encaminham para a estabilidade. Não vejo, porém, como o paciente possa um dia ter uma vida normal novamente. Por toda a vida ele precisará tomar os medicamentos, para evitar uma recaída ou quem sabe um futuro quadro de suicídio. Devemos evitar isso a todo custo. O paciente não pode morrer. Os medicamentos receitados, porém, reduzem sua ansiedade e agitação para impedir qualquer ação contra sua vida. Ele agora precisa se estabilizar para depois mudarmos os medicamentos para outros que o acompanharão pelo resto da vida. Não podemos perder as esperanças.

Continue Reading

You'll Also Like

2.5K 10 3
O Mundo De Uma Escrava Safada
1.3M 14.2K 5
Cinco contos eróticos lésbicos diferentes, todos de minha autoria. PLÁGIO É CRIME
19.1K 123 4
essas histórias são experiências de algumas pessoas que quiseram compartilhar comigo pra pôr aqui
6.5K 955 14
Ele me deixou. Jeon Jungkook me abandonou quando eu não passava de um adolescente assustado. Ele me abandonou em uma casa com um monstro. Agora, ele...