Relicário

By nanzcampos

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VENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para... More

SINOPSE
Notas da Autora
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
BÔNUS
ATENÇÃO PARA O COMUNICADO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
TRINTA E UM
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
TRINTA E QUATRO
TRINTA E CINCO
TRINTA E SEIS
TRINTA E SETE
TRINTA E OITO
TRINTA E NOVE
QUARENTA
EPÍLOGO

CINCO

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By nanzcampos

Gasto toda a minha raiva nos primeiros 30 minutos de treino, imaginando que a bola amarela de vôlei é na verdade a cabeça azul da idiota que feriu a bolha de Fernando. Isso faz com que eu soque a bola com muito mais força do que o natural, o que primeiro deixa minha treinadora empolgada, para então começar a chamar minha atenção e, por fim, nos últimos minutos, me xingar por usar força desnecessária num esquenta de treino, quando ainda nem estamos treinando as posições técnicas nem nada.

— Você vai acabar se machucando! – Melissa berra quando a cortada que eu dou passa zarpando pela orelha de Daniele, a garota que é minha reserva – Ou machucando alguém! A gente não pode ter mais nenhuma baixa! O próximo jogo é contra o Rio de Janeiro! Estão entendendo?! – ela emenda, sempre aos berros e com pontos de exclamação, numa caricatura menos charmosa do Bernadinho.

Ninguém é capaz de esquecer que o próximo jogo é contra o Rio de Janeiro. Até porque o time do Rio de Janeiro é inesquecível – e a última vitória deles em cima de Ponte Belo também. Então todo mundo faz um muxoxo, seguido de uma careta, e treinamos com muito mais afinco. O que me faz bater com mais força ainda na bola.

Eu não sou violenta. Pelo menos é isso que os testes de psicologia disseram, quando passei por uma bateria deles para saber se podia mesmo subir para o time principal. Sou a caçula do time e isso deixa todo mundo muito preocupado comigo. Ou talvez seja porque o time é de Ponte Belo, e por mais que seja um time esquematizado dentro da Universidade, ainda assim há todo o maldito medo de machucar uma Vale. Não que eu seja uma pessoa fácil de machucar, mas ninguém parece estar interessado nesse fato.

Quando o treino finalmente começa – com as disposições táticas e técnicas, rodízio e ensaios de jogada – Fernando já foi para sua terapia, levado por uma estudante de psicologia. Ele me dá seu tchau típico – a disposição dos dedos num código de Star Trek – e parece quase tão normal quanto estava de manhã. Mas meus olhos flagram os dedos dele se mexendo, em ritmo, ao lado do corpo. E isso é o bastante para eu saber que não – ainda não estava tudo bem. E vai demorar a ficar.

E é por isso que volto a bater com toda a força que tenho na bola.

— Dafne! – berra Melissa, quando eu quase a acerto com a bola – Você planeja destruir a quadra?

— Você não vai reclamar quando eu fizer isso contra o Rio – resmungo. E as garotas ao meu lado concordam, sorrindo.

***

No final do treino estou exausta demais, com meus braços pesados, e ainda com muita raiva. O que é uma pena, porque quero continuar batendo, mas não tenho mais força. Isso me faz lembrar que quando a temporada acabar, e eu for me dedicar só a escola e aos campeonatos escolares, eu posso achar um esporte de luta para praticar nas horas vagas. Ninguém quer uma Vale maluca quebrando tudo o que vê pela frente. Embora eu adore a ideia de bancar a louca de vez em quando, para ver se meus pais param de tentar me enlouquecer.

— Soube que o garoto da sua escola vai dar uma festa essa semana – fala Lavínia, quando sai do chuveiro.

Eu estou no banco do vestiário, deitada, suada e muito cansada para me mover, mesmo sabendo que preciso de um banho também. As outras garotas estão conversando assuntos aleatórios, e, de um modo geral, apesar de adorar esse time e os treinos, acabo ficando por fora das conversas. Elas são mais velhas. É estranho porque a vida toda eu conversei com pessoas mais velhas, por causa do meu irmão, e isso nunca me afetou. Mas a cabeça delas é muito diferente. Próximas, provavelmente, do que Vênus era antes de começar a namorar Pedro. O que não é ruim, só que, para alguém que nunca beijou, é para lá de atordoante.

Lavínia é a mais próxima de mim. Talvez porque ela seja só um ano mais velha, talvez porque jogamos juntas no time de base, porque somos ambas nascida, crescida, em Ponte Belo. Ou talvez seja porque ela é mesmo uma pessoa legal. O fato é que, por tudo isso, ela nunca se intimidou por eu ser uma Vale – mesmo ela sendo negra, de periferia, do lado oposto ao lado que vivo e conheço.

— Eles adoram uma festa – concordo.

— Você vai? Nunca te vejo nas festas.

— Eu não sabia que você ia.

— Ah, vou – ela sorri e prende o cabelo trançado num coque muito estiloso, que faz meu cabelo parecer algo muito próximo com o que uma vaca lambeu – Eu sempre trabalho nas festas.

Ai.

Me sento porque não estava preparada para aquele fato. Porque, de um modo geral, é sempre assustador perceber que eu não precisava de trabalho, mas as outras garotas do time, e da cidade, sim. O privilégio tem gosto estranho, amargo e chega a me dar um nó no estômago. E toda vez que isso acontece me pergunto porque as outras pessoas privilegiadas não se sentem mal por isso também. Mas sei que é uma sensação passageira, que vai sumir da minha mente, até que outra vez alguém me lembre do fato. E saber disso, saber que não sou tão diferente quanto todos os outros, me deixa mais enjoada ainda.

— Eu devo ir – passo a mão no meu cabelo, pingado de suor – Fernando vai.

— Vocês estão se pegando? – ela pergunta. E no mesmo instante todo mundo cala a boca no vestiário.

É constrangedor.

— Não! – respondo o mais rápido que consigo.

— Ele é bem gatinho, né? Daquele jeito estranho – fala Helena, a garota mais velha do time, no alto dos seus longínquos 25 anos.

— Ele não é estranho. Ele só é diferente da gente – defendo. Todas as garotas sorriem, o que me deixa ainda mais enjoada – Gente, não. Eu não quero ficar com meu melhor amigo. Tipo: mesmo.

— Bem, eu ficaria – Lavínia dá de ombros.

Meu Deus – penso – Não!

Por que todo mundo sempre acha que a gente tem de ficar com nossos melhores amigos?

Quer dizer, não é como se eu tivesse boas experiências observando isso. Só de lembrar o tanto de sofrimento que foi esperar Caio e Luana ficarem juntos, uma história que é mais velha do que eu e que só foi se resolver a, sei lá, quatro meses... Sinceramente. Eu não preciso de mais desgraçamentos na cabeça tentando viver uma história dessas. Além do que: eu não quero beijar o Fernando. Quer dizer: ele é só meu melhor amigo. Praticamente meu irmão. Tenho certeza de que ele pensa a mesma coisa. E tá ótimo assim. Tá ótimo porque eu continuo não querendo beijar ninguém.

— Você acha que ele consegue? – fala Liz, uma garota de míseros 1,60m de altura que é nossa líbero principal. E também aquela que não me deixa ser a mascote do time, já que, por causa do seu tamanho, ela parece muito mais nova do que eu. – Beijar na boca?

— Eu não sei? – falo, tentando não fazer cara de nojo – Af, gente, por que esse parece ser o assunto do dia?

— Por que ele estava agitado pra caramba e você descontou toda sua raiva na pobre bola que nada tinha a ver com sua ira? – Bruna, a atacante, diz.

— Foi só uma babaca que o atropelou no caminho. Ele ficou irritado. Eu fiquei irritada porque a garota era uma idiota. Odeio pessoas idiotas.

— A gente sabe que sim – Lavínia diz – Bem, tenho que ir. Vou ajudar minha mãe a fazer uns doces. Até amanhã, girls.

A deixa de Lavínia faz todo mundo resmungar que precisa ir embora também, e, em pouco tempo, tenho o vestiário só para mim. Não que seja nada muito glamoroso, é claro. É só um espaço menor que a sala da minha casa, fedendo a suor, com chuveiros bem capengas e fiações bem mais capenga ainda. Mas ficar em silêncio, depois desse dia infinito, é ótimo. E eu aproveito para gastar quase meia hora na água quente, coisa que, com o time aqui, jamais poderia fazer.

Quando saio, a quadra já está lotada de rapazes e a paz já foi embora. Eles estão jogando futebol e eu passo, quase que correndo, para não escutar nenhum comentário desnecessário. O dia em Ponte Belo está chegando ao fim e isso faz os ventos ficarem mais fortes. Minhas pernas estão pesadas e, por um instante, quase ligo para meus pais para mandarem alguém me buscar, porque estou muito cansada e o caminho até minha casa não é tão curto quanto queria. Mas me sinto mal por isso, e vou andando.

Privilégios nem sempre são uma coisa boa. Quer dizer, não quando eles vêm envolvido com aguentar os preconceitos, regras e pose dos meus pais, pelo menos. Então, porque estou cansada, porque não me sinto compreendida, porque sou adolescente e me dou o direito de ser rebelde, às vezes, tento não alimentar demais o monstro que é uma família tradicional, quando sei que não posso ser tradicional como eles querem que eu seja.

O resto da semana é um borrão de falsidade, misturados com a rotina normal de treinos de vôlei. Continuo muito brava, mesmo quando Fernando volta a sua normalidade no dia seguinte, intocável e afastado do resto das pessoas. Queria ter a facilidade que ele sempre tem de esquecer certos acontecimentos, mas toda vez que olho para ele lembro da garota imbecil que o atropelou, e sinto meu sangue ferver tanto que, na sexta-feira, fico tão vermelha que Pietra me cutuca na sala de aula e pergunta:

— Tá pensando besteira, é?

Não sei o que ela quer dizer com besteira, mas se ela considera técnicas de tortura, seguida de modos de esconder o corpo, como besteira, acertou em cheio.

— Só para você saber – fala Amanda – vou te pegar na sua casa as oito, beleza?

— Eu ainda não falei com meus pais...

— Te vira – ela revira os olhos – Fala que vai dormir na casa do seu irmão. Daí, se você finalmente desencantar, e resolver fazer coisas... coisas de verdade... não precisa de hora para voltar para casa.

— De que tipo de coisas você está falando? – arqueio a sobrancelha.

— Coisas, Daf. Coooooisas – ela revira os olhos – Minha nossa, alguém precisa te jogar na vida do crime, da catuaba, sei lá. Já passou da hora de você aprender sobre o lado bom da vida, hein?

— Ou talvez Daf só se faz a santa – fala Pietra.

— É o que vamos descobrir nessa festa - Amanda assente.

Eu não estou entendendo nada, e Pietra e Amanda riem. O professor de biologia nos xinga. Me remexo na cadeira porque, primeiro, odeio quando professor chama minha atenção. E segundo porque, por alguma razão, não estou gostando da conversa. Mas não sei exatamente por quê. E odeio quando sou a última a entender a piada.

Especialmente quando tenho a impressão de que a piada sou eu.

vish, será que é só impressão de Daf, ou será que ela será mesmo uma piada? alguém vai ter coragem de fazer alguma coisa com uma Vale??????? eu não teria. essa família é completamente LOUCAAAAAAAAAAAAAAAA, o mais sensato é o Pedro e só deus sabe as coisas que ele destrói pelo caminho quando tá puto (salve-se quem puder!).

Vocês tão muito caladas nessa história. Vou ficar calada também.

Humpf.

Beijos cafeinados só pra quem comentar.

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