Aquala e o Castelo da Provínc...

By BernardoDeSouzaCruz

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Extraterrestres. Será que eles realmente existem? De onde vêm? Será que são do jeito que os humanos imaginam... More

PRÓLOGO - VIZINHOS EXTRATERRESTRES
CAPÍTULO 1 - A CADEIRA DOURADA
CAPÍTULO 2 - O DICIONÁRIO DE BOLSO
CAPÍTULO 3 - CATORZE ANOS MEDÍOCRES
CAPÍTULO 4 - ESCOLA DAMATIO
CAPÍTULO 5 - UM INSETO EM ALAN
CAPÍTULO 6 - O ATAQUE AOS ALUNOS
CAPÍTULO 7 - DEBAIXO DO SEU NARIZ
CAPÍTULO 8 - TUDO DE MÃO BEIJADA
CAPÍTULO 9 - OS EXTRATERRESTRES DE ESTIMAÇÃO
CAPÍTULO 10 - AS AVES CINTILANTES
CAPÍTULO 11 - O CENTRO OSÍRIS
CAPÍTULO 12 - A CIDADE DO CASTELO
CAPÍTULO 13 - A CORRIDA
CAPÍTULO 14 - O LAGO DOS DESEJOS
CAPÍTULO 15 - MALDITOS MONSTROS!
CAPÍTULO 17 - A SOBREVIVENTE
CAPÍTULO 18 - OS ESCARAVELHOS
CAPÍTULO 19 - UMA ESTRANHA VISITA
CAPÍTULO 20 - DOIS HOMENS DE MEON
CAPÍTULO 21 - AS ABDUÇÕES
+ Um recado aos leitores
Capítulo 22 - O gancho necessário.

CAPÍTULO 16 - SOB O DOMÍNIO DOS THONZES

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By BernardoDeSouzaCruz

A horda de bárbaros corsarius não estava longe. Eles corriam em nossa direção como loucos transtornados e alucinados por carnificina. Nas mãos, lanças acentuavam a falta de um escudo. Seriam tão tolos de não usar algum equipamento para se defender? Acho que a resposta estava em seus atos, eram centenas de seres desnorteados que não valorizavam suas vidas e, mesmo mortos, achavam que o prazer da vitória seria aproveitado. Se um morresse, haveria mais outros para terminar a luta. Em suas costas, arcos e flechas eram mantidos. Pude ver a ponta do arco sobre seus ombros.

Mancando, voltei para montar novamente no rapko. Laura e Sofia gritavam por mim. Logo o caminho pareceu menos complexo que antes. Eu sabia que aquele Metalitus não existia mais, porém o exército de corsarius que corria atrás de nós era vasto, mas não tinha como nos alcançar.

Olhei para trás e fiz o tronco cair sobre o solo, esmigalhando muitos deles, mas outros mais pulavam o caule, loucos para nos matar. Estávamos na parte da floresta onde havia longas rachaduras no chão, parecidas com abismos; mas, lá embaixo, via-se mais floresta. Os rapkos pulavam como leopardos e abriam as patas como uma ave abre as asas. Planavam no outro lado do abismo, e assim iam. Chovia água e flechas em nossa direção, mas, como sumíamos na mata novamente, todas elas acertavam os troncos das árvores.

Resolvemos dar uma descansada ao nosso próprio fôlego, fechando os olhos e respirando fundo. Quando o pior aconteceu, meu rapko foi acertado. Em seguida, o do Felipe e da Sofia, depois o de Laura. Os vi capotando. A maioria dos corsarius conseguia pular os abismos, grande força nas patas e uma brutalidade absurda em sua raiva. Caído na lama, as dores voltaram a contagiar meu corpo inteiro quando a solução caiu do céu... literalmente.

Vários thonzes caíram das pontes de madeira feitas entre um galho de uma árvore e outra. Era uma chuva de esperança. Aqueles humanoides de pele azulada e tentáculos na cabeça acabavam com os corsarius de duas maneiras: esses tentáculos serviam como adagas, atravessavam os monstros, os esfaqueavam praticamente. Outros, equipados de escudos, usavam suas lanças para atacar.

Não dava para ver muito bem, mas acho que foi isso mesmo. Eu estava deitado no chão, muita chuva caía e só pude ver tudo de lado. Logo depois eu apaguei.

Parecia que nenhum minuto havia se passado e eu não sonhava com nada, pelo menos não que eu me lembre. Tudo na minha mente havia se apagado como se uma onda de alegrias e felicidades invadisse tudo o que ocorreu de ruim naquelas últimas horas. Eu diria que seria um novo começo, mas um novo começo de quê? De uma vida nova? Pelo menos, era o que parecia. Eu conseguia andar dentro de um sonho que era estar em Aquala, só que, dentro desse sonho, eu sonhava. Era assim que eu pude sentir.

– Ele está acordando, está acordando...

Eu abria os olhos, mas tudo estava bem embaçado e a luz penetrava forte no meu cérebro. Tudo estava dolorido, mas não doía tanto.

– Chame Terokto. Rápido!

– Duesterui Terokto arrinttye nassje... – alguém gritou isso, acho que foi o que ouvi.

Estava tão confortável naquela cama, os lençóis não eram iguais aos do Castella Hondeias, eram bem mais macios. No meu braço, havia um emaranhado de folhas apertadas e grudadas, na mesma hora eu as tentei tirar.

– Não faça isso! – uma mão delicada tocou na minha, eu fazia força para poder enxergar, mas logo o rosto mais lindo que eu já vi focalizou-se bem diante de mim em volta daquela claridade absurda. Era Laura, seu cabelo estava preso, havia fios cacheados caídos sobre seu rosto – Não toque, pode atrapalhar. É um curativo que está fazendo um efeito invejoso.

Naquele mesmo instante, ela sorriu, mostrando os dentes brancos e perfeitamente enfileirados, me abraçou e fingi que não doeu o abraço. Ficamos sentados na cama. À nossa volta estavam presentes vários thonzes cujas mãos escondiam-se atrás das costas. Era como se eu fosse parte de um experimento, era estranho.

– Como você está? – Laura segurou meu rosto – Eu fiquei preocupada, você não acordava mais e todos perguntavam sobre você. Felipe e Sofia, volta e meia, entravam para averiguar se já estava de pé.

– Espera aí, quanto tempo eu dormi?

– Acho que uma semana. Um Ciclo Menai inteiro.

– Isso não é possível – minha cara devia ser de quem não acreditava mesmo. Ela olhou para alguém atrás de mim. Mãos grandes de cor lilás, com somente dois dedos, tocaram a palma na minha cabeça e afundaram no meu cabelo.

– Kue damako tui we adamayhe? – falou uma voz rouca nas minhas costas. Confesso que tive medo de olhar para trás e me deparar com algo extraordinário, mas suas mãos quase roxas não desgrudavam da minha cabeça.

– Terokto, ele não fala Aqla-Rhanes – falou Laura.

– Henuya. Perdão – a mesma voz desculpou-se.

Olhei para minhas costas e me assustei ao deparar-me com olhos grandes e brancos olhando a dois palmos de mim. Parecia cego aquele ser cujos tentáculos iguais aos de um polvo saíam da cabeça, havia oito deles amarrados por uma espécie de bandana.

– O que... quem é você?

– Ele é Terokto, o xamã desta cidade – Laura respondeu pelo thonze cujos lábios não paravam de se mexer, como se sussurrasse para espíritos que não podíamos ver. Usava panos simples como vestimenta, uma folha como a de samambaia era amarrada na cintura.

– Sr. Flintchy, a mim conceda o seu perdão, sua língua não é de meu costume. Antes que perguntas sejam feitas, está você em Rulinuka, cidade sob domínio nosso, dos thonzes – ele falava bem devagar, de modo bastante complicado, parecia meio zonzo.

– Ainda estamos em Longamínis? – eu questionei.

– Takn. Não, Tumas Flintchy. Junto a seus afeiçoados ocorreu o seu resgate e os trouxemos para outra provincía, longe de Longámines – o xamã respondeu certo, mas com palavras ditas erradas como se não dominasse muito bem o idioma do garoto.

– Quer dizer que vocês nos salvaram, vocês thonzes?

– Uik – balançou a cabeça, afirmando. Os tentáculos caíam sobre seus ombros, deixando em evidência seus vários colares pendurados no pescoço. Os dentes eram pontudos como os de tubarão – Não tire as folhas de pugnati de braço seu, elas o ajudam a curar todas as dores causada por bicho grande.

– Bicho grande? – eu repeti, em dúvidas sobre o que Terokto falava.

– O Metalitus. Ele fala sobre o Metalitus – Laura me cutucou. Não estava acostumado a ouvir Aqla-Rhanes, é uma língua bastante difícil e já extinta, era impossível entender, mas a tentativa daquele xamã em tentar conversar comigo era quase impossível também. A situação era complicada, principalmente por eu estar falando com alguém importante. Sentia-me pressionado em entender tudo o que dizia. Felipe já tinha tentado aprender essa língua através de livros, mas não conseguiu. Nem mesmo com línguas mais fáceis, como as da Terra, existe a hipótese de se aprender somente por livros, tem que ter uma prática, exercitar a fala. Terokto até fazia mímica, mas o que saía de sua boca sem lábios ainda era difícil de se entender.

O thonze diante de mim andava com as mãos encostadas nos lençóis na beirada da cama, olhos fechados e orações ao redor de Laura e de mim.

– Coisas boas, pense nelas! – ele correu para pôr as mãos novamente na minha cabeça – Somente coisas boas, boas, boas...

– Eu... eu não consigo – falei, meio assustado. Olhei para todos os cantos do quarto, havia thonzes em todos os cantos com as mãos para trás das costas e sussurrando orações.

– Tente!

Uma força descomunal atravessava minha mente, uma força que me dava felicidade, ânimo, alegria para sorrir. Acabei sorrindo como um idiota sozinho. Essa força não veio com vontade de obedecer ao que Terokto me pedia, não veio de mim, mas pareceu vir de suas mãos, uma energia agradável que simplesmente me fez sorrir. Depois ele evitou tocar em mim. O som das orações estava mais forte e ele pareceu apavorado, assustado com sua própria rede de poderes.

– Thomas tem querer perguntar a eu uma dúvida capaz que mudar sua vida.

– Eu? – perguntei, duvidoso. Era difícil de entender aquele thonze.

– Uik, você! Pergunte o que dúvidas traz-lhe.

Eu pensei um pouco antes de tocar no assunto. Era incapaz de perguntar o que me trazia medo, porém aquilo estava me transtornando, acabando comigo.

– O que é, Flintchy? Pergunte.

– Fale, Thomas! – insistiu Laura, ainda sentada ao meu lado na cama.

– Se você já sabe o que é, por que faz questão que me diga? – tentei esclarecer.

– Quero que, de você, eu ouça.

– É o seguinte: na presença daquele bicho grande, como o senhor disse, meus amigos não conseguiram usar seus poderes, a energia que engloba Aquala através das pedras Kespentate foi bloqueada por essa enorme criatura. Espero que, como xamã, possa me responder o porquê de somente eu conseguir usar poder.

Ele me olhou como quem armazena dados, memorizando algo sábio para responder, algo que só ele podia explicar de uma forma rápida, sem contornar muito e não chegar à conclusão alguma.

– Sobre essas pedras, confirmar eu não posso a nada, homens como vocês têm essa função; já a minha é viajar através de outros mundos e ter acesso a seus mondzes, seus fantasmas passados.

– Ele fala sobre seus espíritos ancestrais – explicou Laura, no meu ouvido.

– Tocando na sua cabeça, eu pude chegar a uma conclusão, Sr. Flintchy. Seus poderes não são de um aqualaeste qualquer, são de seres mais longínquos. São resultado de vidas divinas.

– Como assim? Não entendo.

O xamã se aproximou de mim, pôs as mãos no meu rosto e me olhou com uma vontade imensa de querer entrar na minha mente e saber tudo sobre mim, como se eu fosse um precioso lago no deserto. Suas pupilas brancas liam todas as minhas lembranças, tudo de bom o que eu fiz até chegar àquele quarto.

– Eu posso ver em você tudo o que de verdadeiro existe em Aquala. Eu vejo em você a criação, o começo, a trajetória e o hoje – Terokto colocou a mão na minha cabeça e ressaltou – Você é descendente de Phoerios.

Laura me olhou, estava branca. Me fitava como se eu fosse algo além do que ela imaginava, algo que a pegou de surpresa e que mexeu com sua cabeça, com seus sentimentos e com seu coração. Ela, naquele momento, me olhou da cabeça aos pés, boquiaberta. Quero guardar aquela cena para sempre.

– Quem?

– Ele falou que você é descendente de Phoerios, Deus Rei de Aquala – Laura falou claramente.

Agora quem ficou perplexo fui eu. Minha visão ficou turva e eu não mais respondia a nada, só fiquei parado e olhando para o chão. Não ouvia mais ninguém dizer nada, tudo soava como ruídos, nada mais. Tudo estava saindo da linha em que eu vivia. Num dia, eu e meu pai morávamos de favor; no outro, eu descobri que era de outro mundo e, hoje, sou o último da linhagem de um deus. Nada mais fazia sentido, estava tudo embaralhado na minha cabeça. Me senti uma pessoa diferente e com uma personalidade maior, minha alma tornou-se imensa, achei que era uma pessoa importante, e realmente era.

– Thomas, Thomas! – Laura me sacudia. Voltei ao normal, só não soube quanto tempo fiquei estatelado – Está bem?

– Eu preciso de um pouco de ar.

– Eu também, vamos lá para fora.

– Crianças, esperem. Quero apresentar o herói grande, o chefe da armada que salvou Sr. Flintchy e outros mais. Seu nome é Pertuk.

Um thonze do mesmo tamanho que Terokto apareceu ao seu lado, ressaltando da fileira dos outros que aguardavam nos cantos do quarto. Tinha os tentáculos amarrados em pares por fitas vermelhas. No focinho de tubarão, havia uma espécie de aro de madeira na ponta, precedida de uma perfuração. Usava uma faixa diagonal acima de um pano que usava como roupa.

– Pertuk vai vocês levar para conhecer nossa cidade. Não se assustem com o rio que corre entre as casas, de vez em quando fídias pulam da água. Não sei se conhecem, mas são seres rápidos.

– Prazer conhecê-los – Pertuk fez aquele movimento cuja palma da mão ficava aberta, o indicador dobrado e um movimento circular com o braço, o mesmo que dá início ao voo com os zarmos.

– Está prestes a conhecer a Veneza aqualaeste – sorriu Laura, me puxando consigo. Deram-me um minuto para me vestir apropriadamente, eu usava um daqueles panos como vestimenta, mas não me sentia bem, era como andar nu. Numa cabine no fundo do quarto escuro onde estávamos, coloquei minha roupa de novo, o casaco e as calças. Aparentemente tudo estava lavado.

Laura vestiu-se ao meu lado, uma parede fina feita de papel deixava apenas sua silhueta aparente. Só consegui me vestir depois que ela o fez.

Era como se a chuva tivesse cessado e tudo de maravilhoso que eu conhecia sobre Aquala tivesse voltado à tona como imaginava desde o início. O céu do lado de fora estava azul e com poucas auroras brancas, sua imensidão era preenchida com bandos de zarmos voando para lugar algum. A cidade que eles chamavam de Rulinuka era o lugar mais agradável que poderia existir. A base da sua população era formada por thonzes, os encontrava por todos os cantos que olhava. Como Laura disse, quase tudo ao nosso redor lembrava Veneza, metade das casas estava abaixo da superfície, como se o nível da água as tivesse invadido. Prédios simples com menos de quatro andares possuíam uma arquitetura ultrapassada e antiga, diferente de qualquer outra já vista na Terra. Eram feitos de madeira e pedras e, em suas construções, predominavam os círculos, as esferas e os desenhos de ondas.

Laura não largava meu braço, porém não olhava muito nos meus olhos, tinha um ânimo maior para apreciar as barracas nos pés de algumas edificações presentes no piso de pedra por onde andávamos. Um homem gritou.

– Não estrague tudo por causa de algumas ligretas. O melhor preço está conosco! O melhor ferreiro da cidade está aqui!

Do outro lado, havia alguns degraus para a água, gôndolas boiavam e uns peixes grandes e amarelos pulavam da água. Eram variações de sereias e se chamavam fídias, uma outra raça que eu ainda não conhecia, mas Felipe havia me contado muito sobre elas. Não sobrevivem fora da água. Nos olhavam, curiosas, com somente suas cabeças acima da superfície. Ausência de nariz e lábios pretos juntos, olhos amendoados e brânquias nas maçãs do rosto eram algumas de suas características. No lugar das orelhas e cabelos havia barbatanas e uma grande cauda, respectivamente.

– O que vocês sabem sobre os deuses? – Pertuk se pronunciou.

– Eu... eu confesso que não sei muito – respondi, olhando para seus tentáculos, balançavam como se fossem feitos de borracha – Não leio livros que trazem esses assuntos sobre entidades, espíritos...

– Espíritos? – repetiu o thonze de modo meio agressivo, enquanto andávamos – Não sei se sabe, Sr. Flintch, mas os deuses já viveram ou moraram nos mesmos lugares por onde, provavelmente, já passou.

– Acredito no que diz, afinal eu sou descendente de um. Não sei como estou acreditando nisso. Até outro dia, eu duvidava que existissem vidas em outros planetas. Estar levando essa história toda a sério e não enlouquecer são atributos de uma pessoa forte. Não é qualquer um que permaneceria são com tantos absurdos na cabeça.

– Sei que deve ser difícil, mas é quem você é – falou o thonze lilás. Laura não me largava – Terokto é curandeiro e não tem muito contato com outros viajantes como vocês, é acostumado a somente falar Aqla-Rhanes. Provavelmente me mandou mostrá-los a cidade porque, como sou líder da armada e conheço outros povos, domino a língua mestre dos longaminianos, a mesma a que vocês.

Passamos por um jardim onde os comerciantes não eram como os que habitavam o Largo do Castella Hondeias, mas tinham suas lojinhas e tendas. Era parecido com uma praça onde havia thonzes e humanos sentados em bancos e conversando, ambiente harmônico e movimentado. Havia também alguns daqueles cachorros de três metros de altura, os rapkos, comendo a grama alta.

– Você é o líder do grupo que nos salvou, certo? – perguntei a Pertuk – Comandava os thonzes que caíram das árvores.

– Fui eu o encarregado. Por que a pergunta?

– Como sabia que tinham pessoas em perigo naqueles bosques? Como sabia que nós corríamos perigo?

Nesse momento, Laura apertou meu braço com força, não por eu estar sendo indelicado, pois eu não estava, mas sim porque devia estar tão ansiosa para ouvir a resposta quanto eu.

– Um menino nos chamou. Guido é seu nome.

– Guido - repeti. - É ele, Laura. O neto da Eleonora. Nós o encontramos. Pertuk, nos diga onde esse menino está, preciso falar com ele.

– Não sei onde está, mas mora nesta cidade. Mais nada sei.

– Como assim? Tem que haver algum jeito, onde fica sua casa, onde costuma ir... – insistiu Laura em meu favor.

– É o seguinte, de vez em quando, ele vai ao templo orar para os deuses, mas não tem uma hora certa para estar lá.

– Pode nos levar a este templo? – perguntei, um tanto ofegante.

– Eu já tinha planejado levá-los para conhecê-lo.

Meu coração estava aberto, nunca estive tão feliz em ajudar uma outra pessoa, principalmente alguém pouco conhecido como Eleonora, porém não conseguia demonstrar essa felicidade. Eu tinha uma gratidão imensa por ela, afinal havia me ajudado e já estava na hora de eu retribuir. Atravessamos as águas pelas passarelas que ligavam uma quadra à outra e vimos as gôndolas que passavam por baixo de nós naquela espécie de viaduto. Laura também estava animada, eu pude sentir, porém ela obrigou-se a me lembrar do motivo de estarmos lá, a causa de todas as dores que eu senti na floresta. O primordial era encontrar minha tia, achar Guido foi somente uma consequência. Tínhamos que correr atrás da causa, minha tia Haydee nos aguardava.

Longe de todas aquelas casas e do mercado que nos rondava, lá no alto da colina cujo topo resplandecia próximo ao céu, estava o templo que brilhava como o tesouro daquele povo. Longe de toda aquela água entre cada esquina, as paredes e pilares daquele monumento comportavam desenhos detalhados de civilizações mais antigas, tudo feito em algo parecido com marfim.

Ao nos aproximarmos da escadaria frontal, larga e cheia de rachaduras em sua base, Pertuk necessitou quebrar o silêncio.

– O que sabe sobre os Deuses, garoto?

Eu indaguei e prometi a mim mesmo levar na brincadeira toda aquela situação que eles cismaram pôr em minhas costas.

– Que eu sou descendente de um deles, Phoerios. Não é isso? – eu dei uma leve risada. Pertuk continuou sério.

– Você deve achar que isso não está acontecendo, mas está, Sr. Flintch. É o último de uma linhagem divina e, por isso, todos os aqualaestes querem o seu bem, pelo menos os que têm sua cabeça no lugar, os que prezam por suas vidas e, obviamente, os que querem pôr um fim em Meon.

Cada lance de escadas era uma nova ideia a ser discutida, histórias interessantes que, pela primeira vez, eu ouvia sobre o meu passado, sobre de onde vim.

– Deixe-me contar o que muitos provavelmente não conseguiram, Sr. Flintch. Havia sete entidades que resolveram colocar em prática seus projetos de Ongio, Aquala e Meon, os três planetas que deveriam compor a Beta Atenuati, constelação onde nos encontramos.

Phoerios, deus aqualaeste, criou as Raças, a bravura e a inteligência. Com esses três elementos, ele pôde observar, de longe, a vida em Aquala se desenvolvendo. Phoerios deu aos outros deuses o direito de adquirir suas técnicas para manuseio de suas Raças criadas, limitando-os como seus ajudantes. Isso o transformou em líder, já que pouca era a intenção dos outros deuses em criar algo novo. Loosendra era a deusa dos Artrakhi. Rusten era o deus Evie. Crintyk, a deusa dos thonzes e dos cervuni. Dwinler ficou por criar a fertilidade das terras, das florestas e as luzes do céu. Já Mindihy organizou todos os poderes existentes nos projetos de Phoerios e pôs nos corpos de cada raça. Deusa muito sábia, mas acabou caindo pelos encantos de Tertius.

– Tertius, foi esse homem que matou quase toda a minha família. Ele era um deus?

– Não ouse falar uma barbaridade dessas, garoto! No máximo, poderia ser chamado de entidade, mas nunca passou pelos pés da grandiosidade de um deus como Phoerios. Tertius acompanhou de cima todo o processo de desenvolvimento dos planetas e de suas civilizações, mas ele gostava de fazer certas mudanças. Se divertia retalhando e mutilando as raças criadas, criando outras mais. Essas ainda existem em Aquala, mas nós as evitamos... são perigosas demais para conviver. Temperamento difícil e selvagem. Volta e meia, nossa vila é atacada por um duyoktu ou por um oeuya, eles roubam comida e chegam a matar aldeões.

– Como são essas raças, fisicamente falando? – subíamos mais e mais degraus.

– Existem várias espalhadas por Aquala, costumam viver em lugares isolados de tudo, em situações bastante precárias. Tudo culpa da modificação que Tertius fez nas magníficas criações de Phoerios.

Mindihy tornou-se alvo de especulações e de críticas entre os deuses quando se descobriu que estaria mostrando a Tertius todos os poderes que seriam aderidos aos aqualaestes, pois ele estava mexendo com sua cabeça de tal forma que a fez criar mais poderes somente para o amado.

Foi a partir daí que ele pôs todos os seus conhecimentos em Meon. Sim, ele roubou o planeta para ele e colocou lá todos os seres que achava fantásticos. Assim, ao longo de milhões de anos, sua atmosfera foi se distanciando da Beta Atenuati. Phoerios, enfurecido com Mindihy, a baniu, e logo criou outro planeta nomeado, por Dwinler, de Beonuta.

No meio da história e após o último lance de escadas, encontramos um vasto jardim com grama verde e poucas árvores rosas e azuis onde dormiam bandos de paleones. Uma abertura de uns cinco metros parecia ser a entrada para a gigantesca estátua do deus Phoerios num salão absurdamente grande. Havia um lago no meio do templo, e partes do teto aberto eram cheias de arcos ogivais. Uma fila de pessoas que saía de um portão era composta de humanos e thonzes que queriam ver e agradecer a Phoerios. Thomas percebeu que, se entrasse naquela porta, estaria naquele imenso lugar cheio de entradas para as aulas, com plaquinhas ao lado de cada portal, o Salão Prontal. Alguns thonzes organizavam a fila e impediam que os mais desastrosos descessem pelas escadarias que dava em Rulinuka. Não queriam mais humanos em sua cidadezinha.

– Sr. Flintch, ainda tem o mesmo sangue daquele deus que está do outro lado do lago. Me dê licença – ele segurou meu braço e, com sua unha pontuda, me fez um furo. Gotas vermelhas pingaram sobre a água – Somente com o bafo de um legítimo aqualaeste o senhor poderá ver a diferença.

Pertuk jogou ar quente de sua boca no sangue que escorria no meu braço. O que era vermelho tornou-se azul por alguns instantes, um azul brilhante. Agachei-me e lavei o braço na água do lago que me separava da enorme estátua do deus, a ardência foi aliviada. As pessoas da fila deixavam bilhetinhos escritos em folhas verdes ao lado dos pés da estátua e, em seguida, davam meia volta.

– Na Sala de Phoerios, eram comportadas as auras de todas as criaturas que andam como nós no planeta. Um salão inventado pelo deus onde não parecia haver fim, iluminado apenas pela sabedoria e paixão de cada aqualaeste em luzes arredondadas. Onde Phoerios determinou ser o centro da Sala, ele pôs num espaço largo do chão negro uma réplica flutuante dos planetas da galáxia que rodavam sobre seus respectivos eixos. A vida como conhecemos poderia ser manipulada pela mesma vida naquelas esferas. Um encostão no mar de Arpeis do Sul, no pequenino planeta na Sala de Phoerios, poderia causar ondas que afogariam países em tamanho real. Deixe-me contar um segredo, Thomas – Pertuk puxou-me pelo ombro, onde apoiou o braço – Phoerios tinha uma aura preferida, a sua. Por isso ele ambicionava que crescesse mais que as outras, ele queria que seu descendente, você, levasse a honra e sua sabedoria a todos que poderiam estar corrompidos pela audácia de Tertius.

– Isso não deve ser verdade – eu ri – Não me sinto diferente de ninguém, pelo contrário. Me sinto mais patético cada vez que descubro mais sobre mim. Isso porque não acredito numa realidade que me parece tão pouco real.

Retirei a mão gelada do thonze do meu ombro, com um pouco de raiva.

– Você acredita em despejo? – apontei o dedo a altura de seu rosto azulado.

– O que é isso? – ele me perguntou na maior cara de pau.

– VIU? Posso te ensinar coisas que você não sabe sobre a minha realidade há anos. Despejar significa tirar sua casa de você, tirar de você seus pertences. Você não sabe nada sobre o que é real, isso sim!

– Thomas, pare! – Laura me chamou – Ele está querendo apenas ajudar.

– Você parece o garoto Guido – falou Pertuk – Mas sabe qual a diferença entre vocês? Ele tem essa sua realidade tão desprezada aqui em Aquala e não pode se livrar dela, enquanto você pode ter tudo o que quiser aqui.

– Eu tenho ideia do que Guido passou e tenho certeza de que nós temos a mesma consciência de que podemos mudar o que quisermos.

– Ele tinha esperança em ter a família de volta quando vinha aqui no templo pedir aos deuses uma reviravolta em sua vida, mas parou de visitá-los quando se convenceu de que era preciso mais que orações para conseguir o que queria.

– Ele não deixou de acreditar nos deuses, com certeza – eu disse.

– Não estou falando isso. Estou lhe dizendo que ele parou de correr atrás do que queria. Você fez o mesmo?

Olhei para Pertuk com cara de indignação. Era óbvio que eu estava correndo atrás, estava lá por causa da minha tia, o último vínculo da minha família com Aquala.

– Onde fica a entrada para a Sala de Phoerios? – perguntei.

– Não sei, ninguém sabe, apenas aqueles que já passaram por lá.

– Guido é um deles?

– Não sei te dizer. Apenas pode saber disso perguntando a ele.

Naquele instante, uma cabeça curiosa saiu detrás do dedão de Phoerios, do outro lado do lago, entre as pessoas da fila. Era um esverdeado potuco, daqueles que Atélia e Faber escondiam em suas gavetas na casa ao lado da nossa, mais feios que o Luka. Aquela criaturinha veio cambaleando. Suas vestes eram feitas de folhas marrons e envolviam os quadris gordos. Seus olhos eram grandes e pretos por inteiro; e a cabeça, do tamanho do corpo. Pulou na água.

Em seguida, apareceu um garoto que segurava um outro potuco no colo e de mão dada a mais um. Todos vestidos da mesma maneira. Saíram de trás da estátua do deus como se fossem foragidos.

– Guido! Onde estava? – impôs Pertuk num tom forte – Esses garotos querem conhecê-lo.

Não senti algo bom vindo daquele aqualaeste. Ele olhava para todos nós como se fôssemos perigosos, seres imunes de bondade e não tinha nenhuma vontade em se aproximar de nós. Ele falou algo ao potuco que segurava seu dedo com mãozinhas miúdas e a criatura correu para brincar no lago também. Algo como "An jutibt we mako laue".

– Querem o que comigo? – dirigiu a palavra a nós.

Fui o primeiro que deu um passo à frente, minha vontade era grande demais para quebrar o clima, já que nenhum dos outros falou uma palavra.

– Meu nome é Thomas Flintch. Sua avó, Eleonora, me contou sobre você.

– O que a velha quer?

Modo grosseiro aquele que falou da avó. Por um instante, senti uma repulsa maior ainda pelo garoto.

– Ela pediu que voltasse para casa. Não estou aqui por um pedido, mas sim porque os thonzes me salvaram de um ataque.

– Eu sei, eu os chamei.

– Então era você aquele menino que vi nos bosques – surpreendi-me. Nunca imaginaria que um garoto estúpido como aquele fosse, de uma certa forma, nos salvar. Pelo jeito, a minha primeira impressão me enganou.




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