UPRISING

By martafz

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Num futuro não muito distante, uma nova estirpe viral ameaça exterminar a espécie humana da Terra. O estado m... More

Uprising
0. Prólogo
1. América
2. É bom ter-vos de volta
3. HCC K42
4. Virgem outra vez
5. Achas que ela respira?
6. Kim
7. Sobrevivência
8. Quem és tu?
9. Voltar para casa
10. Lasanha vegetariana
11. Porque raio te injetas?
12. Dói-me a barriga
13. Porrada de um velho gordo
14. Gémea?
15. Não me podes proteger disto
16. Despe-te
17. Dói-me só a cabeça
18. Invictus
19. Impotência
20. Eu não quero que chores
21. Não queria que te doesse
22. Eu não sei mentir
23. Vamos embora
24. Não saltes!
25. Com a Kim seria esquisito
26. A melhor pessoa que eu conheço
27. Parece que viste um morto
28. Eu prefiro dormir no carro
29. Deixa-me ficar contigo
30. Eu estou a sangrar!
31. Pedi-lhe tanto para não me tocar
32. Ela estava a gostar!
33. Memórias
34. Faz-me esquecer, por favor
35. Temos que sair daqui!
36. Eu prometi, lembras-te?
37. O que é que eu fui fazer?
38. Aidan Nolan
39. Irmã
40. Canadá
41. Só por uma noite
42. Diz-me se vai doer
43. Quero-te
44. És tão giro
45. Afinal que merda és tu?
46. Vocês vão todos morrer
47. Tu... gostas dela?
48. Nós somos a tua família
49. Conspiração
50. Defectus
51. Não deixes de gostar de mim
52. Eu estou bem
53. Eu cumpro as promessas que faço
54. Não quero ser uma necessidade para ti
55. Plano B
56. Gráim thú
57. Vai correr tudo bem
58. Duvida quando te parecer óbvio
59. Berra, deficiente
60. Por um bem maior
61. Nem sempre os heróis têm um final feliz
62. Homo invictus
A Up ganhou um Watty!
63. Humana
64. Eles já não aguentam mais
65. David Brody
66. Amanhã será mais fácil
67. Onde tu estiveres
Notas finais

68. Casa

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By martafz

Kim deixara as lágrimas secar na pele suja, sem alento para as limpar ou aliviar o ardor que produziam nos seus olhos cansados. A rapariga perdera-se num limbo de tristeza e desesperança enquanto o sol subia no céu e ia deixando a manhã para trás. Sem noção do tempo e do espaço, ela permitira-se agir mecanicamente, soltando palavras desconexas que Jake já não reconhecia e provavelmente não ouvia.

Num acesso de demência, enquanto cantava uma melodia que ouvira na rádio, antes do pesadelo, ela decidiu alterar a sua identidade de uma vez. Distraída, Kim copiou os riscos tatuados no braço de Jake, que representavam o nome dele num alfabeto antigo do seu país, para o seu pulso mutilado. A ânsia de riscar a identidade que ela não via como sua, que apenas servia como controlo e para relembrar o passado, simplesmente fez com que a pele queimada sangrasse sob os riscos violentos da caneta.

A jovem chegara a ponderar tirar sangue para poder transferi-lo para o corpo dele, na breve ilusão de que a cura corresse nas suas veias e ela conseguisse salvá-lo com aquela troca tão simples. Vida por vida.

– Kim...

A voz doce despertou-a da realidade alheia em que entrara há longos minutos, ainda assim a morena não reagiu a Rachel, que entrou no carro e se sentou sobre o espaço quase inexistente naquele banco.

Provavelmente a rapariga notara o sangue que lhe escorria pelo pulso, talvez o tivesse confundido pelo fluido que lhe manchava as mãos há horas, dela, dele, que ainda não se dignara a limpar.

Na verdade Rachel ouvira a conversa entre o casal e só então decidira confrontar o tema sensível. A loira descobrira que, para além de perder a pessoa mais importante da sua vida, estava prestes a ficar sem a melhor pessoa dessa mesma vida que já não fazia sentido.

As lágrimas suspensas no olhar cansado denunciavam-lhe a fraqueza e Kim sentiu a compaixão pesar-lhe no peito, no entanto, ela apenas conseguiu olhar a loira. Ela apenas conseguia usar o sentido mais básico da visão, sem erguer a cabeça do peito dele, sem querer descodificar tudo o que ia no olhar da loira e que a atiraria ao fundo novamente.

Ambas pareciam esgotadas, sem mais forma de expressar emoções, e Kim sabia que Rachel não aguentaria outra perda.

– Lamento, Rachel – murmurou a mais nova, erguendo finalmente o tronco, sem saber o que fazer mais na presença da amiga destroçada.

– Eu também.

Rachel ensaiou um sorriso molhado de lágrimas que não tombavam, sem vergonha de demonstrar o vazio que lhe ia no âmago e Kim decidiu-se por seguir o instinto e o coração. Sem pensar, a morena sentou-se com dificuldade e abraçou a amiga que num dia difícil considerara como irmã, no dia em que o mundo dela desabara pela primeira vez.

Pela primeira vez na sua curta vida, Kim sentia necessidade física de proximidade com alguém sem ser Jake, por causa de Jake, e esperou que o abraço apertado conseguisse ter força suficiente para aquietar o coração de ambas quando não havia mais a fazer.

– O Jake vai-se safar – balbuciou Rachel contra os cabelos sujos da morena, alisando-os e acariciando-lhe os ombros magros.

– Como?

– Ele é forte – afirmou, convicta, procurando o olhar apagado de Kim, tentando imprimir-lhe alguma esperança pelo sorriso fraco que lhe dirigiu. – Ele é tão mais forte do que eu e eu estive doente e salvei-me, lembras-te? Ele vai aguentar.

Rachel parecia tão segura da força de Jake em relação à doença que Kim quase preferiu a mentira e ignorou a verdade que apenas ela e o rapaz sabiam. Já não valia a pena esconder e ela arrependia-se de tê-lo feito por tanto tempo. Talvez se tivesse contado a todos que possuía a cura houvesse um esforço em conjunto para a manter, para assegurar que ninguém pereceria à doença.

– Fui eu – confessou a morena, sentindo os olhos arder sempre pestanejava. As lágrimas não voltaram, mas o ardor não a deixou. – Eu sempre tive a cura comigo e quis dizer-vos a todos, para vos ajudar, porque é isso que se faz pela família, certo?

Kim abanou a cabeça, contestando a realidade que podia ter impedido se tivesse sido mais cautelosa, limpando as lágrimas suspensas nas bochechas, que faziam comichão, o sangue que lhe aquecia o pulso, enquanto pensava no quão destruída aquela família estava.

– O Jake sabia e disse para pensar em mim primeiro. Ele nem gostava de mim, mas mesmo assim disse para pensar em mim primeiro e eu pensei. Agora para me proteger preciso de tê-lo bem e não consigo, porque já não tenho como.

– Kim. – A loira cobriu a boca trémula com as próprias mãos, incrédula.

Rachel deixara de ouvir quando tudo o que ela tomara como certo desde que recuperara se tornara errado. Kim salvara-a da morte e ela não tinha alento emocional para conseguir reagir à nova verdade.

– Eu prometi... – tentou Kim, pensando em como prometera cuidar dele por impulso e não desistir. – mas não sei como fazer isto.

Apesar da vontade, ela não sabia como levar aquela promessa para a frente e Rachel percebeu-o. Sem mais palavras, a loira voltou a puxá-la para um abraço e ambas se mantiveram assim, durante o tempo que pareceu certo, atentas à respiração dele, ao silêncio lá fora, questionando quando seria o momento para ir.

Brian desaparecera há longos minutos, deixando-as entregue ao luto que Rachel exigia e que Kim se preparava para fazer. Enquanto isso, ambas enchiam a mente de perguntas sem resposta, nos braços uma da outra e não importava.

Para perturbar o silêncio da floresta a que já se tinham acostumado ouviram-se passos próximos. Rachel procurou de imediato a presença masculina, de Brian, apenas para certificar-se de que a dor se fora, no entanto, foi o assombro e a surpresa que se estamparam no rosto.

– Sua filha da mãe... – grunhiu Rachel, num murmúrio mal contido contra o ombro da morena, que não percebeu a violência inerente das palavras até notar quem se aproximara. Instintivamente, a rapariga desprendeu-se do abraço reconfortante e apressou-se a procurar a arma presa ao cós das calças elásticas, apontando-a de imediato ao intruso.

– É preciso muita lata, April! – resmungou a loira, erguendo-se de forma vagarosa, a única que a sua perna magoada permitia, e saindo da cabine diminuta do carro. Kim seguiu-a de imediato, de arma em punho e focada apenas na rapariga que fugira e decidira voltar como se não fosse ela a responsável por parte da dor que Rachel sentia.

Para surpresa de ambas, April ergueu as mãos quando notou a arma, apesar de a sua expressão ser vaga e fechada e se mostrar contrariada ao render-se:

– Eu não vos vou assassinar com os dedos nem arrancar vos a carótida com os dentes, está bem? – comentou a recém chegada, na forma sardónica que Kim nunca compreendera. A loira revirou os olhos, satirizando o momento em que se encontrava mais indefesa. O olhar dela vagueou para a perna mutilada de Rachel, onde a grande gaze que a cobria já se tingia de vermelho de novo, e decidiu acrescentar, no mesmo tom:

– Não te vou pedir desculpa por isso. Não quero saber se morrem doentes ou com uma unha encravada mas...

– O que estás aqui a fazer? – interrompeu Kim, surpreendendo as presentes pela voz pesada, longe dos sentimentos que a destruíam por dentro mas que davam força para suster a máscara de frieza. A rapariga ajeitou o projétil e articulou os dedos sobre o gatilho, regozijando pela centelha de apreensão que finalmente se instalara no olhar de April.

– Desde quando é que uma defectus sabe trabalhar com uma pistola se nem sabe pegar num garfo? – diminuiu April, apontando com uma descrença falsa para Kim, baixando os braços em desafio e obrigando a morena a avançar um passo e projetar o laser contra a cabeça platinada.

– Está bem, está bem! Eu vi o que fizeram com a fábrica lá em baixo. Eu ouvi... – April depressa voltou a erguer os braços, rendida, quando o raio de luz se cruzou com o seu campo de visão.

– O que estás aqui a fazer? – Rachel repetiu a pergunta da amiga, cansada de confrontos depois de tudo o que já acontecera na longa manhã.

– Eu tenho uma proposta para vos fazer.

O silêncio que se seguiu apenas serviu para que Rachel atentasse no nervosismo mascarado no semblante, sempre impávido, da loira.

– Eu também – contrapôs Kim, para surpresa de todos. – A tua vida pela cura para o Jake.

Rachel virou-se de imediato para Kim, pasmada com a reação violenta da amiga e tão desprovida de emoção, enquanto April reafirmava o vigor nos braços erguidos, confusa.

– Eu não sou Deus, coisa – justificou, April, atenta à arma que lhe era dirigida. – Hey! Afasta isso. Eu não tenho cura nenhuma, está bem? Por favor, vocês reviraram a casa antes de virem para este fim do mundo. Depois do nerd bonzão nunca precisámos de curar ninguém.

Sem alento para continuar uma farsa que não iria aliviar o vazio no coração, Kim baixou a arma, derrotada, sentindo a esperança de salvá-lo abandoná-la.

– O Jake vai acabar por morrer, mas eu consigo tirar-vos daqui – acrescentou April e a desconfiança de Rachel cresceu com a afirmação.

– E o que ganhas com isso?

– Eu não sou burra e o que vocês fizeram lá em baixo mudou tudo. Talvez eles tenham de recrutar invictus quando decidirem recomeçar o processo noutro sítio e eu não quero ser rato de laboratório.

Rachel relembrou o medo quase irracional que April sentia quando a hipótese de voltar àquele sítio era colocada. Apesar de ela ter desperdiçado a oportunidade de ser boa, a sua ânsia de viver não a tinha deixado nas últimas horas. Apenas o orgulho, finalmente.

– Por isso eu arranjo forma de saírem daqui, para a Europa, mas eu também vou.

Rachel riria se a dor lhe permitisse.

– Porque precisas de nós para isso?

A frustração tornou-se evidente na postura de April, que se manteve em silêncio depois da proposta lunática que fizera. Rachel e Kim esperaram, atentas ao mínimo movimento suspeito, desconfiadas, e a loira apenas as fitou, cruzando os braços.

Talvez ela travasse um debate interior pelo suspiro malogrado que soltou quando decidiu reagir à questão. Devagar, a rapariga retirou um dos brincos que lhe emolduravam o rosto e mostrou-o às jovens curiosas.

– A Kim tem um igual na etiqueta do top, com um microfone – revelou, aproximando-se cautelosamente para que elas pudessem ver a bijuteria secreta. Kim tateou o próprio tronco, cujos hematomas já lhe decoravam a pele sob o top preto e a sua expressão modificou-se quando encontrou o pequeno brinco preso à etiqueta da roupa.

– A sério? Vocês roubaram-me tudo, incluindo roupas e achavam que eu não me ia meter? – provocou April, soltando uma pequena gargalhada que soava ofensiva naquela manhã. – Eu ouvi o que aconteceu lá dentro – admitiu, distraída em chutar algum do cascalho sob os seus pés.

Kim notou o desconforto, apesar de não o saber interpretar, e pensou em como ela ouvira David morrer e o quão íntimo e desrespeitoso soava. No mesmo instante, sem se aperceber, a sua mão livre procurou a de Rachel apenas para se assegurar de que ela aguentara realmente.

– Ela matou-o – comentou April, alheia à emoção que devastava o grupo, demonstrando alguma, à sua maneira. A rapariga quase que fitou a morena com mágoa, e Kim temeu por represálias, por momentos. No entanto, da mesma forma com que a sombra de emoção atormentou o olhar azul depressa desapareceu e a loira tornou a rir. – Esta idiota matou a abelha rainha sem pestanejar e fez o erro mais idiota da sua vida a seguir.

– Ele ia matar o Jake – defendeu-se Kim, de imediato.

– Tens noção do que fizeste, defectus?

– Kim

– É-me igual – menosprezou April, com um encolher de ombros que desrespeitava. – A questão aqui é que assim que mataste o líder te transformaste num, estúpida.

Rachel franziu o cenho, as rugas expressivas pela confusão que as afirmações trouxeram, e Kim também não percebeu de imediato. Ela não era líder de nada, nem mesmo da própria vida até há muito pouco tempo.

– A Kim alterou os dados de toda a corporação – explicou April, suspirando, exasperada. – Ela é a administradora da EUGENE. Ela não sabe a diferença entre um balão e um preservativo, mas acabou a ter a capacidade de controlar a HCC inteira. Isto é, terias, se não a tivessem destruído.

Rachel fitou Kim como se a visse pela primeira vez, ainda sem compreender tudo o que era dito.

– Eu não fiz nada disso – descartou Kim, num tom baixo que mostrava incerteza.

– Fizeste, fofinha. E é por isso que eu não posso sair daqui sozinha – insistiu April. A loira alisou os cabelos ainda sujos, tentando trazer alguma da dignidade de volta quando negociava com a espécie inferior que fora ensinada a odiar. – Há um jato privado lá em baixo, nos silos. O Dr. Gagnon para além das grandes ideias comia dólares ao pequeno-almoço, mas tinha um certo fascínio pelo controlo – informou, sucinta. – Parabéns, coisa. O controlo agora é apenas teu.

Kim continuou sem compreender, apenas sabendo que não queria ser responsável por nada que a relacionasse ao sítio que mais abominava e que a forçara a viver nas sombras durante muito tempo. Tudo tinha sido destruído e não importava quem liderava um plano tão vil contra a humanidade. Ela só queria viver e que eles vivessem à sua volta.

Ela também queria muito voltar para casa, apesar de nunca ter tido uma. A sua família contava-se pelos dedos e ali estava ela, destruída, mas ali. Era tudo o que tinha e eles mereciam voltar, depois de tudo.

– Eu não sei pilotar... – disse apenas, cansada, concordando.

– Não precisas – contrariou April, olhando para o carro automático atrás delas.

O seu primeiro pensamento foi para a tecnologia avançada que lhes permitiria atravessar o oceano sem conhecimentos de aeronáutica. O segundo pensamento passou pela forma como o avião poderia reagir ao seu comando, se April tivesse razão, quando ela riscara a tatuagem antiga apenas há minutos, mutilando pele, marcando definitivamente.

Ela ainda se debruçou sobre a hipótese de usar a forma da sua mão, como acontecera sobre a mesa vítrea, que mudara tudo, mas April interrompeu-lhe o raciocínio.

– Nunca vamos usar colares de melhores amigas para sempre, mas neste momento eu sou a vossa única opção para sair deste buraco. E vocês a minha.

Rachel preparava-se para dizer algo quando o som inconfundível de um revólver a ser carregado a parou, forçando o silêncio por mais algum tempo.

– Não és opção de ninguém, April. Lamento – murmurou Brian, sem vergonha de demonstrar todo o asco que sentia pela mulher à sua frente, que a salvara de uma vida que ele não quisera viver.

– Ela tem como voltarmos... – notou Rachel, tentando aliviar a tensão entre o grupo. O peso no ar tornou-se maior quando a rapariga o fitou, tentando descodificar a sua reação às palavras impensadas, que o incluíam numa viagem para a Irlanda, para casa, que não era a dele. Brian não tinha casa há muito tempo e Rachel não queria ofendê-lo com palavras vãs. Apesar de tudo, o canadiano também a olhou pelo tempo suficiente até admitir:

– Eu também.

Com as palavras veio o murmúrio das folhas e galhos que se afastavam à passagem de novas presenças e Kim reagiu prontamente, erguendo a arma na direção do som. Na clareira iluminada pelo sol que já ia alto surgiu uma rapariga e o alerta aumentou.

A jovem, vestida de branco como todas as que vira nas câmaras de vigilância e que recordava de algumas memórias que não sabia ter, caminhou na direção de Kim, sem receio da arma que lhe era dirigida. Longos caracóis negros emolduravam-lhe o rosto exótico, os olhos verdes contrastavam com a pele morena, e por momentos Kim sentiu-se ameaçada pela diferença, assim como pela coragem que ela demonstrava.

Antes que Kim pudesse questionar a presença da desconhecida outras jovens a seguiram. Atrás dela, ocupando a clareira, apareceram outras tantas jovens diferentes, umas iguais entre pequenos grupos que as juntavam. Algumas delas envergavam a mesma indumentária branca, outras permaneciam de pé, despidas de quaisquer roupas e sem a vergonha a ruborizar os seus rostos.

Kim não soube como reagir, sentindo o coração furioso voltar a fazer-se ouvir e quase destruir-lhe os tímpanos. Na sua curta vida, Kim nunca tivera tanta gente a dirigir-se a si e Jake não estava por perto. Ela não hesitaria em proteger-se, como prometera a si mesma, a ele, mas naquele momento não sabia qual era a ameaça.

– Nós só queremos ajudar – sussurrou a morena de caracóis, avançando um passo e fazendo Kim recuar outro, envergando a arma na sua direção com um novo vigor que contrastava com a incerteza.

– O que é isto, Brian? – questionou Rachel.

– Não se aproximem – vociferou Kim, tentando ignorar as dezenas de jovens como ela que a olhavam e se aproximavam lentamente.

Para sua surpresa, algumas delas recuaram de imediato pelo grito feminino que ecoou pela floresta, sobressaltadas. Kim também recuou, vendo o medo refletido nos rostos diferentes, nos rostos iguais, revendo-se na diversidade de genes que lhes dera origem mas que se exprimiam da mesma forma.

– Elas...

– Fui ver como estava tudo na superfície da fábrica, por precaução, e encontrei-as perto da incineradora, cá fora – informou Brian, quando o assombro deu lugar ao deslumbramento e logo depois à compaixão pelas desconhecidas.

– Obrigada. – A morena exótica falou de novo, sem medo, sem julgar. – Eu vi-te nos ecrãs, K-42. Algumas de nós estávamos na Iniciação há demasiado tempo e soubemos que era altura de sair. Algumas delas conseguiram fugir quando paraste os processos na Incubadora. Obrigada por nos teres salvado.

A rapariga ensaiou um sorriso franco, voltando a aproximar-se, e Kim levou as mãos ao rosto para cobrir as emoções que nele transpareciam. Ela desligara todos os processos que decorriam na Incubadora por compaixão e respeito pelas vidas miseráveis que todas aquelas jovens, meninas, teriam e ali estavam elas, a salvo. Todas elas conseguiram fugir, tal como ela sempre quisera fazer mesmo vivendo aparentemente livre num mundo que não fora feito para si. Naquele momento, os conceitos alienados de defectus e invictus não importavam e misturavam-se, tornando tudo certo.

As questões que a inundavam eram imensas, porém outra voz feminina, proveniente de uma outra jovem vestida de branco, cabelos cor-de-mel e sorriso fácil, fez-se ouvir:

– Durante a Iniciação ouve-se muita coisa. Nós sabemos o tempo que temos para viver e é tão pouco que nunca fez sentido sermos obrigadas a viver naquele sítio durante tanto tempo.

– Vocês vão mesmo contar-lhes tudo? – intrometeu-se April, desconfortável pela mistura que ela não compreendia, pela igualdade que ela não aprendera.

– O que há para esconder? As lavagens cerebrais que lá são feitas já não funcionam – admitiu a ruiva de voz aprazível. – Havia uma revolução a ser preparada e não importava se havia humanos sedentos de sangue cá fora e se morreríamos assim que contactássemos com a atmosfera exterior.

– As mentiras eram tantas que muitas de nós deixamos de ter medo – acrescentou a morena. – Continua a existir medo aqui, K-42. – A rapariga apontou para o grupo atrás de si, que apenas se tinha a si mesmo naquela realidade nova para a qual não foram desenhadas. – Mas também há muita vontade de viver e nisso somos todas iguais.

A jovem voltou a oferecer-lhe um sorriso quente, que a fazia querer acreditar, que lhe enchia o coração de algo bom que não rasgava e enegrecia como a morte e o medo tinham feito. Antes que pudesse refletir sobre tudo o que as separava e as unia, April resolveu impor-se novamente.

– Como é que vocês podem sentir medo? – questionou, num tom que revelava estupefação.

– Tu não sentes? – retorquiu a morena, sem compreender o cerne da questão maldosa, inocente. – Durante meses fui ensinada a odiar quem não era perfeito, a ter como missão de vida purificar o sítio onde iria viver, todas nós. Isto não é assustador? – Ela passou o olhar por Brian e por Rachel, tão iguais a elas e inofensivos. – Nós podemos ter um sistema imunitário diferente, ser a espécie superior, mas quem idealizou isto tudo esqueceu-se que o humano não vive apenas de interações bioquímicas.

– Eles impingiram-nos personalidades – declarou a ruiva. – Nós não temos memórias da nossa incubação, mas sabemos o que lá é feito. Esqueceram-se que o livre arbítrio não é exclusivo de humanos inferiores.

– Temos muito a aprender convosco, K-42. Kim.

A rapariga ousou erguer o braço e procurar o de Kim, para lhe expor a tatuagem mutilada e cobri-la com a mão livre, como se não existisse. Kim permitiu o toque, atónita com a bondade que a rodeava e que a queria fazer acreditar. A jovem, tão como ela, via-a como humana e como uma igual, e Kim sentiu a nova emoção arder-lhe nos olhos, sem compreender porquê.

– Que nunca mais ninguém tenha de morrer para que nós possamos viver – disse a desconhecida, apertando-lhe a mão antes de a soltar, apenas para retirar do bolso algo que fez o coração de Kim explodir em doses desmedidas de adrenalina e esperança.

– Elas podem ajudar, Kim – sussurrou Brian, surgindo sobre o ombro dela, com um sorriso que respondia às suas perguntas e àquilo que os seus olhos viam sem enganar.

A rapariga assentiu, focada no frasco dolorosamente familiar que lhe era oferecido até as lágrimas lhe tirarem a visão.

Elas e Brian discutiam formas de distribuir aquela vacina para manter a humanidade que restava, mas Kim já não ouvia e tudo se tornara Jake de novo. Pegando no frasco com as mãos trémulas, sorrindo como pensara não conseguir de novo, a rapariga deu por si a citar para que todos ouvissem:

– Que nunca mais ninguém tenha de morrer para todos possamos viver.

Emocionada e feliz por ter finalmente a sua oportunidade, Kim abraçou a morena sem pensar, forçando-a a um contacto físico que não conhecia, um contacto estranho que fez algumas delas, nuas, vestidas, sussurrar e recuar, confusas.

Kim ignorou a multidão que a seguia e media as suas ações com olhos de lince e correu para o carro onde o que importava permanecia em luta contra o tempo. À velocidade que as suas mãos trémulas permitiram, a rapariga vasculhou o estojo de primeiros socorros e depressa pegou numa seringa. No rebuliço criado, provavelmente também pelo ribombar do seu coração contra o peito, que ameaçava rolar para o chão a qualquer momento, Jake deixou a inconsciência e Kim agradeceu que ele estivesse presente para que ambos pudessem recordar mais tarde.

– Kim. – A voz fraca incentivou-a a continuar, mesmo que ele apenas quisesse perceber a confusão apressada à sua volta enquanto a febre o consumia e tornava tudo difuso.

Kim sabia que tinha pouco tempo, no entanto, de sorriso no rosto que teimava em não pender, ela sabia que ia dar tudo certo, finalmente. Jake, perdido num limbo que o fazia vaguear entre a consciência e a falta dela, não sentiu a agulha cravar-se na pele escaldante, porém sentiu o abraço dela depois disso e foi o bastante.

– Vamos para casa, Jake – Kim procurou o seu local favorito do mundo, na curva perfeita do pescoço dele e deixou as palavras fluírem, livres, enquanto os lábios as seguiram e se dedicaram a um beijo terno, que contrastava com o desvario que lhe ia no coração e que teimava em não serenar.

Kim riu contra os lábios dele, percebendo que finalmente o conseguia fazer depois de tudo o que ficara para trás, que ainda doía, mas que o tempo iria tratar sozinho e tornar tudo mais fácil.

Depois deslizou para o abraço fácil, aninhando-se na melhor pessoa que conhecia e sorrindo por perceber que a brincadeira de se salvarem mutuamente ainda não terminara. Quase no mesmo instante, a morena sentiu o abraço bem-vindo de Rachel, que lhe dera uma oportunidade sem pestanejar e que amava sem restrições.

Kim sentiu-se aquecer nos braços da família que a acolhera, sentiu o olhar de Brian lá fora, que os observava com um sorriso que lhe permitia manter a distância certa das emoções que aquele grupo lhe despertava. De coração cheio, ela não resistiu em sorrir-lhe de volta, mostrando que não era errado sentir, e Brian devolveu-lhe a expressão.

A rapariga fechou os olhos e suspirou fundo, por fim. O primeiro dia da vida de Kim começaria naquela manhã fatídica que levara mas que também trouxera. Ela finalmente vivia e depois do seu primeiro fôlego, que se perdeu no corpo de Jake, ela desejou que lhe fosse permitido fazê-lo com intensidade, pelo tempo que tivesse. Que as pessoas maravilhosas que a acompanhavam na jornada conseguissem o mesmo e tudo daria certo.

– Vamos para casa.

FIM

***

NOTA DE AUTORA

Não consigo dizer grande coisa hoje. Posso só dizer que sou uma grande teimosa, que escreve por desafio e que meteu na cabeça que iria terminar isto nem que custasse - e oh, se custou! - e aqui está o resultado. Muitos anos depois, muita pesquisa e muitos planos para uma história que nunca me levará a lado nenhum, a Uprising tem finalmente o ponto final que eu tanto lhe queria dar. 

Este era o meu desafio e agora só tenho a dizer: desafio cumprido! 

Obrigada a todos os que o foram acompanhando no último ano e meio e o tornaram mais e melhor :)

PS: Leiam a nota final no capítulo a seguir. É provável que vos responda a algumas coisas.  

PPS: Acham mesmo que ia matar o Jake desta forma? Eu nunca arrasto uma morte por tanto tempo. Eu gosto de surpreender quando se trata de trazer emoções negativas para uma história e matar o Jake depois de tantos capítulos óbvios não iria trazer emoção nenhuma nova. E nunca seria o final certo para ele. O final certo era levá-los para casa depois da jornada mais difícil da vida de cada um deles. E aqui está :) 

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