"Eu poderia facilmente perdoar seu orgulho, se ele não tivesse mortificado o meu."
– Orgulho e Preconceito,
Jane Austen.
Emily sentia-se traída por seu próprio coração e tentava agora se obrigar a aceitar a dura realidade da noite anterior. Fred não havia dito expressamente, mas uma única sentença fora mais do que suficiente para convencê-la de que gostar dele era uma causa perdida.
A pior parte? Não era assim tão inesperado.
Atlas já havia alertado sobre isso, mas a garota escolheu deliberadamente ignorar os riscos. Apesar de seu sobrenome desagradável, aprendera o suficiente sobre si e havia se agarrado à esperança de que os demais pudessem ver o mesmo. E se Fred era incapaz de ignorar as marcas de um passado do qual ela não se orgulhava, então talvez também devesse abandonar seus esforços.
– Estamos procurando por Atlas. – George comentou durante o café da manhã, já que o silêncio dos outros dois se tornou desconfortável demais para suportar. – Vamos resolver tudo em breve.
– Não acho que seja necessário. – a garota anunciou, sem desfocar da xícara em mãos. – Só queríamos encontrá-lo para trazer as memórias do seu irmão de volta, mas ele parece ótimo sem nenhuma delas. Não precisamos mais de Atlas.
– Como? – George olhou de um para outro perplexo.
– Não cabe à você decidir isso. São minhas memórias. – Fred rebateu.
– Suas memórias sobre mim. – Emily corrigiu com ignorância. – E se me tolerar por alguns dias é um tormento insuportável para sua pobre mente debilitada, imagine então ter que conviver com as lembranças que acumulou por tanto tempo.
– Está exagerando. – ele disse.
– Vai conseguir sobreviver sem essa parte da sua vida, Weasley.
– O que está acontecendo? O que deu em vocês? – George interrompeu a discussão.
– Pergunte ao seu irmão, eu preciso sair um pouco. – ela abandonou a xícara sobre o pires e levantou-se.
– Sabe que não deveria sair sem um de nós. – Fred fez o mesmo.
– Então é muito simples. Pode vir comigo. – ela esperou por uma resposta, mas Fred desviou o rosto e tornou a sentar. – Humpf. Foi o que pensei.
Ela saiu pela porta da cozinha. Ouviu as vozes de Fred e George discutindo do lado de dentro e seguiu até os limites da propriedade. Já tinha feito passeios bem mais arriscados do que umas poucas voltas pelos campos da propriedade, não havia o que temer. Além disso, qualquer possível ameaça seria até cômica, diante da quantidade de raiva acumulada em seu peito esperando para ser descontada.
Um pouco mais afastado do chalé, o caminho escondia uma bifurcação. A pequena trilha, encoberta por arbustos, crescia junto com as árvores ao seu redor. Tentadora demais para ser ignorada, Emily seguiu cautelosamente por esta. O barulho de água corrente chamou a atenção da garota: havia um pequeno riacho logo adiante.
A jovem retirou os sapatos, dobrou a barra das roupas até a altura do joelho e sentou-se sobre uma das formações rochosas revestidas de lodo que guiavam o curso da riacho. Colocou os pés dentro da água e as mãos atrás do corpo, erguendo a cabeça para apreciar os raios de sol que penetravam entre as folhas das copas das árvores.
Emily estava bem mais leve. O contato com a natureza seria o suficiente para fazê-la administrar os nervos fora de controle e a ressaca moral consumindo-a.
Entretanto, o repentino estalo de um galho se quebrando indicava a possível presença de alguém, o que obrigou-a a encerrar seu momento de descanso.
– Saia. – ela ordenou de pé, apontando a varinha na direção das árvores.
– Tudo bem, sou só eu. – Fred revelou-se. Tinha as mãos erguidas no ar, acima da cabeça. – Não vai abaixar isso?
– Depois que você provar sua identidade. – Emily disse.
– Uau... Então essa é a sensação de ser confundido com um Comensal? Agora entendo porque ficou tão brava. – Fred brincou e ela revirou os olhos. – Pergunte o que quiser.
– Qual o meu patrono? – sabia que qualquer um que não estivesse presente no dia em que descobriu a alteração, lhe daria a resposta incorreta.
– Uma Pega. – Fred lentamente baixou as mãos. – Assim como o meu e do meu irmão.
– O que você quer agora, Weasley? – ela guardou a varinha e deu-lhe as costas, voltando ao que estava fazendo.
– Disse que eu poderia vir. – ele tirou os sapatos.
– Somente porque achei que não viria de verdade. – Emily balançou os pés submersos, formando suaves ondas.
– George meio que... Me convenceu. – alegou saltando para a rocha mais próxima. Ele agachou-se e apanhou uma, dentre as pedrinhas ali, analisando-a entre os dedos antes de atirar contra a superfície do riacho.
– É claro. – Emily debochou. – Seu irmão tem mesmo esse hábito irritante.
Os dois se calaram. Embora estivessem fisicamente próximos, existia uma distância invisível absurda, como uma barreira que ambos não conseguiam atravessar. Fred tornou a disparar pedrinhas, assistindo-as saltar e afundar.
– Sinto muito. – ele disse depois de algum tempo. Havia dobrado a barra da calça e agora também tinha os pés dentro da água fria. – Não tive a intenção de te magoar ontem.
– Vou perguntar outra vez – ela virou-se para ele com uma expressão indecifrável no rosto. – O que você quer, Weasley?
– Não acredita que estou sendo sincero? – Fred perguntou.
– Você não confia em mim – ela começou, saindo de dentro d'água. – Não vejo nada de errado em retribuir sua desconfiança.
– Estou sendo honesto. – ele declarou com firmeza. – Me desculpe.
Emily apertou os lábios em um sorriso reto e ergueu a cabeça como se estivesse ponderando as palavras ditas por ele. Depois, enrugou o nariz com certa aversão.
– Não.
– Não? Como assim? – Fred arqueou as sobrancelhas confuso.
– Pensei que George é que tivesse problemas de audição. – ela se levantou depressa e bateu as mãos no bolso traseiro, limpando a calça. – Não aceito suas desculpas.
– Eu... Mas... – Emily apanhou os sapatos e ele repetiu o gesto, tentando capturar sua atenção. – Por quê?
– Eu já disse. Estou tentando odiar você.
– Ah, claro! – deu um meio giro e ergueu as mãos para os céus, descendo-as por trás da cabeça. Voltou a olhar para Emily e, unindo-as na frente do rosto, esvaziou o ar dos pulmões. Fred baixou o punho até a altura da cintura e gesticulou nervosamente, se curvando de modo automático e sutil. – POR QUÊ?!
– Por que não? Você não me suporta, estamos constantemente discutindo e não confiamos um no outro. – listou com um ar despreocupado enquanto analisava a rocha para evitar as partes mais escorregadias.
– E essa é a sua solução? O que aconteceu com “a sua felicidade é o Fred” e tudo mais? – ele confessou sem perceber.
Emily involuntariamente deixou sua mandíbula despencar alguns centímetros em puro choque e suas sombrancelhas se contraíram acusadoramente. Ela jogou os sapatos contra a margem e se aproximou da ponta da rocha, a fim de alcançar o ruivo na outra.
– VOCÊ OUVIU? – ela gritou furiosamente.
– Estava só de passagem. Foi um acidente. – Fred mostrou-lhe as palmas das mãos, como um domador tentando acalmar uma fera selvagem que está prestes a atacá-lo.
– Eu vou te matar, Weasley! – ela ameaçou com um sorriso mortal e fez menção de puxar a varinha, ao que Fred buscou impedir, roubando-a. Porém, a ação resultou no desequilíbrio de ambos e, pisando numa das partes lodosas, os dois acabaram dentro da água.
Como a profundidade só era o suficiente para cobrir até pouco abaixo do pescoço, ambos emergiram depressa. Emily chegou primeiro à margem e ainda sentada, começou a torcer as vestes para se livrar do excesso de água.
– Me dê a minha varinha, Weasley. – a garota exigiu assim que ele se juntou à ela.
– E te dar a chance de me azarar? Nunca. – Fred afirmou.
– Ótimo. Pode ficar! – ela retrucou, compenetrada numa busca silenciosa pelos sapatos. Na emoção do momento, não havia controlado sua força e agora os coturnos certamente estavam perdidos entre os milhares de arbustos.
– O que está fazendo? – Fred seguiu o olhar dela. – Você não está procurando por algo com que possa me acertar, está?
A jovem apenas virou o rosto na direção dele de forma ameaçadora.
– Chega. Eu vou para casa.
Contudo ao tentar se levantar, um choque percorreu seu corpo e Emily xingou por conta da dor sentida, caindo outra vez no chão. Fred se aproximou.
– O que houve? – ele perguntou.
– Nada. – ela mentiu, forçando o peso apenas a perna esquerda.
– Tem certeza? – ele insistiu desconfiado. Fred continuou parado diante dela, impedindo-a de dar um passo sequer.
– Absoluta. Agora me deixa passar. – reclamou, apoiando a ponta do outro pé contra o chão e reprimindo os lamentos. – Onde estão meus sapatos?
– Accio sapatos. – ele apontou a varinha para um dos arbustos e o par voou até suas mãos. – Aqui.
Fred encarou-os, tendo a estranha sensação de um déjà vu, mas foi obrigado a ignorar os próprios pensamentos quando ela tomou-os, mancando até uma formação rochosa mais alta.
– Deve ter acertado alguma coisa quando caímos. – o ruivo concluiu, vendo como ela lutava para calçar o pé direito sem choramingar com as fisgadas de dor.
– Sério? Eu nem imaginava. – ela respondeu sem dar-lhe atenção.
– Não vai conseguir andar assim até o Chalé.
– É claro que vou. – ela caminhou um pouco para provar seu ponto, mas logo fraquejou. Fred rapidamente segurou-a pelo pulso e impediu que a jovem tornasse a cair. Seu olhar se encontrou com dela por segundos e ele contemplou-a, sem dizer coisa alguma.
– Conheço um feitiço. – ele sugeriu quando o contato visual entre eles pareceu deixá-la nervosa.
– Quando o último desmemoriado disse algo parecido, vocês da Grifinória quase perderam um apanhador. – ela se referia o trágico episódio em que Lockhart fez os ossos do braço de Harry desaparecem. Fred sorriu.
– Não sou tão bom com feitiços de cura quanto George, mas posso ajudar. – ele declarou, calçando os próprios sapatos. – Deixe-me imobilizar isso.
– O inferno que vou deixar. – ela gargalhou tentando se equilibrar de pé, apoiada somente na perna boa. – Eu faço. Apenas me dê a varinha.
– Não até que você esteja mais tranquila. – Fred bagunçou o cabelo molhado com uma das mãos.
– Como espera que eu me acalme se continua me irritando?
– Então acho que nunca mais vai ter sua varinha de volta. – deu um peteleco na testa dela. Emily queria esganar o ruivo ali mesmo, mas desistiu depois de perceber que teria que dar muitas explicações sobre o desaparecimento dele. Ele deu a volta por ela e apontou para a rocha. – Sente-se.
– Não.
– Emily... – ele pendeu a cabeça para o lado. A garota permaneceu parada, desafiando-o. Fred bufou, caminhou até ela e, passando os braços por suas costas e pernas, ergueu-a do chão.
– O que pensa que está fazendo?! – ela reclamou.
– Tentando carregar você até ali? – ele disse com tom de obviedade. Ela revirou os olhos e murmurou um xingamento entredentes. – Que maneira cruel de agradecer ao seu salvador.
– Eu nem sequer precisaria de um “salvador” se não fosse por você, gênio. – ela revirou os olhos. Ele acomodou-a sobre a rocha e começou a dobrar a barra da calça dela para ter uma visão do tornozelo torcido.
– É verdade. – ele balançou a cabeça assentindo. – Mas foi você quem ficou chateada por nada e surtou.
– Nada? Ok, já chega. – ela tentou encontrar um jeito de virar para o outro lado, mas Fred puxou-a de volta.
– É, quero dizer... Qual o problema? Eu entendo, sou irresistível e você não pôde evitar o meu charme. – ele colocou mais pressão sobre a perna dela, para evitar que tentasse escapar novamente.
– Ah, meu Deus. – Emily pendeu a cabeça para trás, implorando aos céus por um pouco mais de misericórdia. – Você é tão convencido! Arrogante! Pretensioso!
– E você é uma mentirosa. – ele cantarolou, examinando-a. – Sei que você tem uma quedinha por mim, não precisa ter vergonha disso.
– Eu não... Ouch! – ela estapeou o ombro dele quando o garoto apertou levemente o local machucado.
– Férula! – Fred encostou a varinha sobre o tornozelo. Ataduras se enrolaram à perna dela. – Me desculpe por isso. Vai passar.
– Já passou. – ela sussurrou com franqueza. Fred ergueu o rosto para encontrar o dela, considerando as palavras que acabara de ouvir.
– Ainda estamos falando apenas do seu tornozelo? – perguntou incerto.
– Não é mais uma Pega. – afirmou a garota, desviando seu olhar para as raízes das árvores próximas. – Eu verifiquei.
– Ah, entendo. – concluiu ele depois de alguns segundos. – É bom. Está livre de mim. – Fred disparou com um sorriso falso e levantou-se.
– Sim. – ela concordou tristemente. – É o que parece.
Os dois fizeram o percurso de volta em absoluto silêncio. Ao chegarem, George cuidou da torção no tornozelo dela e Fred subiu para tomar um banho quente e se livrar das roupas molhadas.
– Pronto. Um pouco de repouso vai ser o suficiente. – George avaliou. Estavam na cozinha, finalizando os cuidados. – Quer que eu prepare uma Pepperup? Você e Fred podem acabar ficando resfriados.
– Não, obrigada. Odeio a sensação do vapor saindo pelas orelhas. – Emily agradeceu, tateando o tornozelo. Estava praticamente curado.
– Eu sei. Dá vontade de arrancá-las fora. – ele acrescentou.
– Nunca vai se cansar das piadas com isso, não é? – ela questionou, rindo.
– Nunca. É o que posso fazer para aceitar a situação. – ele deu de ombros. – Se eu der ouvidos somente às críticas...
– Oh, Merlin. – ela sorriu ainda mais.
– Posso perguntar o que aconteceu entre vocês? – George arriscou, puxando a cadeira à frente dela. – Por que não quer que encontremos Atlas?
Emily suspirou, recostada na cadeira. Já era uma questão complicada e agora estava ainda mais.
– Por que talvez não seja o bastante. – ela assumiu. – Encontrá-lo não é uma garantia de que Fred vai recuperar as memórias. Não sei se posso continuar a alimentar minhas esperanças sozinha.
– Você não gosta dele? – George questionou.
– Tenho meu orgulho, sabe? – ela explicou. – E no momento está ferido.
– Eu compreendo. Mais do que imagina. – ele revelou, um pouco cabisbaixo.
– Angie? – Emily arriscou um palpite. O garoto assentiu.
– Realmente gosto dela. Mas não posso ignorar o fato de que ainda não é o momento para estarmos juntos. – George confessou com certo desânimo. – Sou orgulhoso demais para assumir a verdade. Não quero colocar essa pressão desnecessária sobre ela.
– Eu entendo. Mais do que imagina. – ela repetiu. – Bem-vindo ao clube, George. Contando com você, agora temos dois integrantes.
– Deveria adicionar Lee à lista também. – ele sorriu.
– Lee? Por quê? – a garota questionou surpresa.
– Você não notou? – ele lançou um olhar sugestivo.
– Pelas Barbas de Merlin! – Emily cobriu o rosto e baixou o tom de voz. – Anabel?
Na contagem oficial: cinco integrantes para o clube dos corações partidos.