Um castelo de presente

By CeciAmaral

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Mariella não esperava herdar um castelo medieval italiano da noite para o dia. Ela estava ocupada demais tent... More

apresentação
personagens
um
dois
três
quatro
cinco
seis
sete
oito
nove
onze
doze
treze
quatorze
quinze
dezesseis
dezessete (final)

dez

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By CeciAmaral

Vitória conheceu Nico na manhã do dia seguinte, enquanto ele deixava o castelo e ela tentava entrar de fininho com a boca toda borrada de batom e o cabelo embaraçado. Eles trombaram na porta e Vitória quase caiu no chão escorregadio antes de Nico a segurar pelo braço e a estabilizar.

- Meu Deus! Desculpa. - Ela afastou os cachos do rosto e olhou de Nico para Mari com as sobrancelhas franzidas. - Quem é esse?

- Vitória, esse é o Nico - Mari disse com um sorriso congelado, rezando para que a amiga não dissesse nada que a fizesse querer cortar os pulsos. - Ele dormiu aqui ontem à noite. Por causa da chuva.

- Por causa da chuva? - ela perguntou, um sorriso lento e maligno se espalhando pelo rosto. - Que coisa...

- Fico feliz que a gente tenha se conhecido. A Mari fala muito bem de você - Nico cumprimentou, a única pessoa civilizada em um raio de quilômetros. Ele estendeu a mão. - É um prazer.

- O prazer é todo meu. A Mari também fala muito de você para mim.

- Ah, fala?

- O tempo todo! É Nico para cá, Nico para lá! - Vitória soltou uma risada enquanto Mari fazia sinal de que a mataria se não fechasse o bico. - Eu estava ansiosa para ver se você era tão bonito e inteligente quanto ela diz.

- Você disse tudo isso, Mari? - ele perguntou, se virando para ela com um sorriso radiante de quem sabia que a estava deixando bastante desconfortável. E que adorava isso. - Que gentil da sua parte.

- Ah, a Mari é muito gentil. Se soubesse o modo como ela...

- Vitória, por que você não entra e vai se aquecer? - Mari interferiu, agarrando o braço da amiga e praticamente a jogando dentro do castelo. - Você pode dar uma passadinha no banheiro também e limpar todo esse batom do seu rosto e no pescoço. Ou isso aí perto da sua clavícula é um chupão?

Vitória levou as mãos à base do pescoço de uma vez, tocando o local com cuidado. Ela mostrou o dedo do meio para Mari e se despediu de Nico, marchando para dentro de uma vez.

- Eu vou te acompanhar até perto da sua casa - Mari disse, por mais que agora quisesse se esconder também. - O terreno está muito lamacento.

Ela andou ao lado de Nico e Bidu, o rosto quente de vergonha e a mente ocupada com os acontecimentos da noite anterior.

Tudo aquilo tinha mesmo acontecido? Ela havia dormido com Nico a apenas alguns cômodos de distância após quase ser beijada por ele?

- Eu fico feliz que você me tenha em tão alta estima, sabe? - ele provocou depois de alguns momentos de silêncio, porque era óbvio que não deixaria aquilo passar.

- Ah, Deus, você vai me encher o saco para sempre por causa disso...

- Por favor, não mata a pobre da Vitória.

- Matar é pouco. Eu vou torturá-la antes.

Nico riu.

Quando pararam em frente aos degraus da casa dele, Mari hesitou em se despedir.

- Obrigado por ter me recebido ontem à noite, Mari. Estava tudo ótimo e eu dormi como uma pedra naquela cama gigante que você me arrumou.

- Fico feliz. Eu escolhi o quarto com cuidado. O Sr. Cipolla, meu advogado, disse que a suíte que eu reservei para você já recebeu muitas pessoas importantes antigamente.

- Aposto que nenhuma tão bonita e inteligente quanto eu. Na sua opinião, é claro.

Mari jogou a cabeça para trás e encarou o céu.

- Me lembra de nunca mais colocar você e a Vitória no mesmo cômodo.

- Mas eu gostei tanto dela!

Ela riu e já ia se despedir quando Nico falou:

- E sobre ontem à noite, na sala de estar...

O estômago de Mari despencou. Ali, à luz do dia, ela não se sentia mais tão corajosa.

- A gente não precisa falar sobre isso se você não quiser.

Nico abriu a boca e a fechou outra vez, incerto.

- Tudo bem.

Mari tentou mascarar a decepção e a raiva de si mesma. Ela devia ficar mais calada.

- Te vejo no sábado, quando vier buscar o Alonso - ela disse. - Se precisar de alguma coisa, agora você já sabe o meu endereço.

Nico assentiu e sorriu.

- Pode deixar.

Então ela deu as costas para ele, voltando para o castelo e se perguntando onde aquela história ia dar.

E se, no fim, sairia dela com o coração intacto.

Dezembro chegou com temperaturas capazes de congelar uma pobre carioca que nunca tinha estado em um lugar em que o termômetro chegava perto do zero. Ela checou a previsão do tempo e ficou se perguntando se veria neve pela primeira vez antes do Natal.

Mari tomou todo o cuidado de aquecer bem Alonso antes que ele saísse para pescar com Nico. Colocou tantos casacos no menino que se ele caísse no chão, com certeza quicaria de volta. Mas ele estava tão ansioso para o dia que nem parecia estar sentindo muito frio, só ficava rezando de cinco em cinco minutos para que o lago não estivesse congelado.

Como já tinham se passado horas desde que os dois saíram, Mari supôs que tudo havia dado certo.

- Não está na hora de buscar o Alonso? - Vitória perguntou enquanto se equilibrava em uma escada e tentava tirar teias de aranha de um lustre. Elas estavam limpando o castelo há horas e mal tinham terminado com metade dos cômodos. Mari se perguntou se era assim que a Cinderela se sentia antes de virar princesa.

Ela conferiu o horário no celular.

- É verdade. Tudo bem se eu te deixar por uns minutinhos?

- Não precisa ter pressa. Eu sei que você vai querer ficar de papinho com o Nico por um tempo.

Vitória riu de si mesma e Mari se segurou para não chutar a escada.

- Você é um monstrinho, sabia?

- Eu só quero te ver feliz!

- E você acha que o Nico pode me fazer feliz?

Vitória deve ter notado a pergunta genuína na voz da amiga, porque suspirou e desistiu das teias de aranha. Ela desceu os degraus com cuidado e jogou o espanador no chão.

- Você parece bem apaixonada por ele - a amiga constatou, os olhos escuros fixos nos de Mari. - E Nico parece ser uma boa pessoa.

- Ele é - Mari disse sem hesitar. - E eu acho que ele sente algo parecido por mim. Mas está com medo.

Ela tinha contado para Vitória sobre o que aconteceu entre eles naquela noite na sala de estar. A amiga não tinha dado muitas opiniões. Só pontuou que talvez Nico funcionasse em um ritmo diferente do dela.

- Aquele cara parece ter perdido muita coisa em pouco tempo, Mari - Vi falou. - Talvez ele esteja assustado. Ou quem sabe pense que não merece essa felicidade.

Mari revirou os olhos.

- É claro que ele merece! Isso é bobagem.

- Bobagem para você. Até onde a gente sabe, o Nico mal saiu de casa por dois anos. Sem contar que de repente aparece uma ruiva maluca na vida dele, com um irmão, uma amiga e um castelo, mudando o que ele já conhecia e com o que estava acostumado. - Vitória ergueu o rosto de Mari, que estava encarando o chão com o cenho franzido. - É só você ter paciência. As coisas vão se ajeitar. Você é sortuda o suficiente de poder gostar de alguém sem medo. Aproveita a sensação.

Mari assentiu devagar. Ela sabia o que Vitória estava dizendo. Por anos, ela tinha escondido sua sexualidade dos pais. Tinha aberto mão de todas as garotas por quem tinha se apaixonado por medo de ser rejeitada por eles. Quando a família dela finalmente soube, passaram a tratá-la como se fosse um problema que precisava ser resolvido.

Mariella nunca tinha visto Vi tão feliz na vida desde o dia em que deixaram o Brasil. Ali, ela podia ser quem sempre quis. Podia se apaixonar e andar na rua de mãos dadas. Tinha tempo para tirar suas fotos e trabalhava em um lugar em que não era tratada como uma espécie de máquina. Mari queria que ela nunca fosse embora. Queria que ficasse ali com ela e o Alonso para sempre.

- Chega de pensar de mais - Vitória falou, batendo um dedo na sua testa. A amiga sabia certinho quando Mari se perdia dentro de si mesma. - Anda, vai lá ver seu homem.

- Ele não é meu homem - Mari falou, apesar de estar sorrindo como uma boba diante da frase.

- Ainda.

Ela revirou os olhos e pegou o casaco e o cachecol pendurados perto da porta, deixando o castelo para enfrentar o ar frio de dezembro.

Quando chegou à mansão, Mari se deparou com Iolanda varrendo a varanda da frente, as mãos calçadas com luvas estampadas de bonecos de neve.

- Ah, olá, querida! - a senhora disse com um sorriso. - Os rapazes já chegaram. Estão lá em cima. Vem, entra.

Mari seguiu Iolanda para dentro, pedindo licença e limpando os sapatos no tapete da entrada. Ela já ia perguntar onde poderia encontrar Nico e Alonso quando Iolanda disse:

- Mari, eu queria conversar com você.

Ela se endireitou no mesmo instante, congelada no ato de tirar o cachecol. Aquele frase nunca era coisa boa. Em português, italiano, ou qualquer outra língua do mundo.

- Pode falar.

Iolanda estava torcendo as mãos uma na outra, os olhos fixos no chão.

- Eu queria pedir desculpas. Pelo modo como te tratei na primeira vez que veio aqui.

Mari soltou a respiração que estava prendendo com um suspiro e um sorriso aliviado. Era só aquilo?

- Iolanda, não precisa se desculpar - ela disse. Eu nem lembro mais que você recusou meu bolo e bateu a porta na minha cara.

Mari tentou afastar os pensamentos. Ela precisava parar de ser tão rancorosa.

- Não, eu preciso sim. Queria te falar isso há tempos, mas não tive oportunidade. - Ela abriu e fechou as mãos com força e ergueu o rosto para a mulher mais jovem. - Aquele comportamento foi inaceitável. Eu agi daquele jeito porque já estou acostumada a rejeitar visitas no nome do Nico. Principalmente curiosos da cidade, que felizmente não aparecem mais tanto quanto antigamente. - Ela respirou fundo antes de continuar. - Eu me sinto na obrigação de proteger aquele menino. De impedir que ele se sinta desconfortável. Foi por isso que fechei a porta na sua cara naquele dia.

- Iolanda, eu entendo. - Ela colocou a mão no ombro da senhora e a olhou nos olhos. - Você só queria o melhor para o Nico. Quando eu vim aqui pela primeira vez, eu não fazia ideia da situação.

- Mas, Mariella, desde que você apareceu, tudo tem sido tão melhor. - Mari engoliu em seco ao notar os olhos cheios de lágrimas de Iolanda. - O Nico nunca esteve tão feliz desde que tudo aconteceu. Ele está saindo mais de casa e adora conviver com você e seu irmãozinho. Eu nunca o vi sorrir tanto assim.

- Ouvir isso significa muito para mim. - Era Mari agora quem estava lutando para não chorar. - Como você, eu também só quero ver o Nico feliz.

- Você o faz feliz - ela disse. - Espero que saiba disso.

Mari assentiu devagar. Seu coração mal cabia no peito. Iolanda afagou a mão dela e sorriu com os olhos brilhantes.

- Eles estão no andar de cima. Terceira porta à esquerda.

- Tudo bem. Obrigada.

Mari seguiu as instruções de Iolanda, a cabeça cheia das suas palavras e do que elas significavam. Ela não conseguia parar de sorrir. Queria dançar por aí. Queria cantar a plenos pulmões.

Ela chegou ao andar de cima e percebeu que já tinha atravessado parte do corredor sem contar as portas. Mari ouviu risadas e as seguiu com o coração cheio de felicidade. Estava quase chegando quando algo chamou sua atenção pelo canto do olho.

Um dos cômodos estava com a porta entreaberta, a sala banhada em luz permitindo que ela visse uma quantidade enorme de quadros encostados em fileiras nas paredes. Mari deu um passo em direção à porta, uma tábua rangendo sob seus pés. Ela se encolheu e colocou a mão na maçaneta fria, abrindo só mais um pouquinho.

Meu Deus.

Agora ela sabia onde tinham ido parar todos os quadros que deixaram buracos nas paredes da mansão. Eram dezenas de telas, todas jogadas por ali de qualquer jeito, como se alguém as quisesse manter escondidas.

Mari sabia que não devia estar fazendo aquilo.

Sabia. Mas entrou mesmo assim.

As telas eram coloridas e chamativas, como se alguém tivesse jogado respingos de tinta até formar camadas sobre camadas e ainda assim construir algo bonito. A maioria dos quadros era de arte abstrata, enquanto outros apresentavam pinturas fotorrealistas capazes de roubar o fôlego de qualquer um. Mari se aproximou de uma das telas, os olhos fixos nos da mulher pintada ali, nas suas íris verdes que pareciam captar a luz e nos cabelos escuros que a capturavam. A assinatura no canto inferior direto não deixava dúvidas quanto ao pintor.

Nico Moretti.

Mari soltou um arquejo baixinho. Todos aqueles quadros eram do Nico?

Ela passou pelas pinturas e logo percebeu outro nome assinado nos quadros:

Lorenzo Moretti.

O pai do Nico. Só podia ser.

Enquanto a maioria das telas de Lorenzo era de arte abstrata, os de Nico pendiam para o fotorrealismo. Um ou outro daqueles mais coloridos vinha com seu nome assinado em tinta branca, mas ela tinha que admitir que não eram tão bonitos quanto os do pai. Seu talento era outro.

Ela estava pensando no motivo pelo qual todos aqueles quadros estavam jogados ali quando ouviu o ranger da porta atrás dela.

- Mari? - a voz de Alonso chamou.

Ela se levantou de uma vez, o coração batendo tão rápido e forte no peito que ela não conseguia ouvir mais nada. Atrás de Alonso, estava Nico.

- Eu... entrei no cômodo errado - ela disse, mas sua voz saiu aguda e falsa até para os próprios ouvidos.

- Nossa, Nico! Que tanto de quadros. Por que eles estão todos aqui? - Alonso perguntou, mas antes que Nico tivesse a oportunidade de responder, Iolanda surgiu no corredor.

- Alonso, eu estava pensando em preparar uma sobremesa para o café da tarde. Quer me ajudar na cozinha?

- Quero! Eu posso ir com a Iolanda, Mari?

Ela assentiu, as palavras se recusando a sair.

O irmão saiu correndo atrás de Iolanda, os passos sumindo até que Nico e ela estivessem sozinhos. Ela no meio do cômodo. Ele parado na porta.

- Eu sinto muito, Nico - ela disse, as palavras se derramando de uma vez. - Eu não devia ter entrado sem permissão. Mas a porta estava entreaberta, eu vi os quadros e quis olhar mais de perto.

Nico entrou no cômodo, a luz do sol que entrava pela janela refletindo nos seus cachos escuros.

- Por favor, fala alguma coisa - Mari sussurrou. - Eu... me desculpa.

- Não precisa se desculpar - ele disse finalmente, parado a alguns metros dela. - Eu também ficaria curioso se fosse você.

- Mas eu devia ter pedido sua permissão para olhar, mesmo assim. - Ela chegou mais perto dele. - Os seus quadros são lindos, Nico.

- Você acha? Eu odeio quase todos eles.

A revelação a pegou desprevenida. Nico suspirou e se sentou no carpete, uma mão passando pelos fios do cabelo. Tirando todos os quadros, o cômodo estava vazio, como se tivesse sido destinado apenas para depósito de toda aquela arte.

Mari se sentou no chão perto dele.

- Eu odeio ainda mais os do meu pai. Nunca gostei de arte abstrata. Talvez seja porque eu não consiga compreendê-la, mas eu sempre ficava revoltado quando ele passava horas trancado no estúdio só para surgir com uma tela que parecia ter sido acertada por alguns baldes de tinta. - Ele soltou uma risada seca. - E, mesmo assim, pessoas pagam milhares por um dos quadros dele.

- Eu definitivamente gosto mais dos seus.

Nico abriu um sorriso que era quase triste.

- Meu pai começou a me ensinar sobre pintura antes que eu se quer começasse a falar. Ele sempre foi o único artista da família. O que saiu do ramo de exportação de queijo para virar pintor. Ele queria que mais alguém fosse como ele. Queria ter um semelhante. Eu era a cobaia perfeita.

- E você gostava disso? De pintar?

Ele balançou a cabeça.

- Eu não tinha paciência. Queria sair com os meus amigos. Namorar. Viajar por aí. Mas eu também queria deixar meu pai orgulhoso. Então eu tinha aulas de pintura com professores renomados e com ele também. Nunca cedi para a arte abstrata, embora tenha pintado alguns só para agradá-lo. O fotorrealismo não era tão insuportável para mim, só que ocupava horas e horas da minha vida.

Mari encarou os quadros que retratavam rostos tão perfeitos e paisagens com tantos detalhes que pareciam... Bem, fotos. Parecia impossível que tinta e pincel tivessem criado aquilo tudo e não a lente de uma câmera moderna.

- O meu pai vendia muitos dos meus quadros. E eles davam uma boa grana. Ele costumava dizer que eu poderia fazer coisas ainda melhores se me esforçasse de verdade. Ele se recusava a entender que eu não amava aquilo como ele. - Nico puxou uma linha do carpete. - Antes, ele me levava às suas próprias exposições, depois, sem eu nem perceber, estava em eventos com o meu nome também. Eu odiava aquilo. Todos aqueles artistas bajuladores e as pessoas em roupas chiques. Eu tinha dezessete anos. Aquilo não era para mim.

- E o que a sua mãe achava disso?

Nico hesitou por um momento e Mari quis pedir desculpas. Não sabia se era boa ideia falar da mãe dele, mas a pergunta saiu mesmo assim. Mas Nico contou:

- A vida toda, minha mãe sempre quis fazer o meu pai feliz. Ela não se importava em ser ignorada por ele. Não se importava se ele a colocava em segundo lugar em detrimento da arte. Os poucos momentos em que ele lhe dava atenção já eram o suficiente para ela. E na maior parte do tempo, sempre fomos nós dois. Eu gostava quando o meu pai estava fora. Quando passava semanas em Milão ou em Roma, em exposições, eventos e qualquer outra coisa que caras com o nome dele fazem. Era bom ter a casa só para nós. Minha mãe e eu saíamos por aí para tomar sorvete e brincar na grama. Ela jogava futebol comigo e me levava para nadar nos dias de verão. Quando estava frio, ela espalhava os lápis de cor e os livros de colorir no tapete em frente à lareira e a gente passava horas só fazendo aquilo. Acho que ela não percebia, mas quando meu pai estava longe, ela relaxava. Era ela mesma. - Nico engoliu em seco. - Eu odiava a dependência emocional que a minha mãe tinha do meu pai. Quando ele estava por perto, ela o orbitava com se ele fosse a porra do Sol. Um dia, quando eu era mais velho, me revoltei por alguma coisa e gritei com ela pela primeira vez. Disse que a vida dela era uma mera extensão da do meu pai. E que odiava o modo como ela fazia com que a minha fosse também.

Nico parou de falar. Ela viu o corpo dele estremecer. Ele, que era tão grande e tão forte, também tremia sob o peso de certas lembranças.

- Eu me culpo por isso até hoje. Nunca vou esquecer a mágoa nos olhos dela.

- Nico, você era só um adolescente com raiva. Todo mundo diz bobagens nessa idade. Eu tenho certeza que ela te perdoou.

- Ela perdoou. Mas eu não.

Ela apertou o joelho dele, tentando fazer com que ele se lembrasse que ela estava bem ali do seu lado, que podia dizer o que quisesse.

- Depois que eu perdi a visão, o meu pai me deixou em paz. Eu não tinha mais utilidade nenhuma para ele.

A frase acertou Mari como um soco no estômago. Ela não podia acreditar naquilo.

- Nico...

- Ele foi embora, praticamente. Se refugiou em Milão e me deixou com dinheiro o suficiente para atender minhas necessidades e contratar cuidadores naqueles primeiros dias. O meu pai queria que eu fosse o legado dele, mais do que as suas pinturas. Mas eu não posso pintar mais.

O silêncio no cômodo era pesado. Mari estava tentando a todo custo não chorar. Não gritar. Não pegar o primeiro ônibus para Milão e encontrar aquele pintor filho da puta e acabar com a raça dele.

Nico deve ter notado o humor dela, porque disse:

- Sabe, se eu soubesse que para me livrar da pintura era só ficar cego, teria dado um jeito nisso antes.

Ela soltou uma risada incrédula e o empurrou.

- Você é horrível, Nico Moretti.

- Eu pensei que você tivesse dito para a sua amiga que eu era lindo.

- Cala a boca.

Ele riu e segurou o pulso dela com delicadeza.

- Não contei tudo isso para você ficar se sentindo mal por mim.

- Eu não tô me sentindo mal por você. Tô me sentindo mal pelo seu pai. Porque vou acabar com ele na primeira oportunidade que tiver.

Nico sorriu.

- Fico pensando em como você é quando fica brava desse jeito.

- Nada bonita, posso garantir. - Mari olhou ao redor. - Você guardou todos os quadros aqui depois que seu pai foi embora de vez?

Nico assentiu.

- Estou esperando a oportunidade perfeita para botar fogo em tudo. Talvez quando as temperaturas baixarem um pouco mais, a gente possa fazer uma fogueira.

- Nico! - Ela riu. - Você sabe que tem milhares em dinheiro só nessa sala, né?

- Eu não ligo. Estou satisfeito o suficiente com o meu negócio de vinhos.

- Tá bom, Sr. Tenho Dinheiro o Suficiente.

Nico riu e a puxou para mais perto. O coração de Mari voltou a bater em uma velocidade anormal e ela traçou a linha da maçã do rosto dele com o dedo, colocando um cacho rebelde atrás da sua orelha.

- Eu não consigo acreditar que seu pai virou as costas para você quando mais precisava - ela sussurrou, imaginando toda a dor pela qual ele tinha passado. - Que tipo de monstro faz uma coisa dessas?

- Ele não sabia lidar com aquilo, Mari. Não conseguia entender que a pessoa que ele sempre quis que eu fosse, não podia mais existir.

- Mas você tinha perdido a sua mãe. Teria que aprender a fazer um monte de coisas do zero de novo. Eu não entendo como ele teve essa coragem.

Nico deu de ombros.

- Ele ficou comigo no hospital naqueles dias. E me trouxe para casa. Depois, pensou que o dinheiro resolveria as coisas. E Iolanda e Riccardo ficaram comigo.

- É errado falar que eu odeio o seu pai um pouco?

Nico sorriu.

- Só um pouco?

- Muito. Eu odeio muito.

Eles estavam mais perto agora. Mais do que tinham estado naquele dia no castelo. Mari estava entre as pernas estendidas de Nico, as mãos no rosto dele enquanto sentia seu toque na base das suas costas. Suas respirações se entrelaçavam. O mundo parecia suspenso.

- Nico, você é uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci - ela sussurrou. - Eu não consigo parar de pensar em você.

A mão de Nico subiu pelas suas costas, provocando arrepios. Ela fechou os olhos e encostou a testa na dele.

- Você também não sai da minha cabeça, Mari. Eu achei que nunca me sentiria assim outra vez. Que ninguém nunca mais se aproximaria o suficiente para me conhecer e gostar do que vê. Pensei que fosse impossível.

Ela queria beijá-lo e sacudi-lo ao mesmo tempo. Impossível? Se apaixonar por ele? Só podia ser brincadeira...

- Eu vou te beijar - ela avisou, como tinha feito naquela noite em que jantaram juntos pela primeira vez, quando falou que ia abraçá-lo só para dar tempo de ele se preparar. - Se não quiser isso, é melhor falar agora.

Um sorriso divertido torceu os lábios dele. Tão lindo que fez o corpo dela pegar fogo só com a visão.

- Eu não vou te impedir.

Aquilo era incentivo o suficiente.

Mari beijou Nico, as mãos naquele cabelo que ela sempre quis tocar com propriedade. Ela ouviu quando ele suspirou nos lábios dela, um braço envolto na sua cintura enquanto com a outra mão segurava sua nuca.

Mari se sentia acesa, o corpo queimando. Ela só se deu conta do quanto queria aquilo quando já estava acontecendo. Quando percebeu que preferia morrer a se afastar naquele instante.

Nico desceu os lábios pelo queixo dela, espalhando beijos pelo pescoço até sua clavícula. Mari o segurou com tanta força que os braços doeram de rigidez. Nico sabia muito bem o que estava fazendo. Ela não conseguia acreditar que ele estava há dois anos isolado naquela casa. Não quando a beijava daquele jeito.

Ela voltou a atenção para seus lábios e levou as mãos às laterais dos óculos escuros.

- Posso tirar? Não é tão fácil beijar com eles.

Ela sentiu quando o corpo de Nico se tencionou por inteiro. Ele se afastou um pouco, segurando gentilmente os pulsos dela.

- Eu não quero que você veja.

Mari desceu as mãos para as bochechas dele com carinho.

- Nico, eu não me importo com a aparência dos seus olhos. De verdade.

Ele ficou em silêncio. Mari notou a dúvida nele, o medo. Ela estava disposta a fazer com que ele o enfrentasse.

- Nico, eu não vou...

- Eu não tenho os meus olhos, Mari.

Ela congelou. A revelação pendurada entre eles com o peso de um pedregulho.

Nico suspirou e baixou o rosto.

- Eu sei que não é nada bonito. O meu pai não conseguia olhar para mim. Eu ouvi ele dizer no hospital, quando pensou que eu estava dormindo.

- Nico...

Ela só conseguia pensar em que tipo de acidente causaria uma coisa daquelas. No quanto devia ter doído e quão assustado ele ficou quando se deu conta do que aconteceu.

- Eu me sinto melhor com os óculos - Nico continuou. - E, dentre todas as pessoas, eu não quero que você veja.

- Por que não?

- Porque não quero te chocar, nem assustar. Porque... - Ele parou, obviamente frustrado. Mari o ouviu xingar baixinho. - Porque eu gosto de você e pela primeira vez me sinto como um cara qualquer de novo quando estamos juntos. Não suporto a ideia de te repelir de alguma forma.

- Nico, você é maluco? - ela perguntou, genuína. - Isso nunca aconteceria.

Ele balançou a cabeça e a virou na outra direção.

- Você não tem como saber.

- Nem você. Aposto que não é ruim desse jeito. E, mesmo se fosse, eu não me importaria. - Ela segurou o rosto dele com as duas mãos. - Para alguém tão inteligente, você consegue ser bem tapado às vezes.

Ele sorriu de leve.

- Ei, você não pode culpar um cara por suas inseguranças.

- Eu posso, sim. - Mari o beijou com tudo que tinha nela. Para mostrar que nada mudaria. Que gostava de cada parte dele, do jeito que elas eram. - Como se eu já não fosse caidinha por você.

- Você é? - ele perguntou, a provocando.

- Eu não vou confirmar outra vez. Só vai aumentar o seu ego. - Mari sorriu e entrelaçou a mão na dele. - Um dia desses, você vai me mostrar. E eu vou te provar que estava errado.

Nico suspirou, mas apertou a mão dela de volta.

- Tá bom. Só me dá um tempinho.

- Combinado.

Eles ficaram ali por um tempo. Mari deitou no colo dele e Nico passou os dedos pelo seu cabelo. Ela perguntou se a mulher em uma das telas era a mãe dele.

- É, sim.

- Ela me parece familiar.

- Todo mundo fala que a gente é parecido. Mas o cabelo dela era mais preto e a pele parda.

Sim, eles eram de fato muito parecidos, mas Mari ainda estava com aquela sensação de que já a tinha visto em algum lugar. Mas onde?

O pensamento foi rapidamente perdido. Ela estava ocupada demais se deliciando com as mãos de Nico nela para prestar atenção em qualquer outra coisa.

Eles não falaram sobre como seria dali para frente. O que eram um para o outro. Mari não queria ter aquela conversa. Não por enquanto. Por isso, quando ouviram os passos de Alonso no corredor, eles se afastaram e Mari tentou limpar o gloss que tinha deixado na boca de Nico.

Em um acordo tácito, eles decidiram que era melhor manter aquilo em segredo. Pelo menos por enquanto.

- Gente, a torta tá pronta! - Alonso chamou, entrando no cômodo bem a tempo de Mari se recompor. - A Iolanda disse para gente ir comer.

Eles se levantaram e seguiram o garoto pelo corredor. Alonso foi na frente e desceu as escadas, mas antes de se juntarem a ele e Iolanda, Nico puxou Mari para um cantinho e a beijou.

- Só para você saber que não vou pensar em nenhuma outra coisa além disso até a gente se ver de novo - ele disse sorrindo.

Mari o beijou de volta e retribuiu o favor de mais cedo, encostando os lábios no seu pescoço e não se importando em deixar algumas marquinhas para trás. Nico suspirou, o aperto dos seus braços ao redor da cintura dela afrouxando.

Mari sorriu satisfeita, tocou a ponta do nariz dele com o indicador e sussurrou no seu ouvido: - Eu vou me garantir disso.

Nico parecia prestes a puxá-la de novo, mas Mari riu e escapou, segurando a mão dele enquanto desciam as escadas.

Enquanto se reuniam ao redor da mesa para comer e Alonso compartilhava histórias sobre os peixes enormes que tinha pescado sozinho naquele dia, não faziam ideia de que o celular de Nico, abandonado desde que tinha chegado em casa com o Alonso na mesa do seu escritório, apitava com a ligação de um número que há muito tempo não entrava em contato.

O nome do visor mostrava uma palavra curta e simples:

Pai.

____________________♥️____________________

Oii, gente!!!

Sei que esse tipo de capítulo é sempre muito aguardado por vocês, então espero mesmo que tenham gostado ♥️♥️♥️

Me contem tudo!!

A partir de agora, novas camadas do relacionamento da Mari e do Nico vão ser exploradas e eu não vejo a hora de liberar os próximos capítulos!

Um beijo e até a próxima,

Ceci.

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