Um castelo de presente

By CeciAmaral

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Mariella não esperava herdar um castelo medieval italiano da noite para o dia. Ela estava ocupada demais tent... More

apresentação
personagens
um
dois
três
quatro
cinco
sete
oito
nove
dez
onze
doze
treze
quatorze
quinze
dezesseis
dezessete (final)

seis

336 61 175
By CeciAmaral

- Eu ainda não consigo acreditar que você pensou que ele fosse um vampiro.

- Eu não achei que ele era um vampiro! - Mari repetiu pelo que devia ser a quarta vez desde a noite anterior. Vitória estava sentada no banquinho alto de frente para ela, as duas bebendo coquetéis em um bar da cidade. - Eu só achei ele estranho. E dizer isso agora sabendo a verdade só me faz sentir uma babaca.

Mari misturou a bebida com o canudinho, envergonhada. Vitória, por outro lado, não conseguia parar de rir.

- Mari, você não tinha como saber nada sobre ele!

- Não importa. Quando ele recusou o meu bolo, eu quis trucidar o coitado! E fiquei xingando ele em pensamento durante todo esse tempo, quando na verdade o Nico só pode ser um cara que não se sente à vontade em sair de casa.

Vitória deu de ombros.

- Não adianta ficar se lamuriando por isso agora. Já passou. Deu tudo certo. Você foi até convidada para um jantar na mansão dele! Para quem nunca nem tinha visto o vizinho misterioso, você se deu bem em um primeiro encontro.

- Não foi um encontro. Eu só fiquei presa no moinho com ele.

- Eu achei romântico.

- Vitória! - Mari queria jogar todo o coquetel na cara dela. - E eu lá quero romance?! Olha pra minha vida. Onde eu enfiaria um cara nela?

- Eu posso pensar em alguns lugares.

- Cala a boca.

Vitória estava vermelha de tanto rir. Talvez o coquetel dela tivesse mais álcool.

Mari deixou os olhos passearem pelo barzinho que tinha sido construído para imitar uma taverna medieval. Tinha uma placa do lado de fora dizendo que o lugar fora inaugurado em 1953, mas que a construção que o abrigava tinha pelo menos trezentos anos. Os proprietários pareciam abraçar aquele fato, deixando o lugar ser parcialmente iluminado por lamparinas e velas, cobrindo as paredes de tapeçarias bordadas e pela música folclórica que uma banda tocava no palco de madeira aos fundos.

Alonso tinha ido dormir na casa de um colega de escola naquela noite. Ele tinha se entrosado rapidamente com as crianças da sua sala e agora vivia convidando amigos para passar algumas horas no castelo. Naquele dia, depois que a mãe do Tommaso foi buscar o filho na propriedade dos Cavalieri, ele e Alonso imploraram para que Mari deixasse o irmão ir dormir na casa do amigo. Ela ficou um tanto insegura em se separar de Alonso - mesmo que só por uma noite - mas ela já conhecia a mãe do outro garoto e eles pareciam pessoas bem decentes.

Mesmo assim, ela não parava de checar o celular caso recebesse alguma mensagem do irmão ou da família do amigo.

- Posso servir algo mais para as senhoritas? - uma voz feminina perguntou de repente, fazendo Mari bloquear o celular depois de digitar uma rápida mensagem de boa noite para Alonso. Duvidava que ele fosse se incomodar em responder, mas valia à tentativa.

A moça diante da mesa delas tinha um sorriso simpático e olhos castanhos radiantes. Olhos que desde o início da noite não tinham deixado Vitória.

- Posso trazer outro coquetel para você? - ela perguntou para a amiga, notando que o copo dela já estava vazio, ao contrário do de Mari.

- Ah, não, eu não deveria beber mais - Vi respondeu, puxando o cabelo enrolado por sobre o ombro e torcendo em um gesto nervoso. Ela estava arrasando no italiano, apesar da insegurança que sentia toda vez que precisava se comunicar. - Apesar de isso aqui estar uma delícia!

A moça sorriu. Ela tinha as mangas do blazer branco arregaçadas até os cotovelos, um paninho jogado por sobre o ombro largo e a desventura de quem sempre sabe o que está fazendo.

- Se você quiser outro drink, vai ser por conta da casa.

- Por conta da casa? - Vi perguntou, erguendo uma sobrancelha.

A atendente sorriu e se inclinou um pouco na direção dela.

- Por minha conta.

Mari bebeu de uma vez todo o seu coquetel. A tensão entre aquelas duas a estava afetando.

- A Vi aceita a bebida - ela interferiu, quando as duas se encararam por um instante longo demais. - E o seu número de telefone em um guardanapo também, de preferência.

- Mariella!

Vitória estava escandalizada, os olhos praticamente saltando das órbitas.

A atendente riu e piscou para Vitória.

- Vai ser um prazer.

E ela se afastou pra preparar o coquetel - e escrever seu número, com certeza.

- Não acredito que você fez isso! - Vi sussurrou, a pele negra assumindo um tom de vermelho vivo. - Vou te matar.

- Vocês estão se comendo com os olhos a noite inteira. Eu te fiz um favor! E é claro que a gente não ia sair para a nossa primeira noite de garotas na Itália sem você arrumar um contatinho.

- Sua abusada.

Mas Vitória não conseguia parar de sorrir.

No fim da noite, quando elas já tinham passado da hora de voltar pra casa, a atendente voltou e estendeu para a amiga o guardanapo. Mari viu o nome Giana rabiscado embaixo de uma sequência de números.

- Esse sábado é a minha folga - Giana disse para Vitória. - Você é nova por aqui, né? Vai ser um prazer te mostrar a cidade.

- Aposto que ela quer ver mais do que só a cidade... - Mari murmurou, pegando sua bolsa.

- Mariella! - Vitória escondeu o rosto nas mãos. - Você pode, por favor, esperar lá fora?

Ela não precisou pedir duas vezes. Mari já tinha se divertido o suficiente. Ela foi para o lado de fora do bar e esperou alguns minutos até a amiga voltar.

- Eu vou te jogar da torre mais alta do castelo, você vai ver - Vi disse quando elas se encontraram de novo, mas não conseguia nem fingir que estava brava.

- Eu que vou te jogar se você disser que aceitou o convite dela para sair justo no sábado!

Vitória arregalou os olhos e levou as mãos à boca.

- É verdade! O jantar com o vizinho! Eu esqueci completamente.

Mari balançou a cabeça e fechou os olhos com força. Não conseguia acreditar.

- Eu não vou ter coragem de ir sem você! Quem vai me ajudar a controlar o Alonso?!

- Ah, não é com o Alonso que você tá preocupada - Vitória disse, enquanto esfregava as mãos enluvadas e tentava aquecê-las. Estava um frio de matar ali fora. - Você só não quer ficar sozinha com o Nico.

- Nem vem com essa de novo - Mari pediu, soprando uma mecha do cabelo acobreado para longe dos olhos.

- Você não me engana. Sei que tá mega nervosa para esse jantar. - Agora era Vitória quem estava se divertindo às suas custas. E Mariella não gostava nada daquilo.

- Eu não...

- Ele é bonito?

- Quê?

- Você não me contou como ele é. Deve ser um gato pra você ficar toda ansiosa desse jeito.

Mari revirou os olhos. Aquela garota era inacreditável.

- Estava escuro. Eu não reparei.

- Mentirosa!

Vitória a empurrou com o ombro, rindo alto.

- Ele é bonito, eu acho - Mari contou, só pra ser deixada em paz. - Ele é do tipo alto e esguio. Tem cabelo castanho na altura dos ombros mais ou menos. Nada demais.

- Nada demais? Então por que você tá toda vermelha?

- É de frio, garota! - Foi a vez de Mari de empurrá-la. - Você é uma chata. E eu não vou te perdoar por me abandonar.

- Vai, sim. Cada uma tem seu date e tá tudo certo.

- O jantar não é um encontro!

- Parece um encontro.

- Não. É. Um. Encontro!

Por que Mari estava se arrumando como se fosse um encontro?

Era sábado à noite. Ela tinha passado uma quantidade considerável de perfume e trocado de roupa pelo menos umas cinco vezes, sem conseguir decidir o que usar. Agora estava na frente do espelho, com o seu estojo de maquiagens revirado em cima da cama, tentando acertar o delineador.

- Por que você tá se maquiando tanto? - Alonso perguntou, chegando na porta do quarto dela. - Ele não vai conseguir te ver mesmo!

Mariella rabiscou metade do rosto com a caneta delineadora no momento em que o irmão soltou aquilo.

Ela abandonou as maquiagens no mesmo instante, pegou Alonso pela mão e o sentou na beirada da sua cama.

- Pelo amor de Deus, Alonso, pelo amor que você tem por mim, se comporta nesse jantar. E nem em sonho fala uma coisa dessas na frente do vizinho!

Mari sofreria um infarto naquela noite. Ela estava sentindo. A língua do seu irmão era tão incontrolável quanto cavalos selvagens.

Ela até tentou conversar com ele naquela tarde, explicando quem o Nico era e sobre a sua deficiência visual, além de como ele deveria se comportar durante o jantar. Mas quem disse que ele tinha prestado atenção?

- Eu não tô falando que tem problema ele ser cego - o irmão disse, colocando uma mão no peito. - Eu não sou preconceituoso. Eu nem votei no Bolsonaro!

Mari escondeu o rosto nas mãos e respirou fundo. Três vezes.

- Você nem tem idade para votar, querido.

- Mas se eu tivesse, não teria votado nele!

Como Mari podia brigar com a criança depois de uma daquelas?

Ela se levantou e ajeitou a gola do casaco do irmão, se certificando de que ele ficaria aquecido no caminho até a mansão.

- Só seja um bom menino, tá bom? Eu sei que é difícil, mas tenta pensar antes de falar, okay?

Alonso torceu o nariz.

- Quem é que faz isso? Parece difícil.

- Pra você vai ser mesmo.

E então ela se colocou na frente do espelho para arrumar a bagunça que tinha feito com o delineador.

- Mari? - o irmão chamou, em um tom de voz baixo e preocupado, nada característico dele.

- O que foi?

- Com quem a Vi saiu de carro mais cedo? Foi com um menino?

Mari segurou o riso.

- Não, não foi com um menino.

Ela ouviu o irmão suspirar atrás dela.

- Ah, ainda bem! Eu teria que tirar satisfações se fosse com um menino.

Mariella passou um pouquinho de base no lugar onde tinha limpado a marca de delineador.

- A Vi te ama mais do que qualquer outro menino, não precisa ficar com ciúmes.

- Eu sei. Quem é que não me ama?!

Mari acabou a maquiagem e fez sinal para o irmão.

- A gente já vai. Não se esquece de...

- Se comportar. Eu já sei. - Ele colocou as mãos nos bolsos do casaco. - Será que vai ter comida boa?

Mari decidiu não responder.

Ela pegou o embrulho que tinha deixado na cozinha e levou o irmão para fora do castelo, trancando as portas ao sair. Juntos, eles atravessaram a porção do terreno que separava as duas propriedades e Mari bateu na porta da mansão.

Daquela vez, ela nem teve tempo de ficar nervosa e começar a mexer nos brincos nas orelhas. Em instantes, as portas duplas tinham sido abertas.

- Olá, crianças! - Iolanda disse com um sorriso radiante, o completo oposto da senhora que Mari tinha conhecido só alguns dias atrás. - Por favor, entrem, entrem. Fujam do frio.

Mariella estava chocada. Ela não teve tempo de falar qualquer coisa quando Iolanda tirou os casacos deles e os pendurou no cabide perto da porta.

- É um prazer receber vocês - ela disse, parecendo genuinamente feliz. - Mas eu esperava três convidados. Aconteceu alguma coisa?

- Não - Mari apressou-se a dizer, ainda um pouco tonta com a mudança brusca de comportamento da senhora que tinha batido a porta na sua cara recentemente. - Ela só precisou resolver umas coisinhas e não pôde vir.

- Ah, que pena! Mas talvez em outra oportunidade... E qual é o nome do rapazinho?

- Alonso - o irmão respondeu, estufando o peito. Seu novo hobby favorito era se exibir em italiano. - È un piacere conoscerla.

- Que educado! - Iolanda disse, maravilhada. - E que italiano bonito! O Nico comentou que vocês são brasileiros. Já tinham morado na Itália antes?

- Não, é nossa primeira vez - Mari respondeu. - Mas eu sempre falava em italiano com o meu pai. E ensinei a língua para o Alonso.

- É muito importante manter nossa cultura viva, de fato. Mas venham! Vou levar vocês para a sala de jantar.

Alonso e Mari ficaram lado a lado e seguiram Iolanda pela casa. Ambos olhavam para tudo com olhos arregalados e deslumbrados. A mansão era gigantesca e muito bonita, apesar de um tanto... vazia.

Era óbvio que poucas pessoas moravam ali pelo silêncio sepulcral do lugar, mas os cômodos também tinham poucos móveis e eram bem espaçosos, como se faltasse coisa. Mari se perguntou se a casa tinha sido arranjada daquele jeito para que Nico pudesse se locomover melhor.

Quando passaram por uma ampla copa com um lustre magnífico e um tapete que gritava caro só de olhar, Mari notou as paredes nuas, com marcas de quadros que pareciam ter estado ali por muito tempo, mas que tinham sido retirados. Ela tinha visto as mesmas silhuetas vazias em alguns corredores, e se perguntou o que havia sido feito de tantas pinturas.

Antes que pudesse pensar mais a respeito, Iolanda virou à direita e lhes deu passagem para uma ampla sala de jantar. A mesa longa estava forrada com uma toalha branca rendada e repleta de tantas travessas que Mari nem conseguia contar. As janelas enormes davam para Montefiori, que brilhava ao longe com sua beleza encantadora. Mari também viu a lareira tão grande quanto aquelas do castelo acesa, o fogo crepitando e deixando o cômodo quentinho.

- Nossos convidados chegaram? - ela ouviu uma voz familiar em português surgir de repente. Só então Mari notou as portas vai e vem do outro lado da sala por onde Nico passou carregando outra travessa enorme. As portas pareciam dar para o que devia ser a cozinha da casa. Logo atrás de Nico, Bidu veio trotando alegremente com a língua de fora.

- Que fofinho! - Alonso exclamou, se ajoelhando no chão e tentando chamar o cachorro pra perto. - E é grandão! É de que raça?

- Ele é um labrador - Nico disse, colocando a travessa em um espaço vago da mesa e se aproximando de onde Mari e Alonso estavam. - Um que cresceu demais e continuou agindo como filhote.

- Eu posso fazer carinho?

- Claro! Bidu, aqui, garoto.

Nico assobiou e bateu nas coxas, se agachando para fazer carinho no cão.

- Aqui, pode vir.

Alonso foi até eles e se ajoelhou perto do cachorro. Ele passou as mãos no pelo marrom escuro e riu quando Bidu lambeu sua bochecha. Os olhos do irmão estavam brilhando como estrelas cadentes.

- Qual o seu nome? - Nico perguntou para o menino com um sorriso simpático.

- Alonso.

- Quantos anos você tem Alonso?

- Doze.

- Tudo isso? Sua irmã não me contou que já era um rapaz!

Alonso corou de contentamento.

- Eu sou o mais alto da minha sala, sabia?

- É mesmo?

- E o mais forte também.

- Vou ter que te chamar nos dias em que eu precisar dar banho no Bidu, então. É preciso muita força para manter esse porquinho no lugar quando chega o dia de banho.

- Eu consigo! Pode deixar comigo.

Nico colocou uma mão no ombro de Alonso e sorriu, se levantando do chão.

- E onde está a Mariella?

Mari, que estivera observando a cena hipnotizada de um cantinho, piscou depressa e se aproximou dele.

- Oi! Eu tô bem aqui.

Nico sorriu ao ouvi-la. O cabelo dele estava úmido, como se tivesse acabado de sair do banho, e caía em ondas suaves até quase chegar aos ombros. Ele estava vestindo uma camisa azul marinho de mangas compridas e calça preta.

Ele também usava os mesmos óculos escuros da outra noite.

Vitória estava certa. Mari tinha sim notado como ele era bonito no moinho. Mas nada se comparava a vê-lo na luz.

- A sua amiga não veio? - Nico perguntou, fazendo Mari voltar à realidade.

- Ela não pôde. Mas disse que está ansiosa para te conhecer em outra oportunidade.

- A Mari quase matou a Vi por não vir junto - Alonso contou do seu lugar no chão junto a Bidu.

O calor subiu pelo pescoço de Mari em uma onda abrasadora. Ela tentou fazer sinal para que Alonso ficasse quieto, mas ele estava ocupado demais com o nariz enfiado no pelo brilhante do labrador pra prestar atenção nela.

- Eu trouxe um bolo! - Mari disse naquele instante, desesperada para falar alguma coisa. - É de cenoura. Sem lactose.

Nico franziu as sobrancelhas.

- Você fez outro bolo? Para mim?

- Ninguém merece viver sem bolo. E não se preocupa, esse aqui é totalmente seguro pra você.

Nico parecia abismado.

- Você não precisava se dar ao trabalho.

- Ah, para. Não foi trabalho nenhum! E a gente pode comer na sobremesa.

Era engraçado o modo como o gesto simples parecia tê-lo desarmado. Mari não conseguia deixar de se sentir satisfeita por aquilo.

- Eu... - ele hesitou. - Obrigado.

- Não foi nada. Vou colocar na mesa pra gente.

Alguns minutos depois, todos se reuniram em torno da mesa para o jantar.

- Quanta comida! Vocês não precisavam ter se preocupado em fazer tanto - Mari disse, sem palavras diante do banquete diante dela. - Eu precisaria de mil anos para comer tudo.

- Eu só preciso de hoje - Alonso afirmou, já pegando garfo e faca e enfiando um guardanapo dobrado em cima da mesa na gola da camisa. - Coloco tudo pra dentro rapidinho.

- Alonso, que falta de educação!

Mas Nico estava rindo alto.

- Pode deixar ele. Se ainda estiver com fome depois que terminar, tem mais na cozinha, Alonso.

- Tá bom. Valeu. - Ele enfiou uma colherada de lentilhas no prato. - Ei, por que você fala meio esquisito?

Mari quis mergulhar a cabeça na panela de sopa fervente e morrer.

Mas Nico sorriu e respondeu com bom-humor:

- Eu tenho muito sotaque, né? Faz um tempo que eu não converso em português com alguém. Fiquei enferrujado.

- Você também é metade brasileiro que nem eu e a Mari?

- Sim. Minha mãe era brasileira. Ela nunca falava em italiano comigo, então foi tranquilo aprender.

- E você nunca foi para o Brasil? Sempre morou nessa casona aqui na Itália?

- Eu fui ao Brasil uma vez, quando eu era mais ou menos da sua idade. Mas, sim. Eu sempre morei aqui.

- Sozinho? - Alonso pegou um pedaço de carne do prato com a mão e colocou na boca. - Que deprimente.

Mari tentou chutar o garoto por baixo da mesa, mas o danadinho tinha cruzado as pernas no estofado da cadeira.

Nico soltou outra risada ruidosa.

- Eu concordo com você. É um pouco deprimente mesmo.

Ele arrastou a cadeira para se servir, alheio ao modo como Mari morria lentamente toda vez que o irmão abria a boca.

Nico colocava a comida no prato devagar, parecendo sentir a textura do alimento com a colher antes de escolher alguma coisa. Ela notou o modo como Iolanda observava o patrão preocupada, mas não ousando interferir. Ela só voltou a comer quando Nico se acomodou novamente no seu lugar.

Depois de se garantir que Alonso estava ocupado comendo, Mari também se serviu. No momento em que colocou uma garfada do macarrão na boca, quase derreteu inteira de contentamento.

- Meu Deus, isso tá muito bom!

Ela não se lembrava de comer um macarrão tão divino assim desde a morte do pai.

- O Nico fez tudo - Iolanda disse. - Ele é um ótimo cozinheiro!

- Não é pra tanto... - ele disse, modesto.

- É sim! - Mari foi logo pegando mais um pouco do macarrão. - Tá muito gostoso.

- São os ingredientes frescos. A gente faz tudo do zero aqui. A massa e o molho. Você deve saber - Nico contou.

- Eu me lembro de quando meu pai cozinhava pra gente. Minha mãe nunca tinha paciência pra preparar a comida desse jeito, porque apesar de gostoso dá muito trabalho. Eu também peguei a mania de comprar os ingredientes prontos no supermercado. Principalmente massas.

Nico balançou a cabeça em negação.

- Que crime, Mariella. Você é descendente de italianos, pelo amor de Deus.

- Mas também herdei a preguiçinha dos brasileiros.

O jantar correu às mil maravilhas. Até Alonso estava ocupado demais apreciando a comida pra falar bobagem. Depois que comeram do bolo de cenoura, o irmão pulou para perto de Bidu de novo e foi brincar com ele perto da lareira.

Mari se apressou a ajudar Iolanda a recolher os pratos, mesmo Nico insistindo que ela não se preocupasse com aquilo. Quando voltou à sala de jantar, se deparou com taças bonitas na mesa e uma garrafa de vinho esperando por ela.

- Você gosta? - Nico perguntou quando ela se sentou perto dele.

- De vinho? Com certeza!

- Eu peguei um dos espumantes. Mas tenho de outros tipos na adega, se você quiser. Tinto, branco, rosé... Pode escolher.

- Pra ser sincera, eu gosto de vinho, mas não sei dizer quase nada da diferença entre eles. Eu só pego o que eu acho no supermercado.

Nico parou imediatamente o gesto de desarrolhar a garrafa.

- Eu vou fingir que você não disse isso.

Mari riu.

- O que foi? Você é um daqueles caras sofisticados que vão a vinícolas por diversão?

Nico abriu um sorrisinho enigmático.

- Pode-se dizer que sim.

Mari bufou, mas estava sorrindo.

- Desculpa se eu não tenho tanta classe quanto você.

- Vou te dar uma garrafa de cada antes de você sair daqui. Vai aprender a diferenciar vinhos rapidinho.

- Posso tentar. Mas já aviso que meu paladar não é tão desenvolvido.

A garrafa foi aberta com aquele barulhinho gostoso e Mari se levantou um pouco na cadeira para se servir.

- Eu coloco pra você - Nico insistiu. - Me diz quando estiver satisfeita. Eu odiaria manchar a toalha de mesa preferida da Iolanda.

Mari sorriu e observou enquanto ele derramava o líquido com cuidado, nem uma gota escapando.

- Está bom, obrigada.

Nico serviu o vinho pra si mesmo e se sentou na cadeira diante dela. Mari levou à taça aos lábios e sentiu o líquido efervescente na língua.

- Uau! Isso é muito bom. Acho que nunca tinha tomado um desses antes. É como...

- Frutas vermelhas? Com bastante estrutura e acidez?

Mari franziu as sobrancelhas.

- É mais ou menos isso. Mas eu nunca conseguiria descrever dessa forma. Como você...

Então ela viu o nome estampado no rótulo da garrafa, em letras douradas e elegantes que por si só já diziam que aquele não era qualquer vinho que você achava por aí.

Moretti.

Ela arregalou os olhos.

- Você produz vinho!

Nico sorriu sobre a borda da taça e deu um gole.

- Você viu o nome na garrafa, né?

- Não sei como não tinha notado antes! - Ela agarrou o objeto e passou os olhos rapidamente pela descrição que vinha na parte de trás, pegando frases soltas que juntas faziam muito sentido.

"Valorizados por sua complexidade e elegância, os vinhos espumantes Moretti nascem na região da Franciacorta, Lombardia italiana."

"Com poucos anos de história, a vinícola fundada pelos primos Moretti já se destaca pela fineza e sabor único."

- Não acredito! Isso é chique demais!

Nico riu da animação dela.

- Temos outras vinícolas no país, especializadas no cultivo de diferentes tipos de uva que se desenvolvem melhor em outras regiões. Mas o vinho espumante é o nosso carro-chefe.

- Você e seu primo são sócios então?

- Sim. A gente começou o negócio faz quatro anos. Ainda é bem recente e vai levar um tempo para nos consolidarmos no mercado.

- Um vinho desses já tem espaço garantido no mercado - Mari disse, tomando outro gole, ávida. Ela sabia que aquele não era o jeito certo de apreciar um bom vinho, mas não se importava muito.

- Obrigado. Eu fico feliz que você gostou.

- Seu primo mora em Montefiori?

- Ah, não. - Nico riu da ideia. - Riccardo não moraria em Montefiori nem se o pagassem. Ele é da cidade grande. Tem um apartamento em Milão.

Mari pensou quanto dinheiro alguém precisava ter para bancar um apartamento em Milão. Se bem que, pelas suas contas, o próprio Nico devia ter começado o negócio de vinhos antes dos vinte anos. Uma iniciativa daquelas não saía barata, ainda mais para um cara que na época nem devia ter entrado na vida adulta. Era óbvio que os Moretti tinham grana.

- E você? O que você faz?

Mari bebeu outro gole de vinho antes de responder.

- Eu sou escritora.

- Sério? Que incrível! Que tipo de livro você escreve?

Ela encolheu os ombros.

- Comédias românticas na sua maioria. Você sabe, livros água com açúcar.

Nico inclinou a cabeça.

- Você fala isso como se fosse uma coisa ruim.

Mariella suspirou.

- Não é que eu não admire o meu trabalho, mas eu já fui tão desprezada por homens que consideram as minhas histórias literatura barata e de mulherzinha, que eu já parto logo pra defensiva. Sei que tenho que parar com isso. É um hábito feio. - Mas ela se lembrava de alguns dos caras com quem tinha saído antes, a maneira como deixavam subentendido em comentários debochados que o que ela fazia não era um trabalho de verdade. Até seu ex-namorado, o filho da puta do Heitor, já tinha torcido o nariz várias vezes quando Mari contava para algum amigo ou familiar dele que ela era escritora de romances.

- Isso é ridículo. Qualquer pessoa que use o termo "literatura de verdade", não sabe nada sobre literatura. - Nico afirmou. - São só pedantes que se escondem atrás de edições de luxo de clássicos que nem entendem.

Mari sorriu de leve, passando a unha distraída pela borda da taça.

- Obrigada. Eu sei disso, mas é bom ouvir de outra pessoa.

- Eu gostaria de ler seus livros.

- Mesmo?

- Claro. Eles estão disponíveis em audiobook?

Mari sentiu o rosto corar.

- Na verdade, não. O meu novo lançamento vai ter uma versão em audiobook, mas ainda não houve discussões sobre os títulos mais antigos. Acho que eu nunca... - Ela hesitou, incerta se seria sincera ou não. Por fim, decidiu falar a verdade. - Acho que eu nunca tinha me atentado para a importância disso. Vou conversar com a minha agente.

- Não precisa se preocupar. Audiobooks ainda não são tão populares. Eu posso me virar com um e-book. O leitor de tela funciona muito bem.

- Eu vou te enviar todos. Não sei se vinhos por e-books são uma troca justa pra você, mas eu ficaria mais que feliz com essa barganha.

Nico sorriu e estendeu a mão pra ela.

- Feito.

Mari apertou a mão dele, verdadeiramente encantada por aquela noite gostosa e o rapaz diante dela. Parecia impossível que apenas alguns dias atrás ela tinha estado decidida a odiá-lo para sempre.

Mais tarde, quando Nico acompanhou Mari e Alonso até a porta, o irmão abraçou Bidu e fingiu um choramingo.

- Eu não quero deixar ele!

- Você pode vir brincar com o Bidu quando quiser - Nico convidou, tranquilo. - Se a sua irmã permitir, é claro.

- Você deixa, não deixa, Mari? Por favor!

- Deixo sim. Se você prometer se comportar na casa do Nico.

- Eu prometo!

O menino ainda ficou ali se despedindo do cão como se se conhecessem a vida inteira e fossem ser separados para sempre quando Mari chegou mais perto de Nico e disse:

- A noite foi incrível, de verdade. Obrigada por ter recebido a gente tão bem.

- Foi um prazer ter vocês aqui. No início eu fiquei nervoso porque, você sabe, eu sou um esquisitão antipático, mas fico feliz que tenha gostado.

Mari riu.

- Nico, você não é nem um pouco antipático.

- Nem quando não te convido pra entrar?

- Eu vou esquecer daquele dia para o bem da nossa relação.

Ele riu e assentiu.

- Justo.

Mari reuniu coragem para a frase seguinte.

- Seria legal te ver de novo. Eu realmente me diverti muito hoje. Então, se você quiser fazer algo qualquer dia desses, quando não estiver ocupado com o trabalho ou com outra coisa, ou quando não tiver nada melhor da vida pra fazer, você sabe, eu tô bem ali no castelo grandão.

Apesar de estar parecendo se divertir com o óbvio nervosismo dela, Nico também parecia um pouco distante e inseguro, como se não soubesse o que responder.

O instante se estendeu por tanto tempo que Mari estava quase pegando na mão de Alonso e correndo para longe só pra fugir do constrangimento, mas por fim Nico finalmente disse alguma coisa:

- Eu te disse antes que é difícil pra mim ir a lugares que eu não conheço bem.

- Eu sei. Eu não quero te forçar a...

- Não, espera. Não é isso. - Ele suspirou antes de continuar. - A verdade é que não é só difícil na questão lógica da coisa. O problema maior sou eu. Desde que isso aconteceu comigo... - Ele tocou os óculos e não completou a frase. Era óbvia a maneira como parecia lutar com demônios que Mari não conhecia. - Eu me isolei por tanto tempo que nem sei como entrar no mundo de novo.

- Nico, eu não faço ideia pelo que você passou - ela disse, sentindo que aquela não era o tipo de conversa para se ter na soleira de uma porta, mas dizendo as palavras mesmo assim. - Mas eu gostei muito de você. E eu sinceramente acho que ninguém devia viver tão sozinho em uma casa desse tamanho.

- Ela é menor do que o seu castelo.

- Você me entendeu. - Nico sorriu de lado diante do tom ríspido dela, claramente se divertindo. - A gente não precisa ir até a cidade. A gente não precisa se enfiar no meio de multidões. Como duas pessoas isoladas nesse pedacinho de mundo, eu ficaria muito feliz se a gente só tivesse a companhia um do outro de vez em quando.

Ele assentiu devagar, parecendo assimilar com cuidado as palavras dela. O coração de Mari batia acelerado. Ela estava toda nervosa por motivo nenhum. Tinha visto aquele cara duas vezes na vida, mas mesmo assim se importava um pouquinho com ele. E, por se importar, estava mais que disposta a fazê-lo ser menos sozinho.

- Quer caminhar comigo um dia desses? - ele sugeriu depois de um tempo. - Eu sempre saio com o Bidu à noite, mas nós podemos ir mais cedo, aproveitar o calor do sol agora que começou a esfriar.

Mari sorriu amplamente.

- Eu vou adorar. Você pode na terça?

- Perfeito.

- Até lá, então! - Ela se aproximou dele animada, parando um segundo antes só para não pegá-lo desprevenido. - Vou te dar um abraço de despedida, se prepara.

Nico não se preparou. Ele levou um tempinho para entender aquilo, mas antes que ela se afastasse retribuiu o abraço, envolvendo sua cintura de leve.

- Boa noite, Nico.

- Boa noite, Mariella.

- Tchau, Nico! - Alonso se despediu. - Tchau, Bidu!

- Não se esquece de aparecer um dia desses para me ajudar com o banho dele, hein, Alonso?

- Pode deixar comigo, cara!

Nico sorriu e bagunçou o cabelo de Alonso.

- Até mais, carinha.

E juntos os irmãos Cavalieri fizeram seu caminho de volta para o castelo, Mari segurando uma bolsa enorme cheia de garrafas de vinho e um sorriso tão amplo que era até um tanto assustador.

Ela sabia que aquilo era perigoso - estar tão eufórica assim por conta de uma pessoa que mal conhecia -, ainda mais levando em conta a quantidade de coisas que tinha que fazer e administrar, mas, naquele momento, tudo em que ela conseguia pensar era no passeio da semana seguinte.

Nunca uma terça-feira foi tão aguardada em toda a história das terças-feiras.

______________________♥️__________________

Oii, gente!!!

Primeiro, peço desculpas por esse capítulo ENORME! Tinha muita coisa pra acontecer e eu não queria cortar na metade e deixar vocês esperando até o próximo domingo.

Apesar disso, espero que tenham gostado!!! Tiveram uma parte preferida? Eu fiquei toda bobinha escrevendo esse jantar kkkkk

Ah! E como prometido, aqui as imagens do Nico geradas por IA pra ajudar vocês a imaginar ele <3

Vejo vocês na próxima semana!

Um beijo,

Ceci.

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