Darling I'm Ready (to burst i...

By Fernandazinhaa

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''Eu sabia que Milly pensava como eu. Eu falaria que ela tem um beijo escondido no canto da boca, e ela prova... More

Dedicatória
Prólogo
I. Lua-Mar
She's Casual
People watching
Threads of my soul
How does it start?
II. A pirata & A sereia
Memories
Information's here
I wanna save that light
Cupcakes
III. A bruxa & A filha do pastor
Throughout texting
Hidden Kiss
Alumbramento, s.m.
Wine lips
IV. A princesa & A assassina
Don't Cry
Storm
I think there's been a glitch
The letter
V. As cartas
Stay

Oh so sweet

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By Fernandazinhaa

CAPÍTULO 11

DIA UM

Amélia


Just you and I

Getting lost in open spaces

And when you wake

I'll be right there, baby

And when you shake

I'll be shaking with you hun

- John Vincent III


Madrugada

Passamos em casa para eu fazer a mala. Entrei no meu quarto meio esbaforida, mesmo que não estivesse com pressa. O ar parecia estagnado, como se eu estivesse entrando em uma foto: puro movimento contra um mundo em pausa.

Observei em volta, minha mente já processando o que eu precisaria levar, procurando por coisas necessárias.

Nem me incomodei em acender as luzes. Abri o armário e fiquei nas pontas dos pés para pegar a mala de viagem que guardava lá no alto.

Era tarde da noite de uma sexta-feira incomum. Fazia uma semana que eu e Lynn fomos para São Bernardo visitar minha avó. Uma semana que passamos trocando mensagens o tempo inteiro, uma semana que ela aparecia na cafeteria no fim do meu expediente e me dava uma carona para casa. Uma semana, e eu sabia que, se Lynn saísse da minha vida, ela faria falta. Dessas faltas que devoram a gente de dentro pra fora.

Hoje mais cedo eu, Lynn, Bo, Skye, Chloe e Oli saímos para comer depois que fechei a Sweet Blue. Foi como um grande encontro de amigos, onde todo mundo conheceu todo mundo. A própria receita para o caos, mas também uma coisa que eu e Lynn planejamos direitinho para que desse certo.

E deu.

Descobri que Bo e Lynn já se conheciam, o que me deixou meio bugada das ideias. Quando ambos se cumprimentaram feito velhos amigos, deslizei um olhar semicerrado para Bartolomeu, que apenas sorriu de nervosismo. Se a vida como psicólogo desse errado, ele com certeza teria uma carreira garantida como ator na Globo.

As amigas de Lynn, Chloe e Olivia, eram uns amores. Todo mundo se deu muito bem, com exceção de Lynn e Skye. Acho que elas se odeiam secretamente. Motivo? Não identificado. Apenas notei que Skye não foi com a cara de Lynn, e Lynn normalmente não vai com a cara de ninguém, então não tinha como forçar uma interação minimamente amigável entre elas. Procurei deixá-las bem distantes uma da outra. O que funcionou, até certo ponto. Tirando alguns sarcasmos e ironias ocasionais aqui e ali, tudo correu bem.

Comemos, conversamos e rimos aos montes.

Quando eram duas da madrugada, senti o olhar de Lynn sobre mim, então me inclinei na direção dela e perguntei baixinho: ''O quê?''

Lynn aproximou os lábios da minha orelha e me perguntou num sussurro rouco se eu queria sair dali e ir passar o fim de semana com ela em um lugar distante. Me senti do mesmo jeito daquela primeira noite em que ela me chamou para pegar a estrada. Como se algo grande estivesse prestes a mudar. Como se minha vida inteira fosse se girar feito uma chave, prestes a abrir uma porta imensa.

Não perguntei onde e nem como. Não perguntei porquê. Apenas assenti, e ela se levantou da mesa.

"Galera, a conversa tá boa, mas já está tarde..." A loira disse em tom de desculpas. Arregalei os olhos. Seria estranho se fossemos embora primeiro, uma vez que fomos nós duas quem convidamos nossos amigos para a Sweet Blue. ''...e eu e Amélia temos um lugar para estar ainda hoje.''

No silêncio que se seguiu, eu olhei para Skye, e Skye olhou para mim. Ela parecia surpresa, mas não de uma forma ruim, e eu quis sorrir quando malícia pura brilhou nos olhos da minha melhor amiga. Foi coisa de um segundo. Um sorriso discreto e eu soube que, por mais que não fosse com a cara de Lynn, Skye salvaria a ocasião. Para mim, para que eu fosse embora, para que seguisse Lynn onde quer que ela me levasse.

Então foi gratidão que me encheu o coração quando Skye soltou uma gloriosa risada de escárnio e brincou: ''Caramba, se querem tanto ir à um motel assim, podem ir!''

Todos na mesa riram, e logo começaram a conversar sobre experiências desastrosas em motéis enquanto eu e Lynn nos despedimos de cada um com um beijo na bochecha e promessas de um futuro encontro.

Joguei a mala no chão e a abri, logo me agachando para pegar roupas aleatórias das gavetas e as enfiar lá dentro. Corri até o banheiro. Peguei minha escova de dentes, toalhas, shampoo, condicionador, e todos os mil cremes de cabelo que uso, uma vez que meus fios são mais selvagens do que o próprio Tarzan.

Rapidamente, arranquei as roupas desconfortáveis e apertadas que vestia. Coloquei uma calça moletom e uma regata branca. Guardei meu laptop e alguns cadernos em uma bolsa menor. Peguei um agasalho e meu travesseiro. Coloquei a mochila nas costas e lancei um último olhar para o meu quarto antes de fechar a porta.

No silêncio, era quase que possível escutar o palpitar louco do meu coração.

Eu me sentia viva. Acho que era isso o que tomar decisões de última hora causava. Esse martelar no peito sempre me pareceu algo perigoso, pois sempre precedia uma crise de ansiedade, mas toda a agitação que percorria meu corpo parecia certa dessa vez.

Em um borrão, tranquei a porta do apartamento e desci as escadas o mais depressa que consegui. Eu estava sorrindo, e nem sabia por quê. Tudo bem, eu sabia exatamente o porquê. Mas é claro que nunca admitiria para ninguém, nem mesmo a mim mesma.

Era... Divertido. Fazer algo completamente fora do planejado. Eu sentia como se pudesse simplesmente deixar tudo para trás.

E porra, eu podia, não podia? Por dois dias inteiros.

Lynn estava esperando por mim com a barriga colada no carro, os dois braços cruzados apoiados no teto, a cabeça deitada nos mesmos. Ela observava a rua vazia. O ar estava fresco, gostoso. O clima estava perfeito. Fechei o portão, e isso chamou a atenção da loira.

Ela sorriu ao me ver, e eu sorri de volta.

''Pronta?'' perguntou.

''Pronta.'' Assenti.

Entramos no carro. Joguei minhas coisas para o banco de trás conforme ela dava partida, e coloquei o cinto de segurança. ''Lá vamos nós.'' Ela disse, e mordeu o lábio inferior para segurar o sorriso. Eu me sentia nas nuvens toda vez que ela fazia isso.

Sem desviar os olhos da estrada, Lynn ligou o rádio e aumentou o volume. Eu já sabia o que estava por vir. Aquele sentimento. Eu o queria como um viciado que quer drogas.

''Viagens de última hora gritam The lumineers.'' Lynn cantarolou, como se explicasse sua escolha, e apertou o play.

Sleep on the floor começou a tocar.

E o sentimento me alcançou, como eu sabia que sempre faria. Como sempre fez com Lynn quando as rodovias vazias da madrugada pareciam lhe pertencer. Quando o mundo parecia ser dela.

Fechei os olhos e abracei a nostalgia. O gelado no estômago. A sensação de estar fazendo uma loucura e estar gostando disso. Eu podia sentir as rodas do carro contra o asfalto, nos levando para longe, para qualquer lugar. Logo estávamos na estrada, e era tão longa, tão lisa.

Lynn abriu as janelas, e entreabri os olhos, já sentindo lágrimas se formando neles. A paisagem passava em um borrão escuro. O vento batia forte no meu rosto, o massageando. Meus cabelos balançavam. As luzes dos carros e caminhões passando, dos prédios ao longe, dos postes, das lojas, pareciam coisas secundárias.

Nada mais importava; estávamos voando.

''Vamos lá, essa é sua chance de ouro.'' Lynn gritou acima da música. A olhei.

Por um instante, tudo ao meu redor se tornou irrelevante. Era apenas ela ali, no volante. Os cabelos loiros esvoaçantes, os lábios úmidos e avermelhados, a expressão de felicidade.

Lynn percebeu que eu a encarava, e inclinou um pouco a cabeça para me olhar também.

Há algo estranhamente íntimo e especial em momentos como esse. Quando você olha para alguém e tem certeza de que a pessoa está sentindo o mesmo que você. Quando vocês dois sabem que sentir essa sintonia, meu Deus, é algo quase que divino.

Estávamos dentro de um sonho, e não havia botão para pausar. Nós tínhamos que tirar o máximo da experiência. Ali, tudo o que nos restava a fazer era viver. E estávamos vivas. Eu estava viva.

''Joga a cabeça para fora da janela.'' Ela falou ''É uma das coisas mais incríveis que existem''

Assenti.

Lynn aumentou o volume exatamente na parte mais acústica da música. Me sentei na janela e joguei a cabeça para trás, deixando meus cabelos esvoaçarem com a velocidade do carro. Vi a rua passando rapidamente embaixo de mim, as rodas girando e girando e girando, a paisagem passando, eu parada, mas em movimento. Era a sensação mais louca que existia. Era algo que chegava perigosamente perto do conceito de liberdade.

E, ah, a liberdade. Nem mesmo Jesus Cristo poderia me salvar dela.

Quando voltei para dentro do carro, Lynn parecia radiante.

Paramos em um posto no meio da estrada e compramos quase todos os salgadinhos que a lojinha de conveniência vendia, incluindo alguns doces e energéticos gelados. Quando vi, estávamos mais uma vez em movimento, eu sentada de pernas cruzadas com um saco enorme de Doritos, Lynn com uma mão no volante e outra apoiada na janela aberta, o rádio tocando, e mesmo com todos os barulhos, nós conversávamos sobre tudo e nada.

''Existe apenas uma forma certa de comer Doritos'' Eu falei assim que abri o pacote.

''E qual é?'' Lynn perguntou.

Eu apenas segurei todo o conteúdo entre minhas mãos bem abertas, mantendo contato visual com ela, e APERTEI com força. Lynn arregalou os olhos e a boca se abriu em um ''o'' horrorizado.

''Me diz que você não massacrou todos os Doritos?!'' Ela parecia exageradamente desacreditada, o que me fez rir alto.

''Sim eu acabei de massacrar todos os Doritos. Antes, eles eram belos triângulos esquisitos. Agora, estão em caquinhos. E, pelos Deuses, é muito mais gostoso assim'' Peguei um monte deles entre os dedos e coloquei tudo na boca de uma só vez, espalhando um monte de migalhas ao meu redor. Lynn não pareceu se importar. ''E, além disso, '' Falei, de boca cheia. ''É bem mais fácil de mastigar.''

''Certo.'' Lynn segurou o volante com a mão que antes estava apoiada na janela, e com a outra pegou um punhado do salgadinho.

''Segunda regra!'' Falei antes que ela pudesse limpar as mãos no tecido da calça. ''Não pode tirar as migalhas da mão. Até o fim do pacote. Juro, vale a pena no final.''

Lynn me olhou com os olhos entreabertos, como se estivesse tendo dificuldade de enxergar. Ao mesmo tempo, fez um biquinho super fofo, e eu juro que essa foi a expressão facial mais apaixonante que eu já vi na minha vida. Eu quis agarrar aquelas bochechas e beijar cada pequena sarda daquele rosto.

''Okay...'' Ela apenas concordou, incerta, e voltou a olhar para a estrada, segurando o volante de um jeito esquisito.

Em menos de vinte minutos, uma camada grossa de migalhas começou a se formar ao redor dos nossos dedos, e o pacote de Doritos acabou. ''Essa é simplesmente a melhor parte'' Falei. ''É só chupar os dedos!''

Coloquei o dedo indicador dentro da boca e puxei a camada alaranjada que o cobria com os dentes.

Talvez isso fosse apenas um hábito nojento meu, mas eu nunca sentiria vergonha dele. Era simplesmente delicioso. Aquelas migalhas acumuladas e meio úmidas (de suor? Saliva? Não sei dizer) sempre eram tão saborosas.

Lynn pareceu surpresa por um instante, e encarou os próprios dedos gosmentos como se medisse os prós e contras de ceder à minha loucura. Por fim, apenas deu de ombros, e os chupou. Imediatamente os olhos dela se arregalaram um pouco, mas eu só percebi porque a encarava em busca de qualquer resquício de mudança em sua expressão facial, a fim de confirmar minha teoria de que os restos úmidos do Doritos eram terrivelmente deliciosos mesmo. Tinha até mesmo me inclinado um pouco na direção dela, inconscientemente.

''Okay'' Ela disse, assentindo com a cabeça. ''isso aqui é bom.''

Sorri, convencida. ''É, não é?''

''E você é estranha'' Lynn acrescentou, assentindo com a cabeça.

''Sou, não sou?'' Eu franzi as sobrancelhas, também concordando.

Nós duas rimos.

Nas próximas horas, apenas ouvimos músicas e comemos em silêncio. Eu me sentia confortável, e pouco a pouco o sono invadia meu corpo. Vi que já eram quatro e meia da madrugada. Pela primeira vez me perguntei para onde é que Lynn estava me levando, e se estávamos muito longe de chegar lá.

Envolvida em uma nuvem acústica que cheirava a canela, livros velhos, comida industrializada e carro, acabei dormindo.

Acordei com a mão de Lynn apertando suavemente minha coxa, então obviamente foi em um sobressalto de gay panic.

''Eita, calma'' Lynn afastou a mão de mim por reflexo.

''Chegamos?'' Olhei em volta. Só então percebi que o carro estava estacionado.

''Sim, princesa.''

''Você pretende me dizer onde estamos?'' Perguntei.

''Sim. Em algum lugar perto de Olímpia'' Lynn respondeu, e saiu do carro. Decidi sair também.

Estávamos realmente no meio do nada, no que me parecia uma floresta. Bem longe da cidade grande, pois eu podia sentir a qualidade do ar. Meu pulmão parecia respirar melhor pela primeira vez em anos. Havia muitas árvores em volta, e a terra sob meus pés era úmida e escura.

Aos poucos, o céu tomava tons mais claros, destacando a mata ao nosso redor. O cheiro era de plantas, terra molhada e chuva.

''Nós vamos... Acampar ou sei lá?'' Perguntei, meio confusa. Lynn deu a volta no carro e parou ao meu lado. ''Você não me trouxe para o meio do mato para me matar, certo?''

''Você tem tanto medo assim de morrer?''

''Eu não tenho medo de morrer. Tenho medo de ser assassinada. É diferente... ''

''Faz sentido.'' Lynn deu de ombros e colocou as duas mãos quentes nos meus ombros. ''E não, não vamos acampar. Ficaremos ali.'' Ela olhou para trás de mim, e me virei.

Dei de cara com uma pequena cabana toda feita de madeira, não muito longe de nós. ''Ah''

Pegamos nossas malas e andamos até lá. Lynn abriu a porta com facilidade, e entrou primeiro. Jogou as coisas no chão e começou a abrir as janelas. Entrei em seguida, olhando em volta.

Eu estava impressionada, para dizer o mínimo.

Era apenas um cômodo. E, ao contrário do que eu esperava, tudo ali era limpinho, semi novo, e, de alguma forma, sofisticadamente rústico. A decoração era incrível. Tudo combinava, desde os móveis de madeira até as cores e tons de marrom que os detalhavam.

Logo na entrada, havia uma pequena mesinha redonda com duas cadeiras de madeira, em cima de um tapete felpudo branco. Além da mesinha, um pequeno sofá de dois lugares cheio de almofadas que pareciam super macias, também em cima de um tapete felpudo, só que bege. Ao lado do sofá, uma pequena bancada de madeira, que servia de divisória entre um corredor minúsculo e a cozinha. Atrás da bancada, um pequeno balcão com fogão embutido e uma geladeira no canto da parede. De frente para a cozinha, uma grande cama de casal arrumada, com quatro travesseiros de pena e um edredom branco que parecia novinho.

Parando para prestar atenção, tudo ali parecia literalmente novo. Passei a mão pelo edredom que estava estendido na cama, e era macio, como se nunca tivesse sido usado antes. Tudo cheirava à madeira e limpeza e também, de alguma forma, canela.

Perto da cama havia uma lareira. Tinha também uma TV presa na haste principal que ficava no centro da cabana, a qual também era o apoio da bancada. O teto era curvo, de forma que em cima da cama parecia alto, e ia escorregando até onde estava a mesa, ficando mais baixo. A luz do sol adentrava todo o ambiente conforme Lynn abria as janelas, e tudo parecia ainda mais bonito com os tons de verde das árvores espessas do lado de fora.

''Uau'' Foi tudo o que eu consegui dizer.

''Legal, não é?'' Lynn me perguntou, e assenti com a cabeça. ''Vem ver o banheiro''

Ela abriu a única porta que existia na pequena casa, e me aproximei.

A primeira coisa que vi foi uma banheira de hidromassagem. E então um chuveiro que parecia ter aquelas pressões incríveis, com um espelho grandão bem na frente. O sol invadia todo o ambiente, o que achei estranho, pois não tinha nenhuma janela.

Lynn apontou para cima, e levantei o queixo. O teto era de vidro. Meu Deus, o teto era de vidro. Repito: O TETO. ELE ERA DE VIDRO. Dava para ver as árvores altas ao redor da cabana, se estendendo em direção ao céu, agora limpo e sem nuvens. As folhas faziam desenhos bonitos nas paredes.

Eu estava sem palavras.

''Acho que tem um lago em algum lugar por aqui'' Lynn disse, e voltou para a sala. ''Podemos encontrá-lo. E tem uma sauna lá fora. Fica super frio à noite e é incrível ficar lá dentro no quentinho.''

''Essa cabana é sua?'' Perguntei.

''Sim'' Lynn respondeu.

''Por quê você tipo... Não mora aqui?''

''Você me quer afastada da sociedade, Amélia Rae Deleon?'' Lynn ergueu uma sobrancelha.

''Qual é, é sério.''

''Não moro aqui porque não está sobre quatro rodas. Qual a graça de morar em um lugar parado?''

''Eu realmente tenho que responder essa pergunta?''

Lynn suspirou.

''Acho que essa já é uma resposta. Veja, podemos descansar ou... Procurar o lago e aproveitar o sol da manhã. O que você prefere?''

Agradeci aos céus pela mudança súbita de assunto. ''Não estou cansada. Mas se você estiver, nós podemos ficar por aqui mesmo e...''

''Vamos ao lago então'' Ela me cortou, e assenti.

Chequei o horário no celular. Seis da manhã. Trocamos de roupas e fomos à procura do tal lago. Andamos por entre árvores pelo que me pareceu uns trinta minutos inteiros, e então... Lá estava ele. Radiante como uma visão no deserto.

Existem lugares que nós não acreditamos serem reais, não de verdade, até estarem bem à nossa frente.

A água era clara, cristalina, e refletia o sol e as árvores ao entorno como um espelho. Era possível enxergar pequenas ondulações brilhantes, como uma dessas fotos que a gente só encontra no Pinterest. O píer ia até o centro do lago, e ao chegar na ponta, pude visualizar alguns poucos peixinhos nadando no transparente. No fundo havia incontáveis pedras de diversos tamanhos, lisas, a maioria em tons de bege, marrom, e cinza escuro.

Era uma espécie de esconderijo. Um lugar onde ninfas tomavam banho, ou qualquer coisa desse tipo. Tão lindo, limpo e claro, que por um instante me pareceu difícil respirar.

Olhei para Lynn, e ela me olhava.

''Acho que esse é um dos lugares mais bonitos que já vi na minha vida'' Confidenciei.

Lynn assentiu. ''Talvez seja. Você nunca saiu de São Paulo, não é?''

''Nunca''

'''Então definitivamente é. Vamos nadar, sim ou sim?''


*


Tínhamos um dia todo pela frente.

Nadamos e nadamos e nadamos. Quando cansamos, nos sentamos na beirada do píer, pingando água doce. Eu, de perninha de índio e Lynn, agarrada as próprias pernas, observando o lago. O sol aquecia minha pele e me passava a sensação de estar embaixo de um cobertor quentinho.

Começamos a conversar e em certo momento Lynn me perguntou como funcionava a minha escrita. Então respondi:

''Minha escrita acontece em picos de energia, o que não é bom. Eu gostaria de ser como Stephen King ou Julia Cameron. Eles têm o hábito da escrita. Uma vez, li em alguma entrevista do King, que ele escreve cerca de cinco mil palavras por dia, e meu Deus, que inveja. Se eu escrevesse essa quantidade por dia, teria mais de três livros publicados a essa altura. E Julia Cameron tem esse curso chamado O caminho do artista, onde ela meio que ensina a criar o hábito da escrita ao preencher três páginas matinais todas as manhãs. Lógico que eu tentei fazer, mas o meu sono me torna completamente incapaz de acordar trinta minutos mais cedo para escrever à mão um monte de baboseiras. Desculpa, Julia Cameron, eu simplesmente não consigo.''

''Tenho certeza de que a Julia Cameron te diria para mudar o seu vocabulário e parar de dizer que não consegue coisas'' Lynn disse, e eu dei risada.

''Com toda a certeza do mundo. Mas enfim, às vezes eu gosto de escrever como se fosse uma espécie de ritual. Eu faço um achocolatado batido com gelo, acendo uma vela, sento de pernas cruzadas na minha cadeira e começo a digitar. Mas também tem situações em que tudo funciona de forma apressada, antes que a inspiração e a criatividade me fujam, e eu literalmente corro para qualquer coisa em que eu possa registrar minhas palavras antes que eu as perca de vista, e escrevo tudo errado, pois a adrenalina do momento não me permite parar para pensar em gramática. Acho que são os meus momentos preferidos. É como uma urgência, algo que não consigo controlar. Quase como se alguém estivesse sussurrando no pé do meu ouvido a história que está dentro da minha cabeça, de uma forma que dê para eu jogar no papel. Seria loucura se eu dissesse que acredito ser o Universo?''

''Não, na verdade faria sentido. Seria como se você fosse uma espécie de... Canal, ou algo do tipo. Um canal para a criatividade. Você acredita nisso? Digo, que seja apenas um instrumento para registrar algo maior?''

Assenti com a cabeça ''Sim. Gosto que seja assim. E não me importo de dividir minhas obras com o Universo. É graças a ele que fiz tudo o que fiz. Ele me passa a criatividade Dele, entende?''

''Você fala do Universo como se ele fosse Deus'' Lynn observou.

''Talvez seja'' Dei de ombros.

''Então você não acredita em Deus?''

''Não.'' Respondi com simplicidade. ''Mas acho que o Universo pode assumir essa forma de Grande Criador se quiser. Você acredita em Deus?''

''Acho que sim.'' Lynn respondeu, e olhou para o nada. ''Eu curto a ideia de ter um cara imenso que ninguém nunca viu, liderando tudo e cuidando do mundo. Mas acho que o nome dele foi muito corrompido com o passar dos anos. Ninguém mais consegue enxergar a essência da existência dele. Quando pensamos em Deus, meio que automaticamente pensamos em religião, ou na Bíblia. Gosto de pensar nele sem todas essas amarras. Apenas um cara bom que criou o mundo e cuida da gente, sem todo o peso que os humanos colocaram nesse conceito. Sabe?''

''Entendi. Olha só isso'' Gesticulei com as mãos, o que fez com que Lynn olhasse para mim com aqueles olhos claros, intencionais. ''Uma vez eu li em algum lugar que, se não há mudança, não há tempo. Então a única coisa que quebra completamente esse conceito criado de tempo, é a estagnação. Quando tudo é igual... Bem. O tempo para. É como uma fenda no espaço onde nada vai para frente, nem para trás, e tudo apenas... Continua o mesmo, para sempre. O quão assustadora é essa possibilidade? Nós precisamos da mudança. Morreríamos se ela não existisse, de tédio ou de inércia, não sei dizer. Seria insuportável. E é muito louco pensar que o Universo, com seus conceitos de tempo e mudança, nos empurra para frente. Não é opcional. Não podemos voltar atrás. Isso pode ser tão bom quanto ruim, mas nos faz notar o fluxo das coisas. Tudo pode ondular e dar voltas, mas o tempo passa, e com ele vem a mudança, e não nos resta escolha a não ser a evolução. Tipo... Olha só o caminho da humanidade, né? Vê como uma criança cresce, ou mesmo uma flor desabrocha. Está fazendo sentido?''

Lynn assentiu, quieta. Continuei.

''Estamos fadados ao fim, mesmo depois de tantos inícios. A vida segue e temos que ir junto. E, okay, agora eu chego na parte importante, juro que não tagarelei tudo isso à toa, veja só isso: se algo está sujeito à mudança, esse algo não é perfeito. Mas também sabemos que a perfeição é inalcançável. O único ser que supostamente é perfeito é...''

''Deus.'' Lynn completou minha fala com um sussurro, e fiz que sim com a cabeça. Ela endireitou a postura. ''Faz sentido. E isso meio que explicaria o fato dele ser imutável, né? Tipo, podem se passar Éons, Eras, Períodos, Épocas e Idades... Segundo a Bíblia, Deus continua o mesmo. Ele é imutável. Ele não precisa de mudanças. Portanto, ele é perfeito.'' A loira completou minha linha de raciocínio, o que me arrancou um sorriso do rosto.

Involuntário. Real. Genuíno.

''Então, é.'' Finalizei, voltando ao que estávamos falando. ''Talvez ele realmente exista.''

Silêncio.

''Você acha que Deus cuida de você?'' Perguntei, torcendo secretamente para que Lynn me desse mais qualquer migalha sobre seu passado. Eu sabia que ela era órfã, e passou por coisas difíceis. Eu sabia da infância traumática, dos tantos lares adotivos, das inimizades com as outras crianças. Mas sempre que ela falava sobre, era bem por cima. A única memória que ela me contou com muitos detalhes foi de como se descobriu. De resto... Nada. E eu queria mais.

''Eu... Acho que cuidar é uma palavra muito forte. Ele me assiste, e não me deixa morrer, o que já é o suficiente. Você acha que o Universo cuida de você?''

''Sim.'' Respondo. ''Acho que ele realmente está aí para mim. Antes eu não pensava assim, até começar a entrar nos papos dessa tal Julia Cameron. Ela só fala disso.''

Lynn riu. ''Eu amo que você fala dela como se fossem amigas próximas''

''E quem disse que não somos?'' Brinquei. ''Tomamos chá da tarde todos os sábados, okay?''

Lynn fez que não com a cabeça e segurou um sorriso. ''Hey, okay. Você me falou de como é sua escrita. Mas agora me fala mais do seu processo criativo...''

E eu falei. Falei de como gosto de colar duas folhas sulfite e fazer um grande mapa de personagens para não me perder, e sobre como, antes de começar um grande projeto, sempre compro um pequeno caderno destinado apenas à organização da história. Falei que gosto de ter uma música base para cada capítulo, e também falei que talvez eu gaste mais tempo montando playlists e procurando por referências no Pinterest do que escrevendo de fato. Confessei que talvez isso seja apenas uma forma de procrastinação, mas muitas vezes faz eu conhecer melhor meus personagens, e saber mais do que se passa dentro da cabeça deles.

Lynn pareceu desacreditada quando eu disse que chegava a fazer testes de personalidade na internet, respondendo em nome de algum personagem, como se eu fosse atriz e eles fossem o meu papel. Falei que existiam dias em que eu passava horas e mais horas para escrever uma única cena, mas também havia dias em que eu conseguia escrever um capítulo inteirinho em uma hora ou menos, pois minha escrita pode ser devagar e cuidadosa, mas também tão rápida e obsessiva quanto meus próprios pensamentos. E, sim. Sim, eu amo isso.

''Você sabe aquele filme da Disney dirigido por Pete Docter, Soul? Onde tipo, tem um cara que é professor de música e ele tem essa conexão especial com o piano e então ele morre e acaba indo para o mundo espiritual?'' Lynn me perguntou.

''Sei'' Confirmei, não sabendo direito onde ela queria chegar com isso.

''Não tem aquela cena onde as pessoas que estão vivas na Terra aparecem no mundo espiritual meio que sem nem perceberem, por estarem fazendo algo que amam? Tipo, tocando algum instrumento, ou cantando, ou jogando. Elas ficam tão... Tão dentro da própria atividade que acabam transcendendo ou algo assim.''

''Sim, sim. Sei que cena é essa. Mas qual o ponto?''

''Você acha que a escrita te faz transcender?'' Lynn perguntou, me olhando no fundo dos olhos, e pela primeira vez em toda a minha vida alguém conseguiu me explicar o que acontecia comigo quando eu estava imersa na minha escrita.

Meu coração bateu mais forte, de uma forma que eu nunca senti antes, de uma forma que eu não conseguiria explicar nem se quisesse.

''Sim. Lynn, sim. É exatamente assim que eu me sinto.'' Falei, e coloquei as duas mãos nos ombros dela, a chacoalhando. ''Meu Deus, essa é a sensação!''

Lynn riu, e a soltei. O silêncio se estendeu entre nós duas, mas não era desconfortável. Eu estava feliz. Lynn parecia feliz também. Observei a paisagem. O sol subia lentamente até o topo do céu. O cheiro era de árvores e protetor solar e natureza. Eu me sentia em uma cena de filme. Olhei para Lynn, e ela parecia pensativa.

''O quê te faz transcender, Lynn?''

A loira me olhou ligeiramente surpresa, como se não esperasse por essa pergunta. Seus fios pareciam brancos ao refletirem a luz do sol. Notei como ela piscou duas vezes, pensando a respeito, e então olhou para o lago. ''Música'' Disse, por fim. Apenas uma palavra, mas eu entendi.

Desde que a conheci, percebi que Lynn tem essa coisa com a música. Ela era o tipo de pessoa que se deixava levar por uma melodia, e que podia sentir as notas dentro do coração. Era uma coisa bonita que talvez eu nunca fosse entender, pois a minha sensibilidade era a escrita, e a dela era a música, e ambas as coisas nos deixam vulneráveis de formas diferentes, mas talvez parecidas.

''Eu sei que essa pergunta é um crime. Mas vou fazê-la, e torcer para que você não me mate'' Falei. ''Você tem músicas favoritas?''

Lynn me encarou. Ela sempre parecia tão séria, mas ao mesmo tempo tão calma. ''Você tem palavras favoritas?'' Rebateu.

Umedeci os lábios. Jogo baixo. Lynn era expert em rebater perguntas, como se fossem uma bola de tênis e ela tivesse uma super raquete.

''Tenho'' Respondi, pois era verdade.

''Me fale todas as suas palavras favoritas, Milly, e eu te mostrarei todas as minhas músicas favoritas. Assim, amanhã você me mostrará seus textos, e eu, meus musicais.''

Eu nem tinha respondido ainda, mas já me sentia exposta, quase como se Lynn tivesse me pedido para tirar as roupas e ficar completamente nua na frente dela. Falar minhas palavras preferidas, mostrar as coisas que eu escrevo... Por algum motivo, isso me soava como um nível de nudez diferente. Mais... Privado. Quase como se ao fazer isso eu desse entrada para que Lynn pudesse ir descamando tecido por tecido do meu corpo, até chegar aos ossos.

Tirar minhas roupas sempre me pareceu mais fácil do que mostrar o que há embaixo da camada da pele.

Será que ela tinha noção do que estava propondo?

Daqui a pouco, a terei tatuada na ponta do dedo, e decorada na minha mente. Daqui a pouco, saberei tudo o que se há para saber dela, e ela de mim, mas mesmo assim ela parece guardar tantos segredos... Será que ela quer que eu os descubra, mesmo que de forma indireta? Será que esse foi o jeito que Lynn encontrou de me mostrar o seu todo, incluindo seu passado, sem precisar adentrá-lo sozinha?

Descruzei minhas pernas, ajeitei a toalha na madeira envelhecida abaixo de mim, e deixei minhas costas repousarem ali, cobrindo os olhos com uma mão para conseguir enxergar. O sol estava muito forte. Talvez já fosse meio dia. Eu me sentia aquecida e confortável, mas um medo crescente se instalou na base do meu peito, silencioso, quieto.

Apesar disso, eu sabia que podia ser honesta com ela. Sobre tudo, sobre qualquer coisa. Então engoli todo o meu medo de ser incompreendida. E falei.

''Minhas palavras preferidas são textura, plenilúnios e inefabilidade. Ou talvez, sejam as mais bonitas que consigo pensar agora, e por isso eu as disse. Meu gosto por palavras é completamente mutável.''

''Assim como o meu por músicas. Mas o que é um plenilúnio?''

''É o estado da lua quando ela tem luminosidade total''

''E o que é inefabilidade?''

''Seria algo indescritível de tão perfeito que é. Algo quase que divino, talvez.''

Lynn me encarou como se fosse dizer alguma coisa, mas se segurou. A assisti conforme ela desviava o olhar e respirava fundo, apreciando aqueles traços delicados de seu rosto. Até que mais uma vez olhos heterocromáticos se direcionaram para mim. Frios. Cortantes. ''O quê você acha da palavra amor?''

''O quê tem ela?'' Indaguei, não conseguindo esconder minha surpresa.

Lynn se deitou ao meu lado. Agora nós duas olhávamos um céu claro e sem nuvens. ''Não é bonita?''

''Está desgastada'' Fui sincera.

''Desgastada o suficiente para perder o significado?''

''Acho que sim.''

''Mas e quanto à essência?''

''A essência permanece, acho.''

''Não sei se isso me assusta ou alivia. Será que um dia o amor perderá a essência?'' Por um décimo de segundo, Lynn pareceu preocupada. Não sei. Talvez tenha sido algo em seu tom de voz, ou na expressão fria.

''É impossível.'' Lhe assegurei. ''Enquanto existir a arte, existirá o amor, e vice e versa. São duas coisas que nunca perderão a essência.''

Lynn me encarou de canto. ''Seria inapropriado eu dizer que você fica absurdamente sexy filosofando? E falando palavras grandes?''

Segurei o sorriso, sentindo o sangue correr para as minhas bochechas.

''Seria um pouco, mas como estamos só nós duas aqui, eu te dou um desconto'' Brinquei, e então a olhei. ''E, meio que eu fiz faculdade de filosofia justamente para ouvir coisas assim, então tudo bem.''

''Me diz algo que Shakespeare disse, algo sobre música.''

É óbvio que eu tinha mil e uma frases de Shakespeare decoradas. É óbvio que eu já disse isso para Lynn por mensagem e é óbvio, como não seria, que ela guardou a informação para si, e a estava tirando do bolso agora. O quão ridículo era eu ter uma frase de Shakespeare na ponta da língua? Por isso que eu não tinha muitos amigos na escola. Passava horas e horas com o rosto enfiado em livros de filosofia e sociologia, decorando frases sem nenhum motivo em especial, só porque sim.

''Hello-o? Terra chamando Amélia'' Lynn estalou os dedos no meu rosto. ''Por favor pare de se odiar por entender poesia e só me diga a frase na qual pensou. Porque eu tenho certeza que você pensou em uma.''

''(...) Se a música é o alimento do amor, não parem de tocar.'' Citei, e Lynn ficou em silêncio. Apenas se sentou mais uma vez, cruzou as pernas e assentiu com a cabeça como se eu tivesse perguntando se ela estava bem e essa fosse sua resposta.

''Tem um fone no bolso da minha bolsa'' Falou, apontando para trás de mim. ''Pega para mim. Vou te mostrar minhas três músicas favoritas.''

Eu me sentei e procurei pelo fone até o encontrar. O tirei da bolsa e o dei para Lynn, que logo sacou o celular e encaixou o fio no plug. Em seguida, se aproximou de mim, de forma que estávamos cara a cara, ambas sentadas de pernas cruzadas no píer, nossos joelhos se tocando.

Pensei que fossemos dividir os fones, mas ela encaixou os dois nos meus ouvidos como se dissesse que aquela experiência tinha que ser só minha e de mais ninguém.

Observei todos os seus movimentos, sentindo o cheiro de protetor solar e água doce misturados à canela que emanava dela, o qual me cercava como uma aura.

''Okay'' Ela disse ''Eu vou precisar que você feche os olhos agora''

''O quê?'' Fiz careta. ''Não''

''Só feche os olhos, Amélia''

Obedeci, meio contrariada. Eu sabia que Lynn me analisaria enquanto eu estivesse de olhos fechados, e por algum motivo não gostei da ideia de ser observada e não observar de volta.

''Vai estar alto, okay? Tem que estar. Mantenha os olhos fechados e... Ouça isso. Essa se chama i'll make love to you, do Thomas Doherty''

A primeira música me transportou para uma noite fria no centro de Nova York.

Me vi entrando em um desses bares que ficam no subsolo, descendo as escadas iluminadas por luzes avermelhadas e então passando por uma porta, dando de cara com um monte de pessoas desconhecidas. Coloquei as mãos nos bolsos da minha jaqueta de couro. Era como se eu fosse uma câmera e me assistisse. Eu estava diferente. Meus cabelos estavam presos em duas tranças embutidas, e eu usava lápis de olhos bem escuros. Não conhecia ninguém ali, e ninguém me conhecia também, mas eu tinha um propósito. O propósito cantava em cima do palco com uma paixão que eu nunca vi em ninguém, agarrando o microfone como se disso lhe dependesse a vida. Ela tinha os cabelos curtinhos acima do ombro, lisos e loiros. Os olhos estavam fechados. A voz era espetacular, a música era derramada de sua boca como vinho em uma taça. Ela abriu os olhos e me viu, e sorri, e então nós tivemos esse momento onde eu me senti ninada pela melodia, hipnotizada pela visão dela, daquela mulher, que cantava com a alma. O local estava escuro, e havia uma única luz vinda de trás do palco, fazendo com que ela parecesse uma espécie de visão divina ou algo do tipo. Lynn cantava de forma sexy, sedenta e profunda. Sua voz era rouca, afinada, e cheia de sentimentos. Ali, naquele bar sujo e escondido, nascia uma estrela. Eu sabia que a fama a aguardava. Eu sabia que estaria lá, atrás de cada palco, assistindo ela brilhar.

Quando a música acabou, abri os olhos. Lynn me olhava atentamente, esperando eu dizer alguma coisa. Foi estranho voltar a paisagem do lago, com o sol brilhando forte acima de nós e esse novo sentimento desperto dentro de mim, nostálgico, como se eu tivesse sido acordada de uma vida passada.

''Acho que tenho o péssimo hábito de transformar tudo em histórias. Acabei de entrar em um cenário completamente louco, e a música era... Perfeita. É perfeita.''

Lynn sorriu. ''Tem gente que, ao ouvir músicas, vê cores ou sente cheiros. Se chama sinestesia. Acontece quando nossos sentidos se misturam. Você adentra cenários, e isso é incrível. Vou tocar a próxima. Coastline, do Hollow Coves''

Assenti, e fechei os olhos. Ela apertou o play.

Logo no início, eu já pensei em uma cachoeira.

E então, o violão começou a tocar, e me senti em uma viagem de carro pela manhã. Estava sol, e o automóvel se movimentava rápido o suficiente para balançar meus cabelos, mas não para a paisagem passar em um borrão. Eu via tudo. Sentia o sol lambendo meu rosto, e a rua à nossa frente. Nosso carro era como um pincel cuidadoso deslizando por uma tela, a tela sendo o asfalto logo abaixo de mim. Ao olhar para o lado, lá estava Lynn, dirigindo. A paisagem era o deserto. Areia para todos os lados, até a linha do horizonte. Não sei para onde estávamos indo, mas visualizei flashes de memória dessas viagens. Nossas viagens. Nós duas, dormindo perto do mar, ouvindo as ondas e sentindo o sal grudado nos nossos corpos. Nós duas, correndo pela areia, rindo, e então era noite e montamos uma fogueira. Nossas mãos em conjunto, a pele dela contra a minha, nossos rostos iluminados pela lua e pelo fogo, e então nós duas em um beijo carinhoso. Era só a gente, e o resto do mundo estava vazio. Quase como um sonho. Um carro cheio de bagagens, estávamos de mudança. Ela me olhando ao acordar pela manhã, e então nós dançando no meio da rua. Nós descobrindo uma cachoeira, desbravando a natureza, assaltando uma loja de conveniência, brindando a leveza em um bar. Vi os mesmos olhos distintos em vários cenários diferentes.

E então a música acabou.

Abri os olhos e lá estavam eles outra vez, mais claros do que nunca.

Me perguntei se ainda estava de olhos fechados, dentro da história que acabei de criar na minha própria cabeça. O toque de Lynn no meu joelho me provou que não.

''Eu acho que poderia ouvir suas músicas pelo resto da eternidade'' Comentei, e ela sorriu com os lábios fechados.

''Não seria uma boa. As suas histórias nunca seriam escritas, e isso seria um desastre para a humanidade''

Eu ri, mas sentia medo. Lynn estava em todas as minhas vidas imaginárias. Eu me via primeiro, e então, lá estava ela, me fazendo sentir coisas. Eu deveria me preocupar? Eu deveria achar estranho que, todas as vezes que fechava meus olhos, era ela quem eu enxergava?

''Deixei a melhor para o final. Essa se chama I could fight on wall, do Aquilo. É o tipo de música que eu ouço com cuidado porque desperta muitos sentimentos em mim. Espero que o seu cérebro exploda da melhor maneira possível, pois eu sei que o meu explodiu.''

Fechei os olhos. Ela apertou o play.

Não consegui pensar em nada no começo, pois estava ocupada demais notando todos os detalhes e sons da introdução. E então, uma calmaria imensa me invadiu, ao mesmo tempo que uma brisa gelada no meu estômago, refrescante e forte, como um sopro de menta. Quis chorar. As lágrimas se acumularam nos meus olhos fechados, quentes, queimando. A música era como uma grande epifania. Um mundo inteiro novo dentro do meu cérebro. A melodia fazia o meu coração bater mais devagar, meus ombros relaxarem. Ao mesmo tempo que roubava meu ar, fazia uma ventania perpassar todo o meu corpo, gelada e forte, me limpando de dentro para fora. Era a melhor coisa que eu já tinha ouvido até o momento, o tipo de música que eu colocaria em uma playlist chamada ''Ouvir com cuidado'', pois como Lynn disse, desbloqueava muitos sentimentos de uma só vez, todos arrebatadores, em um sopro de dopamina. Era poderoso. Perigoso. Bom demais.

A música acabou, e quando eu abri os olhos, lágrimas e mais lágrimas caiam descontroladamente do que veio a ser eu. Não eram de tristeza. Eram apenas... De emoção. Como se a música tivesse me feito transbordar. Lynn aproximou o rosto do meu e colocou uma mão na minha bochecha, a palma gelada contra minha pele quente como fogo. Ela deslizou o dedão pela minha pele para limpar as lágrimas, e me olhou com preocupação e sinceridade, como se soubesse exatamente o que tinha feito comigo, e sentisse muito por isso. Eu engoli em seco e a olhei de volta, dizendo que não tinha pelo que se desculpar, pois tudo o que ela fez foi me encher de vida.

Ela era um pedido de desculpas silencioso e eu era um sussurro de não há com o que se preocupar.

E então, Lynn deslizou a mão da minha bochecha para a minha nuca. Senti seus dedos entre os fios da minha raiz.

Foi quando ela me beijou.

E, tudo o que eu consegui pensar foi:

Uau.

E em seguida:

É por isso que eu sou gay.

E então, novamente:

Uau.

Nossos lábios permaneceram colados por segundos intermináveis antes de eu reagir, e me inclinar sobre ela, jogando o meu rosto para o lado de forma que nossas bocas deslizassem uma contra a outra. Eu sentia tudo. A mão dela na minha coxa, a outra na parte de trás do meu pescoço. Os restos da música que ainda dançavam no meu estômago, e o palpitar do meu coração, cada vez mais forte.

Foi doce. Doce, suave, e quente, e molhado, e me fez sentir o dobro do que todas as músicas instrumentais mais emotivas do mundo poderiam me fazer sentir. Se aquele beijo tivesse cor, eu diria que foi uma explosão de amarelo e vermelho. Se fosse uma música, eu diria que foi parecido com a que acabei de ouvir. Se fosse um livro, seria daqueles que se devora de uma só vez, em que o olhar desliza sob a página, ávido. Mas foi um beijo, então eu diria que foi o melhor beijo da minha vida.

Me perguntei por que não a beijei antes. Como eu pude cometer essa atrocidade que era meus lábios longe dos dela? Eles se encaixavam tão bem.

Ela tinha um gosto dela, lírio e canela, drink de café: Inebriante.

Será que Lynn podia ouvir as batidas do meu coração? Será que ela conseguia sentir na minha boca o tanto que eu a queria?

Nos afastamos só para nos beijar novamente.

E então de novo, e de novo, e de novo. 

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