Uma vez, antes de eu morrer, minha sala no Colégio Católico Padre Andersen foi obrigada a fazer uma apresentação histórica de Roma, desde sua fundação até o fim do Império e a cidade nos dias atuais. Meu grupo e eu fizemos sobre a Roma atual, contudo eu não me lembrava de acidade ser murada. Ainda mais com muros tão altos como esses que cercavam a cidade. Havia também centenas de torres, onde arcanjos faziam guarda.
– Magia dos anjos. – Sara disse notando minha perplexidade com o muro.
– Eles criaram esse muro em apenas alguns dias. É impressionante. – Respondi.
– Eles são, realmente. Estou aqui a mais de três mil anos, mas ainda não me acostumei com todas as coisas que Ele pode fazer através dos servos.
– Ele nunca faz as coisas diretamente, não é?
– Sim, Ele faz. Mas nem sempre o que Ele está fazendo envolve o Paraíso ou a Terra.
– Com o que Ele está sempre tão ocupado?
– Infelizmente, não sei dizer.
Nós entramos em um túnel ao pé do muro, que era guardado por dois arcanjos, um de cada lado. Fomos obrigados a parar três vezes devido aos poderosos portões de ferro que dificultavam a entrada de Filhos na cidade. Estacionamos na primeira estação, onde dois anjos nos aguardavam. Abraão e Sara desceram primeiro, eu estava logo atrás. Assim que os dois colocaram os pés na plataforma, os anjos se curvaram em reverência aos dois, como se fossem rei e rainha. Criaturas tão magníficas, belas e poderosas como anjos se curvando diante da imperfeição humana. Eu simplesmente não podia entender o porquê.
Despedimo-nos do idoso casal.
Decidimos passar o dia na cidade, conhecer o lugar, alguns pontos turísticos e relaxar um pouco; esquecer da guerra que acontecia do lado de fora daqueles muros imensos. Encontramos um restaurante a poucos quarteirões de onde estávamos.
Sentamos em uma mesa na varanda do lado de fora do restaurante e conversamos por um tempo sobre onde estávamos indo, sobre os planos e sobre o que acontecera até aquele momento. Perguntei para Thais a razão dela ainda estar indo conosco naquela viagem bizarra. Ela disse que não sabia, que tudo acontecera muito rápido, e que quando percebeu já estava naquele barco. Entretanto, notei algo estranho no jeito como falou, como se estivesse falando apenas parte da verdade; percebi que ela escondia algo. Resolvi não a pressionar, talvez não fosse algo tão importante assim.
Notei uma garota que andava para lá e para cá com pressa; ela tinha um papel em mãos e um avental amarrado à cintura. Era a garçonete. Até então, aquilo era normal: uma simples garçonete de um restaurante italiano na Itália. A questão era que ela, simplesmente, ao me perguntar qual era o meu pedido, fez meu coração acelerar como ele acelerou a primeira vez que saí em um encontro com Elena, anos atrás. Havia algo a mais. Aquela garota era estranhamente familiar.
Ela olhou diretamente nos meus olhos. Seus olhos eram castanhos como os meus, mas tão intensos que pareciam ler minha alma. O cabelo preto dela estava preso num coque coberto com uma cestinha, para evitar que caísse na comida.
– Eu... Hã... Que... Hã... – As palavras não saiam da minha boca.
– Uma pizza de mozzarella e uma coca grandes, por gentileza. – Thais interveio, pude jurar que senti certo tom de... Ciúmes?
A moça sorriu e saiu. Eu nem ao menos sabia o seu nome. Thais me olhava como se quisesse me matar. Týr ria, mas eu não tinha certeza de que. Era como se elas tivessem um segredo, o qual eu desconhecia. Meia hora mais tarde, quando meu estômago estava praticamente comendo a si mesmo, a pizza chegou acompanhada do refrigerante.
– Obrigado. – Consegui dizer sem gaguejar.
– De nada, gatinho. – Ela respondeu com um sorriso.
Meu coração estava apostando uma corrida de Fórmula 1.E estava ganhando.
Comemos a pizza sem dificuldades. Týr, por incrível que pareça, comeu dois pedaços, Thais comeu o mesmo, o resto ficou por minha conta. Tomamos também todo o refrigerante. Ficamos pelo menos duas horas naquele restaurante, comendo e simplesmente olhando preguiçosamente o movimento de pessoas, ou melhor, elas olhavam o movimento. Eu não conseguia tirar os olhos da garçonete, cujo nome eu ainda não sabia. Ela andava de uma mesa a outra, atendendo pessoas, anotando, carregando bandejas e sempre sorrindo, como se adorasse aquele trabalho, o que provavelmente era verdade, pois ninguém no Paraíso trabalhava em algo que não gostasse. Será que ela chamava todos de gatinho? Provavelmente. Deveria ser um hábito dela, não devia significar nada. Mas ainda assim, como uma palavra comum como aquela, do meu dia-a-dia de quando estava vivo, fez meu coração acelerar tanto?
A ideia me veio à mente como um tiro.
Ela era brasileira, claro. Ela não parecia nem um pouco italiana ou europeia. Eu não sei como os outros consumidores conseguiam parar de olhar para ela. Para mim, era impossível! Era porque eu me lembrava, por isso não podia desviar os olhos. Era a malícia mundana. Bem, que fosse. Eu tinha que conhecê-la, tinha que ao menos saber seu nome.
Levantei, mas sentei de novo. Fazia muito tempo que eu não me interessava por alguém como por essa garota. Namorava Elena desde o ensino médio.
Elena.
Como pude me esquecer dela apenas por ver uma garota excepcionalmente linda como aquela? Ok... Pare. Você tem uma namorada, disse a mim mesmo, e você fez uma promessa, não se distraia. Os olhos dela cruzaram com os meus, ela sorriu. Merda. Pense em Elena, que agora deve estar sendo assediada por algum daqueles moleques desgraçados da faculdade. E agora que estava solteira, com certeza ela estava se deixando levar por um deles, a fim de me esquecer. Eu senti raiva de uma forma como nunca senti antes. E da raiva veio a coragem. Ela entrou no restaurante.
Esperei ela sair.
Tentei conversar com Thais, mas por alguma razão ela me respondia de forma vaga, como se estivesse com raiva. Ignorei. Týr ria, eu ainda não sabia o motivo, mas também a ignorei. Poucos minutos se passaram e ela saiu com uma bandeja cheia com copos cheios de sucos coloridos. Ela era linda demais, algo como nunca tinha visto antes. Ou talvez tivesse?
Ela veio até a nossa a mesa e, antes que chegasse, Thais levantou e saiu. Por que será que ela estava agindo tão estranhamente daquela forma?
– Vocês vão querer mais alguma coisa? – A garota perguntou, eu mal pude acreditar o quão doce era sua voz.
Busquei minha voz no fundo da garganta.
– Não, obrigado. – Eu estava tentando ao máximo me controlar; ela sorriu, eu sentia minhas pernas tremerem. – Você não é daqui, é?
– É tão obvio assim? – Ela deu uma risadinha.
– Você não tem cara de italiana.
Ela franziu a testa, como se eu estivesse falando uma língua estranha.
– O que é "italiana"? – Aqui as nações existiam, mas não os povos, em outras palavras, todos eram cidadãos do mundo.
– Nada. Qual seu nome?
– Lana.
– Muito prazer, sou Leonard. Então... Hã... Que horas termina seu expediente?
Ela me olhou como se ouvisse aquela pergunta um milhão de vezes por dia. Eu não tinha a menor chance de ela aceitar sair em um encontro comigo. Eu não devia ter perguntado; estava na cara o que eu queria, por isso nunca aceitaria. Senti vontade de me enfiar na terra e nunca mais sair. Nunca, nem em um milhão de anos, ela iria dizer sim.
Para minha surpresa, ela sorriu e seus olhos brilharam.
– Saio às seis.
– Então, eu cheguei agora na cidade e não conheço muita coisa. E você... Bem... Podia me mostrar por ai.
– Será um prazer. As seis aqui então?
– Combinado.
Ela se virou e entrou, mantive meus olhos nela até ela entrar no restaurante.
Thaisvoltou para a mesa com a cara emburrada, eu não sabia dizer o motivo. Nóssaímos de lá e encontramos uma pousada na mesma rua, onde pedimos dois quartos– ou melhor, Thais exigiu que fossem dois dessa vez. Deitei na cama e tenteidormir; ainda era uma hora da tarde, viajar sentado naquele trem durante horasfoi bem cansativo. Eu dormi. Meu sonho foi divido em duas partes: uma com Elenae outra com Lana. Eu não acreditava que sonhos tinham significados, masesperava que esse não significasse que eu estivesse divido.