Darling I'm Ready (to burst i...

By Fernandazinhaa

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''Eu sabia que Milly pensava como eu. Eu falaria que ela tem um beijo escondido no canto da boca, e ela prova... More

Dedicatória
Prólogo
I. Lua-Mar
She's Casual
People watching
Threads of my soul
II. A pirata & A sereia
Memories
Information's here
I wanna save that light
Cupcakes
III. A bruxa & A filha do pastor
Throughout texting
Hidden Kiss
Alumbramento, s.m.
Oh so sweet
Wine lips
IV. A princesa & A assassina
Don't Cry
Storm
I think there's been a glitch
The letter
V. As cartas
Stay

How does it start?

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By Fernandazinhaa

CAPÍTULO 4

Amélia


Looking like that, you'll open some wounds

How does it start?

And when does it end?

Only been here for a moment, but I know I want you

- Vance Joy


Sinceramente, já estava claro para mim que o universo me odiava. Existem mais de sete bilhões de pessoas no mundo. Quais as chances de eu acabar me encontrando com a mesma pessoa que eu torci fortemente para não encontrar mais uma vez e, ainda por cima, de forma tão direta?

Pelo visto, as chances eram altas, pois cá estou eu.

Será que ela se lembrava de mim do dia da entrega? Será que me reconheceu e está apenas fingindo que não? Eu realmente espero que não. Nem eu gosto de me lembrar daquele dia e da vergonha que passei.

Eu podia sentir o olhar dela me acompanhando conforme me movimentava no espaço apertado atrás do balcão e, por algum motivo, eu estava me sentindo super nervosa. Minhas mãos suavam, meu coração palpitava com força até demais, e eu tinha que lutar contra o impulso constante de olhá-la de cinco em cinco minutos, só para checar se ainda estava ali ou era apenas algum tipo de fantasia da minha mente.

Afinal, não era todo dia que pessoas tão bonitas entravam na cafeteria quando toda a cidade estava ocupada assistindo a shows e... Bem, vivendo. Mesmo assim, a mulher parecia carregar toda essa vibe com ela, de que sim, ela estava vivendo, e talvez ainda mais do que todas as pessoas que gritavam os pulmões para fora em shows e baladas.

E, Deus, como ela era bonita. Eu queria simplesmente encará-la eternamente, decorar cada detalhe daquele rosto e, mais tarde, quando eu estivesse sozinha em casa, tentar desenhá-lo no papel, ou quem sabe descrevê-lo em uma das páginas do meu pequeno caderninho de anotações que nunca sequer abri.

Resolvi fazer uma xícara para mim também. Era merecido, depois do longo dia que tive. E, além disso, era sempre bom ter algo em mãos para me manter no presente.

Quando coloquei o copo na frente dela, ela logo o pegou e deu um longo gole, os olhos fechados como se estivesse esperando por esse momento o dia inteiro. ''Acho que essa é a melhor bebida já inventada pelo ser humano'' Disse quando colocou o copo mais uma vez em cima do balcão. Seus olhos distintos provavelmente me pegaram encarando.

Um silêncio recaiu sobre nós, onde eu a olhei e ela me olhou de volta. Foi estabelecido uma espécie de jogo do qual eu não sabia direito o que fazer: deveria apenas manter o silêncio ou dizer alguma coisa? deveria responder ao comentário sobre o achocolatado? deveria tomar o meu próprio achocolatado? ou apenas me virar e arranjar algo melhor para fazer?

Optei por tomar o meu chocolate quente também. Estava de fato delicioso. ''Então... Você sabe o meu nome. Mas eu não sei o seu.'' As palavras saíram da minha boca antes mesmo que eu pudesse me controlar. E claro que era mentira, uma vez que eu não apenas sabia o nome dela, como sabia também o sobrenome, a idade, e o fato de que todas as redes sociais eram privadas.

Deus, o que eu estava tentando fazer? Flertar? E ainda por cima com uma completa desconhecida?! Socorro. Eu preciso tentar manter minha boca fechada, antes que acabe me constrangendo sozinha. Ainda mais por que eu NÃO SEI flertar. Já fazem anos. Na verdade, eu nunca soube, pois eu nunca cheguei em ninguém. Mas, mesmo assim. Senhor. Okay, Amélia, RELAXA. É só fingir costume. Vamos lá, você consegue.

Ela apenas sorriu de lado com esse olhar, sabe. Como se soubesse todos os meus segredos e pudesse usá-los contra mim a qualquer momento. Aquela garota se movimentava tão segura de si que eu tinha certeza que a qualquer momento poderia ou me socar ou me desestabilizar com uma resposta complexa envolvendo uma frase de Nietzsche. Nunca se sabe.

''Me chamo Lynn '' Respondeu com simplicidade. Ajeitou a postura e apoiou os cotovelos no balcão. Em seguida, perguntou: ''Você pretendia fechar a cafeteria agora?''

''É, sim. Na verdade sim.'' Respondi, dando tudo de mim para não tropeçar nas minhas próprias palavras. Não tinha porque ficar tão abalada perto dela. Lynn só parecia uma deusa grega ou algo do tipo, nada demais. Troquei o peso dos pés. ''Achei que não teríamos mais clientes por hoje''

''Mas, cá estou eu'' O sorriso dela aumentou, e todo o meu interior derreteu. Era o sorriso mais lindo que eu já vi na minha vida.

Ela bebeu mais um gole do chocolate quente, parecendo satisfeita. Com a bebida? Com o fato de eu ter feito uma exceção para ela? Com as luzes apagadas no resto do bar e a noite silenciosa lá fora? Com o conforto do ambiente? Eu nunca saberia dizer.

''Cá está você'' Assenti lentamente, já sentindo um clima constrangedor querendo pairar entre nós.

''Mas já estou indo'' Ela também assentiu, acho que em ato reflexo, e em seguida se levantou e sacou duas notas de dez dólares do bolso. Algo dentro de mim gritou para que ela ficasse, mas apenas encarei o dinheiro. ''Pode ficar com o troco, princesa''

Princesa.

''Obrigada'' Agradeci, e assisti Lynn fazer o caminho até a saída.

Ela abriu a porta, o sininho soou, e ela se foi.

Só então consegui respirar, meio atordoada.

Tomei fôlego como se estivesse me preparando para uma corrida. Guardei o dinheiro. Peguei minha bolsa e desliguei as últimas luzes que ainda estavam acesas, pensando no que faria quando chegasse em casa.

Talvez eu devesse tentar escrever mais um capítulo do meu livro. Já está parado faz um mês, pois estou sofrendo de um terrível bloqueio criativo e, honestamente, talvez se eu me sentar e encarar o computador por alguns minutos, minha inspiração floresça em um passe de mágica.

Minha história é boa demais para ficar parada, sem continuação. Todos os dias eu sinto como se meus personagens estivessem apenas me esperando. Eles precisavam de mim para terminar de narrar suas histórias. E eu precisava deles, uma vez que suas vidas eram uma espécie de refúgio para mim.

Deixei meus olhos se acostumarem com a escuridão conforme fazia meu caminho até a saída.

Talvez, antes de tentar escrever, eu devesse tomar um banho bem quente. Quem sabe abrir uma garrafa de vinho. A noite é uma criança, e eu sou uma jovem escritora de vinte e três anos que trabalha e estuda o dia inteiro, para só à noite poder focar em meu livro. Afinal de contas, eu não me formei em filosofia para ser professora, e com certeza não quero continuar sendo barista pelo resto da vida, quero? Estudo pelo conhecimento e trabalho na Sweet Blue pelo dinheiro, mas o que quero levar como profissão é isso: a escrita.

E hoje é oficialmente o fim do meu bloqueio criativo. Fechei as portas da cafeteria-bar e as tranquei com precisão. É isso. Eu vou chegar em casa, me trancar no meu quarto e escrever até os meus dedos caírem de tanto digitar. Eu vou terminar o capítulo em que a minha personagem principal, Genevieve, finalmente consegue encontrar uma forma de ir atrás de sua amada e...

Levantei o olhar, pronta para ir embora, mas havia alguém bloqueando meu caminho. Meu coração subiu até a boca quando me deparei com olhos de cores diferentes, e dei um pulo de susto, soltando uma exclamação ao mesmo tempo.

Lynn soltou uma risada fraca e se encostou na parede ao lado da porta, dobrando um dos joelhos para apoiar a sola do pé contra os tijolos envelhecidos, o copo de chocolate quente com whisky ainda na mão esquerda. Na mão direita, um cigarro apagado.

Eu realmente não esperava encontrá-la ali, e por isso fiquei tão surpresa.

''Hey Amélia'' Ela disse, a voz rouca de uma forma que fez todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. A mulher jogou o cigarro no chão, terminou a bebida, e só então se desencostou da parede e deu um passo na minha direção. Não me mexi. A rua estava vazia e escura, a não ser por um poste aceso um pouco mais para frente. Estava frio, e uma brisa gelada dançou entre nós. Os cabelos longos e loiros de Lynn se esvoaçavam, e pude sentir o meu frizz subir. ''Eu estava indo embora quando uma ideia me ocorreu''

Mistério. Se eu pudesse escolher uma única palavra para a mulher na minha frente, uma palavra que não descrevesse apenas o seu jeito, mas também o seu olhar, eu escolheria mistério. E, pelo amor de Deus, ninguém deveria ficar tão lindo tão tarde da noite assim, com as bochechas coradas de frio.

Limpei a garganta. ''O que lhe ocorreu? Que ideia foi essa?''

Os segundos pareciam passar tortuosamente devagar, pois demorou quase um minuto para que Lynn Stevenson me respondesse.

Uma vez, não muito tempo atrás, eu estava em casa com Skye. Era noite, ela cozinhava, e eu assistia TV. Trocamos algumas palavras e assuntos aqui e ali, mas nenhuma das duas prestava atenção de verdade no que a outra dizia, concentradas nas próprias tarefas. Até que Skye me perguntou quem eram as ''Pessoas-chave'' da minha vida. Isso fez com que minha atenção se voltasse para ela.

''O quê?'' Perguntei, sem entender.

''Tipo, durante a nossa existência nós conhecemos pessoas que, querendo ou não, mudaram a gente. Sem essas pessoas, não seríamos quem somos hoje. Elas chegaram, viraram uma chavinha no nosso mundo, e é isso. Estarão no nosso coração para sempre. Não tem como esquecê-las, não tem como nós existirmos sem o período de tempo em que estivemos com elas. Tipo... Tira uma pessoa-chave do quebra cabeça que é você, Milly, e você se torna um alguém completamente diferente. Sacou?''

''Ah! Saquei''

''Então, me diz.'' Skye me olhou, despejando um copo de água em uma panela quente de sabe se lá o quê, fazendo com que um cheiro delicioso tomasse conta do apartamento inteiro. ''Quem são, ou foram, as suas pessoas-chave?''

Voltei ao presente. Lynn tinha algo a me dizer. Uma proposta a me fazer. Meu estômago girava em precipitação.

E eu não sabia, mas foi naquela noite de sexta-feira fria e vazia que aquela garota desconhecida, com ar enigmático, olhos desiguais e o sorriso mais lindo que eu já vi na minha vida, fez a pergunta que mudou tudo.

''Quer pegar a estrada comigo nessa madrugada?''

Naquela noite, Lynn Stevenson se tornou uma das minhas pessoas-chave.

Eu não a conhecia. Não sabia absolutamente nada sobre ela. E eu juro que mil e um motivos para recusar esse pedido passaram à mil pela minha cabeça. Ela pode ser uma assassina. Pode te levar para um lugar com assassinos. Pode te roubar. Ela pode nem ao menos ter carteira de motorista. Ela pode estar bêbada. Ela pode estar chapada. Mas pessoas bêbadas e chapadas não cheiram tão bem. Mas ela pode ser uma psicopata que foi contratada para me torturar. Por que alguém me torturaria? Não tenho informações valiosas sobre o governo nem nada do tipo. Mas ela pode me raptar e me prender em um porão até a minha morte. Ela pode...

''Prometo que te trago de volta sã e salva pela manhã'' Lynn acrescentou, percebendo o meu impasse.

E Deus, eu não sei por quê. Se um dia, mais para frente, me perguntarem o que eu tinha na cabeça quando concordei com isso, eu não saberei responder. Talvez foi por causa daqueles olhos inebriantes dela, aguardando uma resposta e parecendo tão, mas tão puros. Talvez fosse a carranca, o mal humor aparente que ela tinha, essa vibe de intocável. Talvez foi por causa do clima. Talvez eu aceitei porque eu não tinha nada melhor para fazer. Ou talvez fosse apenas o cheiro oriental e amadeirado que chegou ao meu nariz junto com a brisa suave do vento, naquela noite escura e fria de outubro, vindo dela.

''Vamos nessa'' Eu aceitei.

Mas, na minha cabeça, eu me perguntava o porquê. Por que esse convite inesperado? Afinal de contas, eu era tão estranha para Lynn quanto ela era para mim. Mesmo assim, algo no sorriso fraco que ela esboçou me fez ter mais certeza ainda da minha escolha.

Ela me levou até onde o carro dela estava estacionado, um fiat cinza claro com as janelas escuras graças ao insulfilme, e abriu a porta para mim. Eu entrei, e menos de um minuto depois ela estava ao meu lado.

A primeira coisa que eu notei foi que o carro cheirava como ela. Madeira, de alguma forma. E canela. Amadeirado e oriental. Percebi uma espada de pelúcia pendurada no retrovisor. No painel havia vários pacotes de salgadinhos amassados, junto com algumas latinhas de coca cola, cerveja e embalagens vazias do MC Donald 's. Notei que o fio do carregador estava encaixado na entrada USB do rádio, de onde metade de um CD estava para fora.

Lynn empurrou o CD para a entrada e ligou o carro. O rádio começou a processar, e os motores fizeram o banco vibrar levemente. Olhei para trás e vi um cobertor e dois travesseiros, além de alguns livros no chão na parte traseira do banco, assim como vários pares de sapatos. Era notável que o porta-malas estava cheio de coisas aleatórias também. O carro era uma bagunça, e parecia uma... Casa.

Lynn finalmente saiu da vaga e seguimos pela rua vazia.

''Então... Você mora no seu carro ou algo do tipo?'' Perguntei em um tom brincalhão, e olhei para ela.

Foi impossível não notar o quão linda Lynn Stevenson ficava dirigindo. O maxilar bem marcado, o olhar concentrado na rua à nossa frente. As mãos firmes no volante. Notei que suas unhas eram curtinhas, e ela usava um único anel de coco no dedão.

Ela olhou para mim por um milésimo de segundo, como se por algum motivo soubesse exatamente o que eu estava pensando, e me conhecesse mais do que eu mesma me conheço. Tentei ignorar a súbita ardência nas minhas bochechas. O rádio finalmente processou o CD que foi introduzido, e uma música que eu não conhecia começou a tocar.

''Você é observadora, Amélia'' Lynn comentou, mas não respondeu minha pergunta. Deixei passar. Se ela de fato morasse no próprio carro, me falaria em algum momento.

''O que te leva a convidar uma estranha para a estrada em uma madrugada aleatória como essa?'' Perguntei de uma vez.

''O que te leva a aceitar o convite de uma estranha para a estrada numa madrugada aleatória como essa?'' Ela rebateu sem pensar duas vezes.

''Por que você não responde minhas perguntas?''

''Você não faz as perguntas certas.''

''Não existem perguntas certas ou erradas. Apenas... Curiosidade.''

''Tenho quase certeza de que a curiosidade matou o gato''

''Tenho quase certeza de que a curiosidade é o que nos trouxe até aqui na história do mundo. Digo... Se não fosse pelas pessoas curiosas, onde estaríamos?'' Questionei.

''Uma vez, Santo Agostinho disse que com a curiosidade caminha de costas para Deus''

Okay, isso é verdade. Mas como Lynn sabia disso?

''Você é cristã?'' Perguntei.

''Não. Mas nesse debate eu estou contra a curiosidade''

''Você é realmente contra a curiosidade ou você só quer me contrariar?''

''Hhmm... A segunda opção.''

Ela queria um debate? Então ela teria um debate.

''Certo. Sócrates defendia o questionamento. Ele perguntava porque era curioso, e também porque via que os especialistas da época não sabiam de tudo. E isso era okay. Mas o problema é que eles não admitiam o que não sabiam. Eles não tinham coragem de responder ''não sei''. Por isso Sócrates se deu conta de que assumir o desconhecimento era algo sábio. Era saber de algo. E por isso ele disse ''Só sei que nada sei''. Sabendo que a ignorância existia, Sócrates continuou a perguntar.''

''Você está dizendo que eu não sei as respostas para as perguntas que você me faz?''

''Não. Estou dizendo que, se não fosse por Sócrates, não teríamos a famosa frase ''Só sei que nada sei''. Você sabe de algo?''

''Eu sei de muitas coisas. Sei inclusive que...''

''Okay, Lynn, você precisa desistir agora. Não tem como ir contra a curiosidade. Você estaria indo contra a filosofia. Nicolau Copérnico questionou o posicionamento do sol no universo. Galileu Galilei questionou a mesma coisa, e aprimorou as teorias de Copérnico. Giordano Bruno morreu na fogueira por ser curioso. Se Isaac Newton não fosse curioso, nunca teríamos descoberto a teoria gravitacional! E eu posso citar pelo menos trinta filósofos aqui e agora que defendiam a curiosidade''

''Uou, eu tenho uma Nerd no meu carro. Qual é, você era uma daquelas esquisitonas super inteligentes na escola que sofria Bullying por sempre levantar a mão por ter as respostas na ponta da língua?''

''Não. Eu era... Normal.''

''Sei. E como você sabe tanto sobre essas coisas?''

''Fiz faculdade. De filosofia. ''

''Oh, okay, isso é interessante. Você já é formada?''

''Sim''

''E você trabalha com isso?''

''Na verdade não. Eu sou apenas barista e... '' Eu ia complementar com e escritora, mas eu posso me chamar de escritora sendo que não consigo sequer escrever uma frase por dia? ''E comecei outro curso. Física com ênfase em filosofia astrofísica''

''Uou?'' Lynn mais uma vez tirou os olhos da estrada para me encarar. ''Okay, isso é incrível. E parece super interessante. O que mais você guarda nesse seu cérebro, hein? Você parece o tipo de pessoa que tem memória fotográfica. Deve saber muitas coisas.''

''Bem, eu sei muitas coisas. Mas não tenho memória fotográfica. Só... Gosto de estudar. E, olha só, eu respondo perguntas. Por quê você não responde perguntas?''

''Ugh'' Lynn revirou os olhos, e eu achei que fosse levar uma patada, mas sua voz saiu mais suave do que o normal. ''Olha, perguntas geram mais perguntas. E, sério. Qual seria o ponto? Tudo o que você precisa saber sobre mim é que eu não sou uma assassina.''

''Okay, isso é algo que assassinos dizem o tempo todo.''

Lynn virou para mim, claramente na defensiva. ''E como eu vou ter certeza de que você não é uma assassina, Amélia?''

''Me chama de Milly. E eu não sou uma assassina. Sou barista. O que você é?''

Lynn respirou fundo. ''Okay, pelo visto eu não tenho escapatória. Eu não sou nada. Viajante, talvez, mas creio eu que até para isso eles devem ter inventado uma faculdade.''

''Você não tem formação?'' Perguntei por curiosidade, sem me atentar ao fato de que talvez essa fosse uma pergunta rude a se fazer. Era uma pergunta rude a se fazer? Merda. ''Quer dizer...''

''Na verdade não'' Lynn respondeu, e ela deve ter percebido que eu tinha me arrependido de ter perguntado isso, pois tirou uma das mãos do volante e a descansou no meu joelho. Uma onda de eletricidade perpassou por todo o meu corpo com o toque. ''Relaxa'' Ela disse. ''Eu... Me considero uma pessoa curiosa, sim. Só não consigo permanecer em estudos formais, sabe? Eu meio que fico entediada se passo um longo período de tempo fazendo a mesma coisa, então nunca sequer cogitei a faculdade.''

''Ah'' Foi o que eu consegui responder. Lynn limpou a garganta e tirou a mão do meu joelho. O local parecia pegar fogo. Um silêncio recaiu entre nós. Não era desconfortável, nem constrangedor, muito menos ruim. Era... Quieto.

''Okay.'' Para a minha surpresa, foi Lynn quem quebrou o silêncio. ''Jogo rápido. Perguntas rápidas de se responder. Se... Se for algo além dos nossos limites, nós dizemos ''Cherry''. Eu começo. Pode ser?''

''Pode.'' Concordei.

''Quantos anos você tem, Amélia?'' Ela perguntou.

''23. Você?''

''22'' Ela respondeu. Um ano mais nova. Eu não estava surpresa. Embora Lynn fosse quase uma cabeça mais alta do que eu, ela tinha o rosto de bebê. Um bebê puto da vida, mas ainda assim, um bebê. ''Perguntas-reflexo não contam. É sua vez.''

''Certo. Você mora no seu carro?'' Perguntei.

Lynn me direcionou um olhar assassino, e por um instante eu jurei que ela ia sacar uma faca do bolso e me matar ali mesmo. Mas ela apenas mordeu o lábio inferior, e meu Deus, ela estava segurando um sorriso? Puta merda. ''Você é teimosa. Sim, eu moro aqui. Eu perguntaria onde você mora, mas... Bem, acho que já nos encontramos antes, certo?''

Arregalei os olhos.

Então ela se lembrava do dia da entrega. 

Droga, droga, droga.

''Então... O quê aconteceu naquele dia? Sua dicção decidiu dar uma volta ou você estava nervosa? Depois do seu grande discurso sobre filósofos e a curiosidade, eu sei que você sabe falar tão bem quanto um professor universitário...'' Lynn olhava para frente, mas eu sabia que estava me provocando.

''Será que nós podemos simplesmente esquecer que aquela noite aconteceu?'' Cobri meu rosto com as mãos, sentindo minhas bochechas esquentarem. Como explicar para ela que eu fico nervosa perto de mulheres extremamente bonitas porque eu sou um grande desastre lésbico ambulante? ''Eu estava esperando por um entregador bem, bem feio, de quarenta anos pelo menos, e insatisfeito com a própria vida. E não... E não você.''

''Uh, Amélia. Você está insinuando que me acha bonita?'' Lynn esboçou o sorriso mais malicioso e irritante do mundo, e eu quis socá-la por isso. Mas eu também quis beijá-la. Era um sentimento confuso. E eu saberia responder isso se o nervosismo não tivesse tomando todo o meu corpo mais uma vez. Droga, droga, droga.

Mas eu não iria escapar de perguntas agora. Com certeza Lynn usaria isso contra mim. E sim, eu era teimosa. Uma característica que aprendi com Skye. Então apenas respirei fundo e olhei para ela. ''Não só bonita, Lynn. Acho você absurdamente linda.''

Lógico que eu estava surtando internamente. De onde raios eu juntei coragem para dizer isso em voz alta? Acho que nem os deuses sabem. O sorriso provocativo de Lynn sumiu em um nanosegundo, e ela ficou tão séria quanto um lutador de sumô. Eu já ia me desculpar por ser tão direta, mas ela foi mais rápida. ''O-obrigada. Sua vez de fazer a pergunta''.

Quis sorrir. Quis dar o maior sorriso do universo. Mas apenas assenti e mudei rapidamente de assunto. ''Okay, provavelmente você não vai saber essa resposta. Mas, qual o seu tipo de personalidade?''

''ISTP-A'' Ela respondeu de pronto.

''Uou, okay?'' Não escondi minha surpresa.

''E a sua?'' Ela perguntou.

''INFJ-T'' Respondi.

''Você acredita nisso de verdade?'' Ela me olhou, curiosa.

''Não de verdade.'' Fui sincera. ''Você acredita?''

''Sim. Assim como acredito em signos. Em energia. Em fadas. E deuses. Pedaços de cada coisa, sabe? Nada completo. ''

''Espera, você acredita em deuses?'' Perguntei.

''Eu acredito no Universo. E o Universo não trabalha sozinho. Água, Ar, Terra, Fogo. São deuses. Mas eu também gosto de pensar que os típicos deuses também são reais. Zeus, Afrodite, Atena. Ou quem sabe Netuno, Marte, Saturno. Tem muitas coisas no que se acreditar por aí.'' Ela disse. Eu a ouviria falar sobre tudo o que acredita por horas e horas.

Como era possível uma pessoa acreditar em mil e uma coisas ao mesmo tempo? Isso não era a mesma coisa que não acreditar em nada? Do jeito que Lynn falava, parecia que tudo aquilo existia mesmo, bastava olhar com cuidado.

''Qual o seu signo?'' Ela me perguntou.

''Capricórnio''

''Uh, faz sentido.'' Ela assentiu com a cabeça, pensativa.

A faixa do CD mudou, e mais uma música que eu não conhecia começou a tocar. O início era instrumental, e calmo. As cordas de um baixo ressoavam pelas caixas de som, e só então parei para prestar atenção ao meu redor. Naquele ponto, eu e Lynn já estávamos na estrada, que naquele momento estava vazia, a não ser por um ou dois carros mais à frente. Senti o movimento uniforme das rodas contra o asfalto, a paisagem passando pelos meus olhos rapidamente. Eu via tudo, mas não por tempo o suficiente para captar alguma coisa. O cheiro do carro, os acordes que ressoavam entre nós, a estrada silenciosa e reconfortante. Era como uma promessa. Era como deixar tudo para trás e ao mesmo tempo ter a oportunidade de voltar, se eu quiser.

Fui atingida por uma onda de nostalgia quando o cara começou a cantar. Tudo me fazia sentir como se eu pertencesse, como se eu tivesse sido criada para viver esse momento. O que era ao mesmo tempo assustador e incrível. Tive a sensação de que eu já deveria ter sentido isso em algum ponto da minha vida. Mas nunca viajei de carro assim. A viagem mais longa que fiz foi de metrô, de São Bernardo para São Paulo, e eu estava ocupada demais para aproveitar o momento.

O movimento.

''Você está sentindo? '' Lynn tirou os olhos da estrada e os direcionou para mim. Dessa vez, ela permaneceu com o olhar em mim por alguns segundos, como se avaliasse meu rosto. ''Isso?''

Eu não fazia ideia do que ela estava falando. Mas talvez houvesse uma chance de ser a mesma coisa que eu estava pensando. ''Essa.. Vibe?'' Perguntei.

Ela riu. ''Sim. Essa vibe''

''Estou. Como que faz para segurar esse sentimento dentro de mim para sempre?''

''Eu ainda não descobri'' Lynn confessou, e voltou a olhar a rua. ''Mas sei como prolongar pelo máximo de tempo possível''

''E como é que se faz isso?''

''Por quê você acha que eu te contaria?'' Lynn esboçou um sorriso. Deus. Ela gostava de brincar comigo.

''Lynn! Conta!''

''Okay, okay. Veja, não é nada demais. É só... Ter um carro.'' Ela voltou a olhar para frente, para o nada. Ao mesmo tempo em que parecia concentrada, o olhar estava meio perdido. Tive a sensação de que dirigir era a mesma coisa que respirar para ela. Automático. Inevitável. Como se isso fizesse parte de quem ela é. ''E a playlist certa. Músicas com as notas certas.'' Deu de ombros. ''Só isso. E acho que é a sua vez de fazer a pergunta.''

''Okay.'' Concordei. Percebi que Lynn não se permitia divagar demais em uma ideia ou pensamento. Ela corta o assunto sonhador como cortaria etiquetas de roupas. ''Como são seus pais?''

''Cherry.'' Lynn disse, e pude visualizar seu maxilar travar. ''Como são os seus pais?''

Olhei para minhas próprias mãos. Talvez fosse por causa da música nostálgica que estava tocando. Ou por causa de toda aquela vibe. Mas senti uma vontade imensa de chorar. Falar sobre meus pais sempre foi fácil. Quer dizer, falar sobre minha mãe sempre foi fácil. Agora me soava tão... Complicado.

''Cherry. Como foi sua infância?''

Todo o corpo de Lynn se tencionou. ''Cherry. Como foi a sua infância?''

''Foi... Boa. Minha infância foi realmente muito boa. Difícil, sim, mas...''

''Boa.'' Lynn terminou por mim. Nós nos olhamos no mesmo segundo. Ela não sorria, mas tinha algo em seu rosto. Empatia, talvez. Quase como se soubesse de tudo o que aconteceu, e quisesse de alguma forma consertar o meu passado, mesmo que não soubesse de nada.

Eu não soube o que responder. Quis prolongar o momento. Por que ela me olhava como se quisesse que eu contasse a história da minha vida? E por que eu me sentia disposta a fazê-lo? Desviei o olhar. Não queria pensar a respeito da minha mãe, não naquele momento. Era muito doloroso.

Limpei a garganta. ''Bem. Você não fez faculdade, certo? Mas mesmo assim parece ser muito inteligente. Eu assumo que você sabe muito sobre filosofia. Como?''

Lynn soltou uma risada de escárnio. ''Acho válido dizer que a coisa mais próxima de alcançar o conceito de 'filosófico' que eu já li é aquele livro gay... Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo. Ótimo livro por sinal.''

''É o seu favorito?''

Ela demorou um ou dois segundos para me responder. Por fim, apenas deu de ombros. ''Acho que é. Eu já li incontáveis vezes. Você já leu?''

''...Não.'' Admiti, e em seguida ela me olhou como se o mundo fosse acabar.

''Okay, princesa, você tem que me prometer que vai ler esse livro. Na verdade... Acho que eu tenho um exemplar no porta-malas!'' Ela pareceu se lembrar, e então tomou uma decisão rápida: ''Okay, eu definitivamente vou te dar o meu exemplar.''

''O quê?'' Minha voz subiu duas oitavas, soando super esganiçada graças à minha surpresa. ''Você vai me dar?''

''Eu... Estou dando o meu máximo para não fazer um comentário super impróprio agora.''' Lynn mordeu o lábio inferior para segurar um sorriso, e me ocorreu que talvez essa fosse uma mania dela. Uma mania que fazia meu estômago borbulhar. Tentei ignorar o meu nervosismo. ''Mas, sim.'' Ela continuou, e ajeitou a postura no banco, olhando para o retrovisor e em seguida virando o volante. ''É um dos meus livros favoritos e acho que você, Amélia, deveria tê-lo. ''

''Me chama de Milly.'' Pedi. ''E, realmente não precisa, sabe. Eu posso comprar um e... ''

''Só aceita, qual é. É só um livro. E o meu vai ser seu. É seu a partir de agora.'' Ela me cortou e em seguida pisou no freio. Olhei em volta. Lynn estacionou no acostamento e desligou o motor do carro.

''O que você está fazendo?'' Perguntei em estado de alerta.

''Vou pegar seu livro.'' Ela abriu a porta e começou a sair do carro.

''Agora?'' Eu não estava entendendo nada.

''Sim. Ou me esquecerei.'' Ela disse, e fechou a porta na minha cara, com força.

Fiquei sozinha dentro do veículo, a música ainda tocando. Pisquei uma, duas vezes, atônita. E então decidi sair também.

Estava definitivamente frio do lado de fora, tanto que automaticamente abracei meus braços para me proteger do vento. São Paulo era assim: um sol excruciante de trinta e cinco graus de dia e quase onze graus gélidos durante a noite. Mesmo assim, notei que o céu estava limpo, sem nuvens. Algumas poucas estrelas resplandeciam. Dava para ouvir a música tocando baixinho de dentro do carro, e já era tarde o suficiente para que a pista estivesse relativamente vazia.

Lynn abriu o porta malas, e fui até o lado dela.

Éramos apenas nós duas, aquele carro-casa no meio do nada, o vento e a música baixinha.

Observei o porta-malas lotado de Lynn. Era uma bagunça, mas ela parecia saber exatamente onde estava cada coisa. Roupas dentro de uma mala aberta, toalhas em um canto, um cobertor extra enfiado ali no fundo, sacos de comida não perecível, um mini fogão, diversas caixas de CD's e livros antigos, provavelmente comprados em sebos. Notei alguns cadernos com capa de couro acabados, mochilas, sapatos, bolsas, papéis higiênicos, um pé de cabra, um taco de beisebol, uma trava de volante.

''Meu Deus, você realmente mora no seu carro'' Falei, olhando para o monte de coisas que tinha ali. Lynn parou de procurar pelo livro e me encarou, séria. Por um instante achei que ela fosse me xingar ou algo do tipo, mas ela apenas sorriu de lado.

''Sim, Amélia. Eu moro no meu carro. Acostume-se com a ideia'' Disse, e voltou a procurar.

''E eu posso perguntar por q...?'''

''Aqui!'' Ela retirou um livro do fundo de uma mochila e me entregou, empurrando-o contra o meu peito da mesma forma que me empurrou as caixas de pizza na noite em que nos conhecemos.

O peguei nas mãos e observei a capa. Notei que estava bem gasta. Quando o folheei, vi milhares de post-its, frases grifadas e anotações em cada uma das páginas.

''Uou.'' Eu sentia como se pudesse descobrir mais sobre ela lendo seu livro preferido do que lhe fazendo perguntas.

Lynn fechou o porta malas e encostou na traseira do carro. Sacou um chiclete do bolso, o colocou na boca e descansou as mãos nos bolsos da jaqueta. Deus, ela era a própria definição de tanto faz. Era isso o que as fanfics queriam dizer, certo?

Abracei o livro e me apoiei na traseira do carro também, ao lado dela.

''Então... Você vive viajando por aí?'' Perguntei.

''Sim.'' Ela me lançou um olhar de soslaio.

''Algum motivo especial ou é só porque sim?''

Lynn ficou em silêncio por tempo o suficiente para que eu soubesse que havia algum motivo especial, mas a resposta seria a mais simples:

''Só porque sim'' Respondeu, e tratou de mudar de assunto. ''Vamos, princesa. Eu já sei onde vou te levar''

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