Seguindo a planta antiga do edifício e as novas imagens do software de vigilância projetadas no dispositivo móvel, Brian e David seguiram o longo corredor em direção à zona onde a magia acontecia. Todos haviam decidido, antes de se separarem nos elevadores, que se iriam dividir pelas diferentes zonas do complexo.
Jake e Kim seguiram em direção aos grandes armazéns que serviam de útero artificial; os dois rapazes acabaram por se apressar em simultâneo para encontrarem a melhor forma de saírem do local. O elevador parara alguns metros acima da Incubadora, anunciando a proximidade dos Túneis Gémeos, assim como da zona de laboratórios e arrecadações.
Em silêncio, eles permitiram-se estudar o pequeno hall que os levaria aos grandes túneis, apesar de continuarem alerta a qualquer movimento e som suspeitos. Perto do fosso do elevador havia umas escadas férreas de emergência, que mantinham o contato com o piso da Incubadora. Na realidade, dali eles conseguiam ouvir os sons das grandes turbinas que renovavam o ar do armazém, podiam ver o enleado de tubos que faziam correr químicos durante metros até à máquina mãe, lá em baixo. Em frente, escavados na parede coberta de betão e rocha da montanha, havia um túnel, tão extenso que eles não conseguiam ver o seu fim, e o que restava do seu homólogo. Um dos túneis paralelo tinha sido fechado por cimento e ferro. A parede que agora o encerrava estava decorada pelo grande símbolo da corporação, a letra grega phi estilizada em duas hélices de ADN, em tons de branco e azul metalizado, assim como uma lista de avisos a quem entrasse no único túnel aberto.
David apressou-se a seguir as indicações para a Zona C, onde se encontravam os laboratórios mostrados na planta do edifício. Brian optou por ler os avisos na parede do túnel fechado, observando o rebordo férreo que seguia todo o limite do canal. Curioso, ele acabou por adentrar no túnel aberto. Apesar de permanecer na entrada e haver iluminação ao longo de toda a extensão da passagem subterrânea, ele não deixou de se sentir claustrofóbico e tenso com a imponência das placas de betão em seu redor. O cheiro a cimento molhado, a humidade e a densidade do ar que o tornava quase irrespirável intensificaram a sensação, e ele permaneceu no buraco tempo suficiente para ver que das fissuras das grandes placas, que dividiam os túneis gémeos, havia a marca húmida de fios de água que escorria sem pressa. O outro lado da parede permanecia seca e o contraste era evidente.
Depois da primeira impressão do local, os rapazes finalmente entraram na zona dos laboratórios. Auxiliados pela planta antiga, eles procuraram por entre os corredores brancos e iluminados, a luminosidade intensa a aumentar a fotofobia, pelo sítio que servira de arrecadação em tempos. O plano B de Brian passava pela imperfeição do edifício, pela parte inacabada que, seguramente, os levaria a uma saída mais rápida se os elevadores já não servissem os seus propósitos. Ele esperava encontrar no barracão antigo da Estação de Filtração produtos que restaram das obras para construir a Corporação para então pensar na sua próxima ação. Em vez de um barracão amofado, escuro e sujo, eles encontraram a porta que acedia para o laboratório de Farmacologia.
– Merda – proferiu David quando percebeu movimento dentro da grande sala. Eram duas da manhã e todo o edifício parecia ter parado a sua atividade laboral. Que ciência se fazia em torno de fármacos durante a madrugada enquanto o mundo lá fora terminava? Eles não chegaram a questionar.
David surpreendeu Brian quando liderou o movimento e destravou a arma que encontrara na sala de controlo. Depois, ambos abriram a porta com destreza para não serem ouvidos e o que se seguiu fez Brian olhar para o outro rapaz com uma nova admiração. O canadiano conseguiu aplacar os dois cientistas curvados sobre a bancada sem grande alvoroço, tal como Jake fizera antes, no entanto, uma mulher de bata entrou atraída pelos sons abafados que se interpunham ao silêncio e David agiu sem pensar. Apesar de despreparado, o rapaz simplesmente utilizou a força do próprio corpo, sem técnica, e arremessou a cabeça loira da mulher contra a bancada de trabalho, espalhando químicos desconhecidos e pipetas pelo chão do laboratório com o rebuliço, deixando-a inconsciente com a queda aparatosa.
Rapidamente o vital líquido vermelho e viscoso manchou a bancada e Brian testou a reação de David uma vez mais, para vê-lo piscar apenas uma vez diante da visão grotesca. Brian surpreendeu-se com a rapidez de ação do outro e preparava-se para comentá-la quando o pequeno aparelho que colocara preso nos jeans soou pelo laboratório.
– David. – O tom de Jake pelo altifalante não passou de um sussurro que esperava autorização.
– Podes falar, Jake – confirmou Brian, colocando o dispositivo perto do rosto e aproximando-se igualmente de David.
– Consegues ter controlo sobre as portas do edifício? – O irlandês questionou de imediato – A Kim não tem acesso a uma parte restrita na Zona D, a zona sem câmaras.
David olhou o rapaz com a interrogação patente no olhar quando Brian percorreu o software no instante seguinte, sem certezas concretas. David deve tê-lo notado, pois depressa comentou:
– É bom que tenha, porque nenhum de nós tem uma cópia da Kim connosco e temos que sair daqui entretanto.
Brian não dedicou atenção alguma à provocação inofensiva e Jake interrompeu o momento breve com a própria respiração, profunda, esforçada e interrompida por alguma tosse, forçando-o a aclarar a garganta demasiadas vezes até David notar.
– Estás bem, Jake? Vocês estão bem?
A resposta veio novamente com a tosse irritativa que Jake parecia querer conter, sem sucesso.
– Sim – garantiu. – Houve um imprevisto na Incubadora, mas está tudo bem.
David não podia adivinhar que o imprevisto passara por ter Kim a ser agredida violentamente pela pessoa que a destruíra e a reduzira a nada até Jake, e por isso a sua mente apenas se concentrou no irmão mais velho e no desassossego constante de tê-lo a correr risco de vida.
– Tem cuidado. Não tens de... – começou o mais novo, tentando expressar a sua apreensão pela milésima vez nas últimas horas, mas rapidamente foi interrompido pela voz rouca e fria.
– Eu sei o que estou a fazer, David. Melhor do que ninguém, acredita. – Jake suspirou e o tom de exasperação foi demasiado evidente. – Eu só preciso que me abram a porcaria da porta.
David não discutiu, refreando e impedindo a sua língua afiada de tornar o momento numa discussão sem sentido, que nenhum deles precisava naquele instante.
– Jake, eu acho que consigo desligar o sistema completamente durante segundos, mas...
– Perfeito – interrompeu Jake, respirando fundo antes de continuar, ignorando as tentativas de Brian de falar de novo. – Vais abrir a porta apenas para podermos entrar. Depois quero que tranques esta zona inteira, Brian.
Brian assentiu rapidamente, apesar de o maxilar tenso demonstrar dúvida. David percebeu-lhe a expressão e rapidamente a associou ao que o irmão pedira e ao risco associado.
– Espera aí – interveio o mais novo. – Tu não vais realmente trancá-los num sítio sem câmaras. O nosso plano não envolvia uma sub-missão suicida pelo meio. A principal já me parece sê-lo o suficiente e estávamos a tentar contornar isso, lembram-se?
– Tranca o corredor, Brian. Ou a Kim vai fazê-lo – repetiu Jake, ignorando o irmão, e desta vez Brian resistiu por momentos a seguir a ordem. – Senão não vamos ter tempo suficiente para vocês conseguirem tirar-nos daqui.
– Jake – insistiu David, aproximando o microfone incorporado da boca para que o irmão o ouvisse realmente.
– Tens luz verde – confirmou Brian, ignorando o rapaz ao seu lado.
– Jake, mas...
– Até já. – Jake despediu-se e a ligação terminou.
– Jake! Idiota teimoso. – David apertou o aparelho com força, frustrado e impotente quando o silêncio invadiu o laboratório de novo. Brian ignorou-lhe os protestos, focado novamente na planta do edifício. – O que estás a fazer? Vais trancar-nos aqui também?
– Ele tem razão. É mais seguro isolar cada zona enquanto não nos descobrem.
– Ele não sabe o que está a dizer. O Jake vai fazer de tudo para conseguir o que a Kim quer e não vai pensar duas vezes na sua segurança para o fazer. Aqui não há nada seguro e é por isso que nos vamos focar no teu plano e despacharmo-nos a sair daqui como combinámos. Sem desvios, todos vivos, sem mártires. Não se armem em heróis. Nem sempre os heróis têm um final feliz.
– David.
A voz feminina diluiu a tensão entre os dois rapazes, iluminou o ambiente no mesmo instante e acalmou o tumulto em David.
– David. – A voz sussurrante e tímida de Rachel tornou a soar pelo altifalante do aparelho que David ainda segurava em busca da resposta do irmão. Passada a surpresa, o irlandês apressou-se a responder à namorada num tom meigo, que destoava da tensão nas linhas do seu rosto. Brian decidiu dar privacidade ao casal e optou por explorar o laboratório.
– Não sabia se era seguro falar, mas... – A rapariga fez uma pausa para respirar fundo e foi o que bastou para David aproximar mais o dispositivo do ouvido, atento aos sons que Rachel tentava abafar quando a voz falhou e a respiração se tornou rápida e inconstante. – A April fugiu – revelou, o tom de voz a mostrar o esforço necessário para falar. Brian, que adentrara num dos armários do laboratório saiu no mesmo instante, para encontrar a apreensão na expressão de David. – Eu... Nós... Ela é como a Kim, David. Ela é um erro. Talvez eu tenha confiado demasiado e falado... – A nova pausa para respirar levou a ansiedade de David a outro nível e então ele já não sabia como a controlar. – falado de mais.
– Rachel.
– Está tudo bem – apaziguou a loira de imediato e David decidiu que não queria ouvir aquela frase. – Ela não levou o carro. Eu não sei porque não o fez, mas... – David notou as pausas no discurso difícil da namorada e procurou o olhar de Brian, para se certificar de que não estava a alucinar e a afundar na sua proteção excessiva. Rachel não estava bem. – Ela tem tanto medo deste sítio que não tem maneira de vos denunciar e...
– O que é que ela te fez? – cortou o rapaz, controlando o pânico crescente na voz mas não nas ações. Os dedos que seguravam o dispositivo tornaram-se brancos nas extremidades, os maxilares tensos e cerrados.
– Está tudo bem, David. Amo-te e está tudo bem.
David fechou os olhos quando recordou as mesmas palavras, no mesmo tom de voz, quando ela soube que estava doente e não havia nada a fazer. Rachel era a primeira pessoa a certificar-se de que toda a gente estava bem à sua volta, ignorando os próprios problemas como se eles não fossem reais. David convivera com personalidade semelhante durante a vida inteira, com Jake, com ela.
Todos pensavam que ele permanecia ignorante ao que acontecia ao seu redor, mas David era atento e percebia como tudo estava errado naquele momento, como em muitos outros onde fingira não notar. Ele percebera-o quando Rachel o apaziguara perto da morte e fingira acreditar que ela iria viver. Desta vez ela não estava por perto, ele apenas dispunha da audição como sentido básico para se aproximar dela, e então não iria facilitar.
– O que é que ela te fez, Rachel? – repetiu, ansioso pelo estado em que ela se encontrava, pelo facto de ela não conseguir referir-se a si mesma, na primeira pessoa, quando afirmava estar tudo bem. Nada estava bem. Nada estava bem com ela e ele começava a duvidar do seu próprio estado. O reboliço interior devia ter-se estampado no rosto lívido e Brian não hesitou em colocar a mão forte sobre o ombro dele, num gesto de conforto. – Eu vou ter contigo – anunciou, afastando-se da proximidade do canadiano e procurando a saída do laboratório.
– David.
– Larga-me – grunhiu o rapaz, quando sentiu o aperto do outro novamente sobre a sua camisola para o impelir a ficar. – A April nunca se iria embora sem se vingar e ela não me está a contar tudo. Larga-me agora!
Brian afrouxou o aperto no tecido e seguiu o irlandês até à porta trancada. Rachel permaneceu em silêncio, interrompendo-lhe as passadas vigorosas, por fim, quando um soluço escapou e finalmente demonstrou tudo o que ela não conseguia colocar em palavras até então. A respiração difícil misturou-se com os soluços durante algum tempo e David estacou, impotente e ansioso, o seu corpo totalmente alerta a qualquer som proveniente do dispositivo que apertava com força.
– Quero... quero que venhas ter comigo, David – admitiu a rapariga, com dificuldade, e David sentiu as garras do pânico dilacerarem, apertando, criando espaço dentro dele até ver negro. Rachel era a mulher mais corajosa que conhecia, mais do que ele mesmo. Ela nunca lhe suplicaria ajuda daquela forma sabendo o risco em que o colocava. Rachel admitia precisar dele e David não conseguia pensar em mais nada. – Quero muito que venhas ter comigo. Mas quero que o Jake e a Kim voltem, que o Brian volte e que tu sejas responsável por trazê-los contigo quando descobrirem o que estão a fazer aí ou quando já não for seguro. Nessa altura eu quero que voltes para mim.
– Rachel.
– Só nessa altura, por favor – insistiu ela, controlando-se quando notou a voz do namorado quebrar ao proferir o seu nome. – Amo-te. Eu estou...
O silêncio voltou ao laboratório com a interrupção abrupta da comunicação que David não notou de imediato.
– Rachel? – O rapaz continuou a clamar pelo nome dela, sem notar que o aparelho que mantinha nas mãos transpiradas se tinha desligado ou de como a sua voz grossa ressoava pela divisão silenciosa. – Merda, eu tenho de sair daqui agora.
– David.
– Ela não está bem! – gritou, forçando a porta do laboratório, aumentando a sua frustração e ira à medida que se debatia com a fechadura automática e não obtinha resposta. – Porque é que esta merda não funciona?!
Brian decidiu intervir quando notou a violência nos gestos do irlandês, que parecia ter esquecido que estavam trancados por divisões até ser tempo de saírem do edifício.
– David.
– Abre esta porcaria agora, eu tenho de sair daqui – pediu, o corpo preparado para o desafio pela adrenalina que lhe corria nas veias. – Agora, Brian!
– Não posso – negou o outro de imediato, demonstrando uma calma que David não queria ver nem sentir quando Rachel suplicara pela sua ajuda. Sem pensar, aproximou-se de Brian o suficiente para a ameaça se fazer sentir através da sua postura, cravando o dedo indicador sobre o peito do mais velho. Brian era mais alto e o seu porte, mesmo que mais magro pelas semanas de cativeiro, mostrava de que lado estava a desvantagem se decidissem pela violência.
– Ouve uma coisa, françois armado em cientista. – David decidiu munir-se com palavras que lhe afastassem, ilusoriamente, a impotência. – Eu não te conheço, tu não me conheces, mas tu e a tua mania de líder podem foder-se, percebes? – Brian cerrou os maxilares proeminentes, sem no entanto recuar um passo. – O passado da Kim e todas aquelas cobaias Barbies-robot embaladas lá em baixo não valem a vida da Rachel, percebes? Da última vez que ela me disse que estava tudo bem foi para quase morrer com esta doença estúpida. Estive muito muito perto de a perder e por isso estou-me nas tintas para isto tudo e vou-me embora agora!
O tom colérico do irlandês ecoou pelo laboratório, dirigindo a sua raiva a quem não tinha culpa, entrando num estado de histeria crescente que os levaria à morte se Brian não reagisse primeiro. Antes que David pudesse continuar as suas ameaças inflamadas, Brian ergueu o punho e atirou-o contra o rosto do mais novo. A força do murro não foi suficiente para atirar o outro ao chão, David apenas cambaleou e cobriu o maxilar de imediato com a mão, a expressão irada a ser substituída pela surpresa e incompreensão.
– Cabrão – ofendeu, ainda atordoado com a reação de Brian.
– Cala-te e pensa! – ordenou Brian, mantendo toda a atenção do outro em si. – Estás-te nas tintas para o teu irmão? É isso? – David apenas fechou os lábios numa linha tensa e cruzou os braços. – Então acaba com a histeria e guarda o heroísmo para mais tarde, Hércules. Tu dizes que os heróis nem sempre têm um final feliz e estás mesmo empenhado em comprovar essa frase idiota, não estás? A tua Megera não é uma donzela assim tão indefesa, ela está bem e fora disto. Tu estás dentro, o Jake está dentro, todos estamos como combinámos, e adivinha? Alguém sabe que estamos aqui e estamos lixados se não parares de inchar o peito porque isto não é um ritual de acasalamento.
David notou que o coração já não martelava o seu peito como se quisesse sair, notou como era mais fácil respirar e pensar, no entanto ainda não percebia o que acabara de acontecer.
– Deste-me um murro – insistiu, recebendo um revirar de olhos do outro como resposta à constatação óbvia.
– E dou-te outro se não te recompuseres agora mesmo – Brian ameaçou falsamente. – Podes chorar e espernear tudo o que quiseres quando estiveres lá fora. És irlandês, dá definição à fama que vocês têm e ajuda-me a tirar-nos disto. A todos.
David engoliu em seco e voltou a cobrir o maxilar magoado pelo murro imprevisível enquanto recordava as palavras de Rachel. Ela estava bem. Ela afirmara que estava tudo bem e talvez estivesse tudo bem. Ele sabia que nada estava bem e não se atreveria a colocar na balança Jake e Rachel, lado a lado. Nunca o faria, por isso forçar-se-ia a acreditar que tudo estava bem.
Está tudo bem.
– Reza para que a Rachel não tenha um único fio de cabelo puxado quando voltarmos – acrescentou, mais calmo e pronto a colocar o plano em prática para que pudessem sair como combinaram.
– Reza para que as pessoas que desligaram o nosso sinal da sala de controlo sejam fãs da tua história de amor com a Rachel.
Só então David se apercebeu do que Brian lhe dissera antes de entrar em histeria. Eles foram descobertos e tudo o que ele conseguira pensar fora em Rachel.
– O quê?
– O sinal. Alguém desligou os nossos dispositivos ao computador central. Alguém sabe que estamos aqui.
Enquanto David voltava à realidade e tentava pensar com coerência, sentindo um peso claustrofóbico sobre si, Brian reagiu primeiro e avançou para a arrecadação que explorara antes da chamada de Rachel.
– Espera, Brian! O que é que estás a fazer?
Sem saber o que mais fazer, David seguiu o outro para a divisão.
– A improvisar.
– A improvisar? A saída é por ali – apontou para fora da divisão abandonada. – Eu digo que o nosso improviso é ir buscá-los antes que seja impossível sairmos daqui.
– A Kim provavelmente já não consegue controlar as portas, mas eles estão trancados numa zona sem câmaras. Provavelmente não foram descobertos ainda, mas...
Com esforço, David ignorou a situação de Rachel por mais algum tempo, atentando no facto de ter o irmão e o seu heroísmo inato a deambular no covil do vilão, que naquele momento estava representado pelo inútil sinal que os ligava à sala de controlo de todo o instituto, que os ligava agora à ignorância e incerteza.
– Está bem. – O rapaz deixou escapar, com um suspiro longo. Retirou a arma das suas calças e empunhou-a no mesmo instante, apontando-a a uma das portas dentro da arrecadação enquanto Brian atentava nas prateleiras dispostas por toda a divisão. – Estamos tão completamente fodidos. – Ele não sabia utilizar uma arma, não saberia como se defender se o pânico lhe comandasse as ações e não a adrenalina.
– Os túneis! – Os pensamentos do irlandês foram interrompidos pelo outro. A confusão estampada no rosto de David fez Brian esclarecer. – Sim, os túneis. – Brian voltou a ligar o dispositivo tátil e a projetar hologramas da planta do edifício antigo. David permaneceu na ignorância nos segundos que se seguiram. – Pensa comigo. Quando este edifício foi construído, quando construíram os túneis na montanha, eles tiveram de escavar a rocha durante quilómetros. A forma mais fácil de fazer isto é com explosões controladas. Eu não sei bem como o fizeram, mas estou a rezar para que tenham utilizado explosivos e utilizado o edifício principal.
– Espera, explosivos? – A confusão era evidente em David. Brian expressava o seu raciocínio da melhor forma, no entanto os conhecimentos entre os dois homens eram distintos e postos à prova naquele momento.
– Sim – confirmou o canadiano, revirando as prateleiras com as mãos ansiosas, jogando contra o tempo e com as explicações por dar a David. – Estamos exatamente na antiga cave da estação de filtração. Esta parte do edifício foi construída primeiro do que os túneis. É provável que alguma parte desta arrecadação pertença à estrutura antiga. Talvez eles tenham guardado materiais da obra. Esta porcaria não pode ser perfeita, tem que ter uma parte inacabada.
David finalmente percebia o que Brian tentava esclarecer, mas não o conseguia acompanhar. O raciocínio rápido do engenheiro deixou-o confuso e frustrado por não perceber o que o outro engendrava sem ele acompanhar.
– Certo, mas foca-te nos explosivos. Como assim explosivos? – insistiu na temática explosiva, já que nada fazia sentido na relação entre uma cave com material de obras e explosivos suficientemente fortes para destruir rocha maciça. Brian ignorou-lhe a questão e adentrou na divisão, avançando para onde a luminosidade do laboratório já não o acompanhava.
– O nosso plano B não vai funcionar, David. E se queremos sair daqui vivos vamos precisar de um plano C – disse Brian, por fim, no negrume entre prateleiras afiladas. David suspirou e seguiu a voz, adaptando-se à liderança do homem, ignorando testosterona e orgulho ferido. Ele só queria sair do subsolo, reunir o que restava da sua família e ir para casa.
– Tudo bem, mas vamos pensar em algo que não acabe connosco em bocados. Isto não é uma missão suicida e a Rachel precisa de ajuda agora!
– Eu acho que encontrei.
David apressou o passo em direção à voz, repreendendo-se por não ter voltado atrás para procurar algo luminoso. Brian valia-se dos hologramas que encandeavam os objetos nas prateleiras. Naquele momento o rapaz remexia em fármacos cujas embalagens pareciam todas iguais, todas com o mesmo rótulo que parecia estar em todas as paredes do edifício. Brian atentou numa embalagem e revirou o seu conteúdo rapidamente. David leu na base da prateleira a descrição do medicamento e não percebeu o raciocínio de novo.
– Comprimidos para problemas de coração é o teu plano C? – questionou, o sarcasmo a aguçar o tom de ataque que Brian ignorou. – Brian, concentra-te!
– Sabes o que é isto? – devolveu o canadiano, abanando a embalagem de cartão em frente a David, que apenas balbuciou algo relacionado com medicação para anginas. – O nosso plano C é o que existe aqui. Estes comprimidos têm nitroglicerina – informou, retirando a bula do remédio para que David pudesse ver alguns dos compostos. – Repara, este medicamento não é de um laboratório conhecido. Isto é o logótipo daqui, HCC é onde estamos. Nós estamos no laboratório de farmacologia e eles fabricam medicação aqui. – David ergueu o sobrolho o suficiente para mostrar ao outro que se surpreendia com a sua capacidade de retirar conclusões das coisas mínimas, que ele não conseguia ver. Apesar de tudo, David ainda não conseguia perceber a relação entre explosivos, material de obras e medicamentos para problemas de coração. – David, se eles realmente tiveram produção própria de fármacos então aqui está a nossa saída. – Brian tornou a abanar a embalagem de medicamentos.
– Ok – assentiu David, cruzando os braços. – Estou a ouvir.
– Ok, precisamos de nitroglicerina. E areia. E de um plano D para juntar as duas coisas sem morrer ninguém.
Antes que David pudesse dizer que decidira deixar de ouvir, Brian correu pelo armazém e obrigou-o a segui-lo ou ficaria apenas ele, a escuridão e os inúteis comprimidos de nitroglicerina. Uma das portas mais próximas tinha avisos de toxicidade e regras de manuseamento pelos trabalhadores. A porta mais envelhecida destoava da arquitetura do edifício e não havia controlo eletrónico.
Sem pensar, Brian destravou a arma que mantinha presa nos jeans e atirou cegamente contra a fechadura metálica. Assim que entraram na divisão, as luzes brancas que tornavam os olhos sensíveis e irritados acenderam automaticamente. Depois, o alívio tomou conta do rosto de Brian por um segundo quando percebeu que o material utilizado no laboratório principal era ali armazenado. David continuou sem perceber e Brian finalmente esclareceu:
– A nitroglicerina é um líquido que por si só é explosivo. Não precisas de saber porquê, mas é um composto que é demasiado instável para ser mantido em estado líquido. Com o movimento corríamos o risco disto tudo ir pelos ares, por isso vamos voltar aos clássicos. Sabes como fazer dinamite? – David uniu os sobrolhos e deixou transparecer a sua desconfiança, finalmente. – A dinamite é nada mais nada menos do que nitroglicerina misturada com uma areia absorvente para que não expluda quando não é suposto. Pode ser qualquer outra porcaria que absorva, não interessa. Antes utilizava-se apenas nitroglicerina, mas havia muitos acidentes de percurso no transporte e manuseamento do líquido, então criaram a dinamite. O nosso plano C é vintage mas é seguro que resulta. Resulta demasiado, até.
– Então os medicamentos para as anginas... – David finalmente começou a ligar as peças do cérebro metódico do canadiano, faltando as mais importantes que o outro depressa o ajudou a reunir.
– Os medicamentos para as anginas são produzidos aqui, eles contêm nitroglicerina, por isso tem de haver o composto líquido por aqui. Só temos que saber como usá-lo – esclareceu, explorando o armazém secundário em busca do explosivo enquanto o tempo não parava, lá fora.
– Continuo sem perceber porque queres um explosivo se não for para nos matar a todos.
– Por causa dos túneis. – A afirmação saiu quase como um grunhido. Brian começava a demonstrar sinais de nervosismo enquanto David permanecia num estado de apatia que pensava não ser possível sentir depois da histeria lhe ter custado um hematoma no maxilar. – Pensa. Se o lago continua sem água e este túnel é usado como corredor para instalações e laboratórios então para onde foi drenada toda a água?
– O lago pode ter secado... – David iniciou a hipótese mais óbvia quando foi interrompido antes de a desenvolver.
– Ou grande parte pode ter sido drenada para aqui. O meu improviso passa pela utopia de existir água no túnel gémeo que está fechado... A parede do lado do túnel fechado está húmida, há marcas de água no cimento. Há água ali.
David sentiu uma moínha por baixo dos olhos, anunciando a dor de cabeça crescente pelo esforço emocional e de raciocínio que competia com o de Brian. Ele finalmente compreendia qual era a alternativa para saírem daquele local e nada lhe parecia certo ou seguro. Nada se assemelhava ao que fora combinado lá fora, quando todos estavam a salvo e se pensara ter coberto todas as eventualidades para a noite. Eles pensaram no que aconteceria quando fossem descobertos, mas nada os levara a crer que fariam explodir um túnel imponente a mais de cem metros abaixo do solo.
– Esse é o teu plano C? – David teve que questionar, incerto da viabilidade de toda a hipótese. – Tu queres criar dinamite com compostos de medicamentos para problemas de coração e areia de obras com mais de trinta anos? Ou também vamos apanhar terra de vasos de flores que curiosamente existem sem sol cá em baixo? – Quando Brian se precipitou para falar, ele continuou. – Dinamite em paredes com toneladas de betão em túneis sem fim até isto se encher de água? É isso?
Brian não confirmou de imediato, arrebatado com a lógica lunática do plano quando dito em voz alta.
– Provavelmente há milhões de litros de água do outro lado daquela parede de betão, David. Se a fizermos explodir controladamente, apenas num ponto, a pressão da água vai agir como tsunami pelo túnel e a HCC é destruída de vez.
– Tsunami. – David testou a palavra, tentando não empregar descrença ou sarcasmo, mas falhando. – A mais de cem metros abaixo do solo? Connosco cá dentro? – O irlandês acabou por rir quando notou a imbecilidade que lhe corria pela boca. No entanto, Brian não lhe acompanhou o riso histérico e tudo na sua expressão anunciava um novo murro se ele não a terminasse naquele momento. Recompondo-se, ele engoliu em seco e testou: – Plano D?
Brian suspirou fundo e colocou a sua arma nas mãos do outro, destravando-a em conjunto, e mimetizando a ação seguinte enquanto a descrevia:
– Meteres isto na boca, premires o gatilho antes que eles te apanhem e rezares para que tenhas morte instantânea – disse, cru, mostrando a realidade para além de devaneios e hipóteses que provavelmente não resultariam mas que eram a única forma de tentar sobreviver.
***
NOTA DE AUTORA
Agradeço desde já a quem for ler já este capítulo, porque significa que continua aqui depois de vinte mil anos e isso é tudo <3 Para todos os outros eu só espero que voltem para ler o final e digam o que acharam em geral da história. Acho que é o mínimo depois de 140 000 palavras.
Agora sobre este capítulo eu tenho i-m-e-n-s-a coisa a dizer, mas vou ficar-me pelo óbvio: PESQUISA. MUITA PESQUISA. Espero que tenham aprendido alguma coisinha entretanto, porque isto foi só um grande filler com imensos imensos pormenores importantes e hipóteses e coisas. Espero que tenham estado atentos e percebam a alhada em que aquela gente está metida. É claustrofóbico de escrever.
Desculpem ter regressado com um capítulo tão... assim, mas este era imperativo. É super importante.
Espero que gostem e que se lembrem do que ficou para trás e pronto. É isto ;)