UPRISING

Von martafz

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Num futuro não muito distante, uma nova estirpe viral ameaça exterminar a espécie humana da Terra. O estado m... Mehr

Uprising
0. Prólogo
1. América
2. É bom ter-vos de volta
3. HCC K42
4. Virgem outra vez
5. Achas que ela respira?
6. Kim
7. Sobrevivência
8. Quem és tu?
9. Voltar para casa
10. Lasanha vegetariana
11. Porque raio te injetas?
12. Dói-me a barriga
13. Porrada de um velho gordo
14. Gémea?
15. Não me podes proteger disto
16. Despe-te
17. Dói-me só a cabeça
18. Invictus
19. Impotência
20. Eu não quero que chores
21. Não queria que te doesse
22. Eu não sei mentir
23. Vamos embora
24. Não saltes!
25. Com a Kim seria esquisito
26. A melhor pessoa que eu conheço
27. Parece que viste um morto
28. Eu prefiro dormir no carro
29. Deixa-me ficar contigo
30. Eu estou a sangrar!
31. Pedi-lhe tanto para não me tocar
32. Ela estava a gostar!
33. Memórias
34. Faz-me esquecer, por favor
35. Temos que sair daqui!
36. Eu prometi, lembras-te?
37. O que é que eu fui fazer?
38. Aidan Nolan
39. Irmã
40. Canadá
41. Só por uma noite
42. Diz-me se vai doer
43. Quero-te
44. És tão giro
45. Afinal que merda és tu?
46. Vocês vão todos morrer
47. Tu... gostas dela?
48. Nós somos a tua família
49. Conspiração
50. Defectus
51. Não deixes de gostar de mim
52. Eu estou bem
53. Eu cumpro as promessas que faço
54. Não quero ser uma necessidade para ti
55. Plano B
56. Gráim thú
57. Vai correr tudo bem
58. Duvida quando te parecer óbvio
59. Berra, deficiente
60. Por um bem maior
62. Homo invictus
A Up ganhou um Watty!
63. Humana
64. Eles já não aguentam mais
65. David Brody
66. Amanhã será mais fácil
67. Onde tu estiveres
68. Casa
Notas finais

61. Nem sempre os heróis têm um final feliz

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Von martafz

Seguindo a planta antiga do edifício e as novas imagens do software de vigilância projetadas no dispositivo móvel, Brian e David seguiram o longo corredor em direção à zona onde a magia acontecia. Todos haviam decidido, antes de se separarem nos elevadores, que se iriam dividir pelas diferentes zonas do complexo. 

Jake e Kim seguiram em direção aos grandes armazéns que serviam de útero artificial; os dois rapazes acabaram por se apressar em simultâneo para encontrarem a melhor forma de saírem do local. O elevador parara alguns metros acima da Incubadora, anunciando a proximidade dos Túneis Gémeos, assim como da zona de laboratórios e arrecadações.

Em silêncio, eles permitiram-se estudar o pequeno hall que os levaria aos grandes túneis, apesar de continuarem alerta a qualquer movimento e som suspeitos. Perto do fosso do elevador havia umas escadas férreas de emergência, que mantinham o contato com o piso da Incubadora. Na realidade, dali eles conseguiam ouvir os sons das grandes turbinas que renovavam o ar do armazém, podiam ver o enleado de tubos que faziam correr químicos durante metros até à máquina mãe, lá em baixo. Em frente, escavados na parede coberta de betão e rocha da montanha, havia um túnel, tão extenso que eles não conseguiam ver o seu fim, e o que restava do seu homólogo. Um dos túneis paralelo tinha sido fechado por cimento e ferro. A parede que agora o encerrava estava decorada pelo grande símbolo da corporação, a letra grega phi estilizada em duas hélices de ADN, em tons de branco e azul metalizado, assim como uma lista de avisos a quem entrasse no único túnel aberto.

David apressou-se a seguir as indicações para a Zona C, onde se encontravam os laboratórios mostrados na planta do edifício. Brian optou por ler os avisos na parede do túnel fechado, observando o rebordo férreo que seguia todo o limite do canal. Curioso, ele acabou por adentrar no túnel aberto. Apesar de permanecer na entrada e haver iluminação ao longo de toda a extensão da passagem subterrânea, ele não deixou de se sentir claustrofóbico e tenso com a imponência das placas de betão em seu redor. O cheiro a cimento molhado, a humidade e a densidade do ar que o tornava quase irrespirável intensificaram a sensação, e ele permaneceu no buraco tempo suficiente para ver que das fissuras das grandes placas, que dividiam os túneis gémeos, havia a marca húmida de fios de água que escorria sem pressa. O outro lado da parede permanecia seca e o contraste era evidente.

Depois da primeira impressão do local, os rapazes finalmente entraram na zona dos laboratórios. Auxiliados pela planta antiga, eles procuraram por entre os corredores brancos e iluminados, a luminosidade intensa a aumentar a fotofobia, pelo sítio que servira de arrecadação em tempos. O plano B de Brian passava pela imperfeição do edifício, pela parte inacabada que, seguramente, os levaria a uma saída mais rápida se os elevadores já não servissem os seus propósitos. Ele esperava encontrar no barracão antigo da Estação de Filtração produtos que restaram das obras para construir a Corporação para então pensar na sua próxima ação. Em vez de um barracão amofado, escuro e sujo, eles encontraram a porta que acedia para o laboratório de Farmacologia.

– Merda – proferiu David quando percebeu movimento dentro da grande sala. Eram duas da manhã e todo o edifício parecia ter parado a sua atividade laboral. Que ciência se fazia em torno de fármacos durante a madrugada enquanto o mundo lá fora terminava? Eles não chegaram a questionar.

David surpreendeu Brian quando liderou o movimento e destravou a arma que encontrara na sala de controlo. Depois, ambos abriram a porta com destreza para não serem ouvidos e o que se seguiu fez Brian olhar para o outro rapaz com uma nova admiração. O canadiano conseguiu aplacar os dois cientistas curvados sobre a bancada sem grande alvoroço, tal como Jake fizera antes, no entanto, uma mulher de bata entrou atraída pelos sons abafados que se interpunham ao silêncio e David agiu sem pensar. Apesar de despreparado, o rapaz simplesmente utilizou a força do próprio corpo, sem técnica, e arremessou a cabeça loira da mulher contra a bancada de trabalho, espalhando químicos desconhecidos e pipetas pelo chão do laboratório com o rebuliço, deixando-a inconsciente com a queda aparatosa.

Rapidamente o vital líquido vermelho e viscoso manchou a bancada e Brian testou a reação de David uma vez mais, para vê-lo piscar apenas uma vez diante da visão grotesca. Brian surpreendeu-se com a rapidez de ação do outro e preparava-se para comentá-la quando o pequeno aparelho que colocara preso nos jeans soou pelo laboratório.

– David. – O tom de Jake pelo altifalante não passou de um sussurro que esperava autorização.

– Podes falar, Jake – confirmou Brian, colocando o dispositivo perto do rosto e aproximando-se igualmente de David.

– Consegues ter controlo sobre as portas do edifício? – O irlandês questionou de imediato – A Kim não tem acesso a uma parte restrita na Zona D, a zona sem câmaras.

David olhou o rapaz com a interrogação patente no olhar quando Brian percorreu o software no instante seguinte, sem certezas concretas. David deve tê-lo notado, pois depressa comentou:

– É bom que tenha, porque nenhum de nós tem uma cópia da Kim connosco e temos que sair daqui entretanto.

Brian não dedicou atenção alguma à provocação inofensiva e Jake interrompeu o momento breve com a própria respiração, profunda, esforçada e interrompida por alguma tosse, forçando-o a aclarar a garganta demasiadas vezes até David notar.

– Estás bem, Jake? Vocês estão bem?

A resposta veio novamente com a tosse irritativa que Jake parecia querer conter, sem sucesso.

– Sim – garantiu. – Houve um imprevisto na Incubadora, mas está tudo bem.

David não podia adivinhar que o imprevisto passara por ter Kim a ser agredida violentamente pela pessoa que a destruíra e a reduzira a nada até Jake, e por isso a sua mente apenas se concentrou no irmão mais velho e no desassossego constante de tê-lo a correr risco de vida.

– Tem cuidado. Não tens de... – começou o mais novo, tentando expressar a sua apreensão pela milésima vez nas últimas horas, mas rapidamente foi interrompido pela voz rouca e fria.

– Eu sei o que estou a fazer, David. Melhor do que ninguém, acredita. – Jake suspirou e o tom de exasperação foi demasiado evidente. – Eu só preciso que me abram a porcaria da porta.

David não discutiu, refreando e impedindo a sua língua afiada de tornar o momento numa discussão sem sentido, que nenhum deles precisava naquele instante.

– Jake, eu acho que consigo desligar o sistema completamente durante segundos, mas...

– Perfeito – interrompeu Jake, respirando fundo antes de continuar, ignorando as tentativas de Brian de falar de novo. – Vais abrir a porta apenas para podermos entrar. Depois quero que tranques esta zona inteira, Brian.

Brian assentiu rapidamente, apesar de o maxilar tenso demonstrar dúvida. David percebeu-lhe a expressão e rapidamente a associou ao que o irmão pedira e ao risco associado.

– Espera aí – interveio o mais novo. – Tu não vais realmente trancá-los num sítio sem câmaras. O nosso plano não envolvia uma sub-missão suicida pelo meio. A principal já me parece sê-lo o suficiente e estávamos a tentar contornar isso, lembram-se?

– Tranca o corredor, Brian. Ou a Kim vai fazê-lo – repetiu Jake, ignorando o irmão, e desta vez Brian resistiu por momentos a seguir a ordem. – Senão não vamos ter tempo suficiente para vocês conseguirem tirar-nos daqui.

– Jake – insistiu David, aproximando o microfone incorporado da boca para que o irmão o ouvisse realmente.

– Tens luz verde – confirmou Brian, ignorando o rapaz ao seu lado.

– Jake, mas...

– Até já. – Jake despediu-se e a ligação terminou.

– Jake! Idiota teimoso. – David apertou o aparelho com força, frustrado e impotente quando o silêncio invadiu o laboratório de novo. Brian ignorou-lhe os protestos, focado novamente na planta do edifício. – O que estás a fazer? Vais trancar-nos aqui também?

– Ele tem razão. É mais seguro isolar cada zona enquanto não nos descobrem.

– Ele não sabe o que está a dizer. O Jake vai fazer de tudo para conseguir o que a Kim quer e não vai pensar duas vezes na sua segurança para o fazer. Aqui não há nada seguro e é por isso que nos vamos focar no teu plano e despacharmo-nos a sair daqui como combinámos. Sem desvios, todos vivos, sem mártires. Não se armem em heróis. Nem sempre os heróis têm um final feliz.

– David.

A voz feminina diluiu a tensão entre os dois rapazes, iluminou o ambiente no mesmo instante e acalmou o tumulto em David. 

– David. – A voz sussurrante e tímida de Rachel tornou a soar pelo altifalante do aparelho que David ainda segurava em busca da resposta do irmão. Passada a surpresa, o irlandês apressou-se a responder à namorada num tom meigo, que destoava da tensão nas linhas do seu rosto. Brian decidiu dar privacidade ao casal e optou por explorar o laboratório. 

– Não sabia se era seguro falar, mas... – A rapariga fez uma pausa para respirar fundo e foi o que bastou para David aproximar mais o dispositivo do ouvido, atento aos sons que Rachel tentava abafar quando a voz falhou e a respiração se tornou rápida e inconstante. – A April fugiu – revelou, o tom de voz a mostrar o esforço necessário para falar. Brian, que adentrara num dos armários do laboratório saiu no mesmo instante, para encontrar a apreensão na expressão de David. – Eu... Nós... Ela é como a Kim, David. Ela é um erro. Talvez eu tenha confiado demasiado e falado... – A nova pausa para respirar levou a ansiedade de David a outro nível e então ele já não sabia como a controlar. – falado de mais.

– Rachel.

– Está tudo bem – apaziguou a loira de imediato e David decidiu que não queria ouvir aquela frase. – Ela não levou o carro. Eu não sei porque não o fez, mas... – David notou as pausas no discurso difícil da namorada e procurou o olhar de Brian, para se certificar de que não estava a alucinar e a afundar na sua proteção excessiva. Rachel não estava bem. – Ela tem tanto medo deste sítio que não tem maneira de vos denunciar e...

– O que é que ela te fez? – cortou o rapaz, controlando o pânico crescente na voz mas não nas ações. Os dedos que seguravam o dispositivo tornaram-se brancos nas extremidades, os maxilares tensos e cerrados.

– Está tudo bem, David. Amo-te e está tudo bem.

David fechou os olhos quando recordou as mesmas palavras, no mesmo tom de voz, quando ela soube que estava doente e não havia nada a fazer. Rachel era a primeira pessoa a certificar-se de que toda a gente estava bem à sua volta, ignorando os próprios problemas como se eles não fossem reais. David convivera com personalidade semelhante durante a vida inteira, com Jake, com ela. 

Todos pensavam que ele permanecia ignorante ao que acontecia ao seu redor, mas David era atento e percebia como tudo estava errado naquele momento, como em muitos outros onde fingira não notar. Ele percebera-o quando Rachel o apaziguara perto da morte e fingira acreditar que ela iria viver. Desta vez ela não estava por perto, ele apenas dispunha da audição como sentido básico para se aproximar dela, e então não iria facilitar.

– O que é que ela te fez, Rachel? – repetiu, ansioso pelo estado em que ela se encontrava, pelo facto de ela não conseguir referir-se a si mesma, na primeira pessoa, quando afirmava estar tudo bem. Nada estava bem. Nada estava bem com ela e ele começava a duvidar do seu próprio estado. O reboliço interior devia ter-se estampado no rosto lívido e Brian não hesitou em colocar a mão forte sobre o ombro dele, num gesto de conforto. – Eu vou ter contigo – anunciou, afastando-se da proximidade do canadiano e procurando a saída do laboratório.

– David.

– Larga-me – grunhiu o rapaz, quando sentiu o aperto do outro novamente sobre a sua camisola para o impelir a ficar. – A April nunca se iria embora sem se vingar e ela não me está a contar tudo. Larga-me agora!

Brian afrouxou o aperto no tecido e seguiu o irlandês até à porta trancada. Rachel permaneceu em silêncio, interrompendo-lhe as passadas vigorosas, por fim, quando um soluço escapou e finalmente demonstrou tudo o que ela não conseguia colocar em palavras até então. A respiração difícil misturou-se com os soluços durante algum tempo e David estacou, impotente e ansioso, o seu corpo totalmente alerta a qualquer som proveniente do dispositivo que apertava com força.

– Quero... quero que venhas ter comigo, David – admitiu a rapariga, com dificuldade, e David sentiu as garras do pânico dilacerarem, apertando, criando espaço dentro dele até ver negro. Rachel era a mulher mais corajosa que conhecia, mais do que ele mesmo. Ela nunca lhe suplicaria ajuda daquela forma sabendo o risco em que o colocava. Rachel admitia precisar dele e David não conseguia pensar em mais nada. – Quero muito que venhas ter comigo. Mas quero que o Jake e a Kim voltem, que o Brian volte e que tu sejas responsável por trazê-los contigo quando descobrirem o que estão a fazer aí ou quando já não for seguro. Nessa altura eu quero que voltes para mim.

– Rachel.

– Só nessa altura, por favor – insistiu ela, controlando-se quando notou a voz do namorado quebrar ao proferir o seu nome. – Amo-te. Eu estou...

O silêncio voltou ao laboratório com a interrupção abrupta da comunicação que David não notou de imediato.

– Rachel? – O rapaz continuou a clamar pelo nome dela, sem notar que o aparelho que mantinha nas mãos transpiradas se tinha desligado ou de como a sua voz grossa ressoava pela divisão silenciosa. – Merda, eu tenho de sair daqui agora.

– David.

– Ela não está bem! – gritou, forçando a porta do laboratório, aumentando a sua frustração e ira à medida que se debatia com a fechadura automática e não obtinha resposta. – Porque é que esta merda não funciona?!

Brian decidiu intervir quando notou a violência nos gestos do irlandês, que parecia ter esquecido que estavam trancados por divisões até ser tempo de saírem do edifício. 

– David.

– Abre esta porcaria agora, eu tenho de sair daqui – pediu, o corpo preparado para o desafio pela adrenalina que lhe corria nas veias. – Agora, Brian!

– Não posso – negou o outro de imediato, demonstrando uma calma que David não queria ver nem sentir quando Rachel suplicara pela sua ajuda. Sem pensar, aproximou-se de Brian o suficiente para a ameaça se fazer sentir através da sua postura, cravando o dedo indicador sobre o peito do mais velho. Brian era mais alto e o seu porte, mesmo que mais magro pelas semanas de cativeiro, mostrava de que lado estava a desvantagem se decidissem pela violência.

– Ouve uma coisa, françois armado em cientista. – David decidiu munir-se com palavras que lhe afastassem, ilusoriamente, a impotência. – Eu não te conheço, tu não me conheces, mas tu e a tua mania de líder podem foder-se, percebes? – Brian cerrou os maxilares proeminentes, sem no entanto recuar um passo. – O passado da Kim e todas aquelas cobaias Barbies-robot embaladas lá em baixo não valem a vida da Rachel, percebes? Da última vez que ela me disse que estava tudo bem foi para quase morrer com esta doença estúpida. Estive muito muito perto de a perder e por isso estou-me nas tintas para isto tudo e vou-me embora agora!

O tom colérico do irlandês ecoou pelo laboratório, dirigindo a sua raiva a quem não tinha culpa, entrando num estado de histeria crescente que os levaria à morte se Brian não reagisse primeiro. Antes que David pudesse continuar as suas ameaças inflamadas, Brian ergueu o punho e atirou-o contra o rosto do mais novo. A força do murro não foi suficiente para atirar o outro ao chão, David apenas cambaleou e cobriu o maxilar de imediato com a mão, a expressão irada a ser substituída pela surpresa e incompreensão.

– Cabrão – ofendeu, ainda atordoado com a reação de Brian.

– Cala-te e pensa! – ordenou Brian, mantendo toda a atenção do outro em si. – Estás-te nas tintas para o teu irmão? É isso? – David apenas fechou os lábios numa linha tensa e cruzou os braços. – Então acaba com a histeria e guarda o heroísmo para mais tarde, Hércules. Tu dizes que os heróis nem sempre têm um final feliz e estás mesmo empenhado em comprovar essa frase idiota, não estás? A tua Megera não é uma donzela assim tão indefesa, ela está bem e fora disto. Tu estás dentro, o Jake está dentro, todos estamos como combinámos, e adivinha? Alguém sabe que estamos aqui e estamos lixados se não parares de inchar o peito porque isto não é um ritual de acasalamento.

David notou que o coração já não martelava o seu peito como se quisesse sair, notou como era mais fácil respirar e pensar, no entanto ainda não percebia o que acabara de acontecer.

– Deste-me um murro – insistiu, recebendo um revirar de olhos do outro como resposta à constatação óbvia.

– E dou-te outro se não te recompuseres agora mesmo – Brian ameaçou falsamente. – Podes chorar e espernear tudo o que quiseres quando estiveres lá fora. És irlandês, dá definição à fama que vocês têm e ajuda-me a tirar-nos disto. A todos.

David engoliu em seco e voltou a cobrir o maxilar magoado pelo murro imprevisível enquanto recordava as palavras de Rachel. Ela estava bem. Ela afirmara que estava tudo bem e talvez estivesse tudo bem. Ele sabia que nada estava bem e não se atreveria a colocar na balança Jake e Rachel, lado a lado. Nunca o faria, por isso forçar-se-ia a acreditar que tudo estava bem.

Está tudo bem.

– Reza para que a Rachel não tenha um único fio de cabelo puxado quando voltarmos – acrescentou, mais calmo e pronto a colocar o plano em prática para que pudessem sair como combinaram.

– Reza para que as pessoas que desligaram o nosso sinal da sala de controlo sejam fãs da tua história de amor com a Rachel.

Só então David se apercebeu do que Brian lhe dissera antes de entrar em histeria. Eles foram descobertos e tudo o que ele conseguira pensar fora em Rachel.

– O quê?

– O sinal. Alguém desligou os nossos dispositivos ao computador central. Alguém sabe que estamos aqui.

Enquanto David voltava à realidade e tentava pensar com coerência, sentindo um peso claustrofóbico sobre si, Brian reagiu primeiro e avançou para a arrecadação que explorara antes da chamada de Rachel.

– Espera, Brian! O que é que estás a fazer?

Sem saber o que mais fazer, David seguiu o outro para a divisão.

– A improvisar.

– A improvisar? A saída é por ali – apontou para fora da divisão abandonada. – Eu digo que o nosso improviso é ir buscá-los antes que seja impossível sairmos daqui.

– A Kim provavelmente já não consegue controlar as portas, mas eles estão trancados numa zona sem câmaras. Provavelmente não foram descobertos ainda, mas...

Com esforço, David ignorou a situação de Rachel por mais algum tempo, atentando no facto de ter o irmão e o seu heroísmo inato a deambular no covil do vilão, que naquele momento estava representado pelo inútil sinal que os ligava à sala de controlo de todo o instituto, que os ligava agora à ignorância e incerteza.

– Está bem. – O rapaz deixou escapar, com um suspiro longo. Retirou a arma das suas calças e empunhou-a no mesmo instante, apontando-a a uma das portas dentro da arrecadação enquanto Brian atentava nas prateleiras dispostas por toda a divisão. – Estamos tão completamente fodidos. – Ele não sabia utilizar uma arma, não saberia como se defender se o pânico lhe comandasse as ações e não a adrenalina.

– Os túneis! – Os pensamentos do irlandês foram interrompidos pelo outro. A confusão estampada no rosto de David fez Brian esclarecer. – Sim, os túneis. – Brian voltou a ligar o dispositivo tátil e a projetar hologramas da planta do edifício antigo. David permaneceu na ignorância nos segundos que se seguiram. – Pensa comigo. Quando este edifício foi construído, quando construíram os túneis na montanha, eles tiveram de escavar a rocha durante quilómetros. A forma mais fácil de fazer isto é com explosões controladas. Eu não sei bem como o fizeram, mas estou a rezar para que tenham utilizado explosivos e utilizado o edifício principal.

– Espera, explosivos? – A confusão era evidente em David. Brian expressava o seu raciocínio da melhor forma, no entanto os conhecimentos entre os dois homens eram distintos e postos à prova naquele momento.

– Sim – confirmou o canadiano, revirando as prateleiras com as mãos ansiosas, jogando contra o tempo e com as explicações por dar a David. – Estamos exatamente na antiga cave da estação de filtração. Esta parte do edifício foi construída primeiro do que os túneis. É provável que alguma parte desta arrecadação pertença à estrutura antiga. Talvez eles tenham guardado materiais da obra. Esta porcaria não pode ser perfeita, tem que ter uma parte inacabada.

David finalmente percebia o que Brian tentava esclarecer, mas não o conseguia acompanhar. O raciocínio rápido do engenheiro deixou-o confuso e frustrado por não perceber o que o outro engendrava sem ele acompanhar.

– Certo, mas foca-te nos explosivos. Como assim explosivos? – insistiu na temática explosiva, já que nada fazia sentido na relação entre uma cave com material de obras e explosivos suficientemente fortes para destruir rocha maciça. Brian ignorou-lhe a questão e adentrou na divisão, avançando para onde a luminosidade do laboratório já não o acompanhava.

– O nosso plano B não vai funcionar, David. E se queremos sair daqui vivos vamos precisar de um plano C – disse Brian, por fim, no negrume entre prateleiras afiladas. David suspirou e seguiu a voz, adaptando-se à liderança do homem, ignorando testosterona e orgulho ferido. Ele só queria sair do subsolo, reunir o que restava da sua família e ir para casa.

– Tudo bem, mas vamos pensar em algo que não acabe connosco em bocados. Isto não é uma missão suicida e a Rachel precisa de ajuda agora!

– Eu acho que encontrei.

David apressou o passo em direção à voz, repreendendo-se por não ter voltado atrás para procurar algo luminoso. Brian valia-se dos hologramas que encandeavam os objetos nas prateleiras. Naquele momento o rapaz remexia em fármacos cujas embalagens pareciam todas iguais, todas com o mesmo rótulo que parecia estar em todas as paredes do edifício. Brian atentou numa embalagem e revirou o seu conteúdo rapidamente. David leu na base da prateleira a descrição do medicamento e não percebeu o raciocínio de novo.

– Comprimidos para problemas de coração é o teu plano C? – questionou, o sarcasmo a aguçar o tom de ataque que Brian ignorou. – Brian, concentra-te!

– Sabes o que é isto? – devolveu o canadiano, abanando a embalagem de cartão em frente a David, que apenas balbuciou algo relacionado com medicação para anginas. – O nosso plano C é o que existe aqui. Estes comprimidos têm nitroglicerina – informou, retirando a bula do remédio para que David pudesse ver alguns dos compostos. – Repara, este medicamento não é de um laboratório conhecido. Isto é o logótipo daqui, HCC é onde estamos. Nós estamos no laboratório de farmacologia e eles fabricam medicação aqui. – David ergueu o sobrolho o suficiente para mostrar ao outro que se surpreendia com a sua capacidade de retirar conclusões das coisas mínimas, que ele não conseguia ver. Apesar de tudo, David ainda não conseguia perceber a relação entre explosivos, material de obras e medicamentos para problemas de coração. – David, se eles realmente tiveram produção própria de fármacos então aqui está a nossa saída. – Brian tornou a abanar a embalagem de medicamentos.

– Ok – assentiu David, cruzando os braços. – Estou a ouvir.

– Ok, precisamos de nitroglicerina. E areia. E de um plano D para juntar as duas coisas sem morrer ninguém.

Antes que David pudesse dizer que decidira deixar de ouvir, Brian correu pelo armazém e obrigou-o a segui-lo ou ficaria apenas ele, a escuridão e os inúteis comprimidos de nitroglicerina. Uma das portas mais próximas tinha avisos de toxicidade e regras de manuseamento pelos trabalhadores. A porta mais envelhecida destoava da arquitetura do edifício e não havia controlo eletrónico. 

Sem pensar, Brian destravou a arma que mantinha presa nos jeans e atirou cegamente contra a fechadura metálica. Assim que entraram na divisão, as luzes brancas que tornavam os olhos sensíveis e irritados acenderam automaticamente. Depois, o alívio tomou conta do rosto de Brian por um segundo quando percebeu que o material utilizado no laboratório principal era ali armazenado. David continuou sem perceber e Brian finalmente esclareceu:

– A nitroglicerina é um líquido que por si só é explosivo. Não precisas de saber porquê, mas é um composto que é demasiado instável para ser mantido em estado líquido. Com o movimento corríamos o risco disto tudo ir pelos ares, por isso vamos voltar aos clássicos. Sabes como fazer dinamite? – David uniu os sobrolhos e deixou transparecer a sua desconfiança, finalmente. – A dinamite é nada mais nada menos do que nitroglicerina misturada com uma areia absorvente para que não expluda quando não é suposto. Pode ser qualquer outra porcaria que absorva, não interessa. Antes utilizava-se apenas nitroglicerina, mas havia muitos acidentes de percurso no transporte e manuseamento do líquido, então criaram a dinamite. O nosso plano C é vintage mas é seguro que resulta. Resulta demasiado, até.

– Então os medicamentos para as anginas... – David finalmente começou a ligar as peças do cérebro metódico do canadiano, faltando as mais importantes que o outro depressa o ajudou a reunir.

– Os medicamentos para as anginas são produzidos aqui, eles contêm nitroglicerina, por isso tem de haver o composto líquido por aqui. Só temos que saber como usá-lo – esclareceu, explorando o armazém secundário em busca do explosivo enquanto o tempo não parava, lá fora.

– Continuo sem perceber porque queres um explosivo se não for para nos matar a todos.

– Por causa dos túneis. – A afirmação saiu quase como um grunhido. Brian começava a demonstrar sinais de nervosismo enquanto David permanecia num estado de apatia que pensava não ser possível sentir depois da histeria lhe ter custado um hematoma no maxilar. – Pensa. Se o lago continua sem água e este túnel é usado como corredor para instalações e laboratórios então para onde foi drenada toda a água?

– O lago pode ter secado... – David iniciou a hipótese mais óbvia quando foi interrompido antes de a desenvolver.

– Ou grande parte pode ter sido drenada para aqui. O meu improviso passa pela utopia de existir água no túnel gémeo que está fechado... A parede do lado do túnel fechado está húmida, há marcas de água no cimento. Há água ali.

David sentiu uma moínha por baixo dos olhos, anunciando a dor de cabeça crescente pelo esforço emocional e de raciocínio que competia com o de Brian. Ele finalmente compreendia qual era a alternativa para saírem daquele local e nada lhe parecia certo ou seguro. Nada se assemelhava ao que fora combinado lá fora, quando todos estavam a salvo e se pensara ter coberto todas as eventualidades para a noite. Eles pensaram no que aconteceria quando fossem descobertos, mas nada os levara a crer que fariam explodir um túnel imponente a mais de cem metros abaixo do solo.

– Esse é o teu plano C? – David teve que questionar, incerto da viabilidade de toda a hipótese. – Tu queres criar dinamite com compostos de medicamentos para problemas de coração e areia de obras com mais de trinta anos? Ou também vamos apanhar terra de vasos de flores que curiosamente existem sem sol cá em baixo? – Quando Brian se precipitou para falar, ele continuou. – Dinamite em paredes com toneladas de betão em túneis sem fim até isto se encher de água? É isso?

Brian não confirmou de imediato, arrebatado com a lógica lunática do plano quando dito em voz alta.

– Provavelmente há milhões de litros de água do outro lado daquela parede de betão, David. Se a fizermos explodir controladamente, apenas num ponto, a pressão da água vai agir como tsunami pelo túnel e a HCC é destruída de vez.

Tsunami. – David testou a palavra, tentando não empregar descrença ou sarcasmo, mas falhando. – A mais de cem metros abaixo do solo? Connosco cá dentro? – O irlandês acabou por rir quando notou a imbecilidade que lhe corria pela boca. No entanto, Brian não lhe acompanhou o riso histérico e tudo na sua expressão anunciava um novo murro se ele não a terminasse naquele momento. Recompondo-se, ele engoliu em seco e testou: – Plano D?

Brian suspirou fundo e colocou a sua arma nas mãos do outro, destravando-a em conjunto, e mimetizando a ação seguinte enquanto a descrevia:

– Meteres isto na boca, premires o gatilho antes que eles te apanhem e rezares para que tenhas morte instantânea – disse, cru, mostrando a realidade para além de devaneios e hipóteses que provavelmente não resultariam mas que eram a única forma de tentar sobreviver.

***

NOTA DE AUTORA

Agradeço desde já a quem for ler já este capítulo, porque significa que continua aqui depois de vinte mil anos e isso é tudo <3 Para todos os outros eu só espero que voltem para ler o final e digam o que acharam em geral da história. Acho que é o mínimo depois de 140 000 palavras.  

Agora sobre este capítulo eu tenho i-m-e-n-s-a coisa a dizer, mas vou ficar-me pelo óbvio: PESQUISA. MUITA PESQUISA. Espero que tenham aprendido alguma coisinha entretanto, porque isto foi só um grande filler com imensos imensos pormenores importantes e hipóteses e coisas. Espero que tenham estado atentos e percebam a alhada em que aquela gente está metida. É claustrofóbico de escrever. 

Desculpem ter regressado com um capítulo tão... assim, mas este era imperativo. É super importante. 

Espero que gostem e que se lembrem do que ficou para trás e pronto. É isto ;)

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