UPRISING

By martafz

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Num futuro não muito distante, uma nova estirpe viral ameaça exterminar a espécie humana da Terra. O estado m... More

Uprising
0. Prólogo
1. América
2. É bom ter-vos de volta
3. HCC K42
4. Virgem outra vez
5. Achas que ela respira?
6. Kim
7. Sobrevivência
8. Quem és tu?
9. Voltar para casa
10. Lasanha vegetariana
11. Porque raio te injetas?
12. Dói-me a barriga
13. Porrada de um velho gordo
14. Gémea?
15. Não me podes proteger disto
16. Despe-te
17. Dói-me só a cabeça
18. Invictus
19. Impotência
20. Eu não quero que chores
21. Não queria que te doesse
22. Eu não sei mentir
23. Vamos embora
24. Não saltes!
25. Com a Kim seria esquisito
26. A melhor pessoa que eu conheço
27. Parece que viste um morto
28. Eu prefiro dormir no carro
29. Deixa-me ficar contigo
30. Eu estou a sangrar!
31. Pedi-lhe tanto para não me tocar
32. Ela estava a gostar!
33. Memórias
34. Faz-me esquecer, por favor
35. Temos que sair daqui!
36. Eu prometi, lembras-te?
37. O que é que eu fui fazer?
38. Aidan Nolan
39. Irmã
40. Canadá
41. Só por uma noite
42. Diz-me se vai doer
43. Quero-te
44. És tão giro
45. Afinal que merda és tu?
46. Vocês vão todos morrer
47. Tu... gostas dela?
48. Nós somos a tua família
49. Conspiração
50. Defectus
51. Não deixes de gostar de mim
52. Eu estou bem
53. Eu cumpro as promessas que faço
54. Não quero ser uma necessidade para ti
55. Plano B
56. Gráim thú
57. Vai correr tudo bem
58. Duvida quando te parecer óbvio
60. Por um bem maior
61. Nem sempre os heróis têm um final feliz
62. Homo invictus
A Up ganhou um Watty!
63. Humana
64. Eles já não aguentam mais
65. David Brody
66. Amanhã será mais fácil
67. Onde tu estiveres
68. Casa
Notas finais

59. Berra, deficiente

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By martafz

O elevador descia devagar, demorando tediosos minutos a alcançar as duas centenas de metros abaixo do solo. As paredes do bunker ainda eram revestidas por cimento e tubagens férreas, provavelmente pertencentes à planta inicial da fábrica, e escadas metálicas para manutenções e emergências acompanhavam toda a profundidade do fosso, alguns degraus já partidos e enferrujados.

Kim observava as placas de betão, apenas iluminadas por pequenas lâmpadas de presença, focando um ponto ao acaso no vazio, até o padrão na parede alterar-se e aguçar-lhe a curiosidade natural. A partir de certa altura, a rapariga notou marcos desenhados que indicavam uma nova zona — zona D — e debruçou-se sobre o vidro da cabine, embaciando-o com o hálito quente quando a boca se abriu em surpresa e admiração. 

As paredes húmidas e escuras, depois da marcação moderna de uma nova zona do complexo, tinham substituído as tubagens metálicas por diversos tubos transparentes que faziam circular fluidos durante vários metros. Acoplados aos tubos ela notou diversas placas vítreas que forravam o cimento com massas disformes que ela não soube identificar. Alguns dos pequenos aglomerados de tecido viscoso, alimentados pelos líquidos que provinham da teia de tubos, possuíam um pulsar constante, como um batimento cardíaco.

A morena absorveu cada pormenor até o elevador parar no seu destino. Jake apressou-se a sair do cubículo vítreo, enquanto carregava a arma e se mantinha alerta. Kim notou na expressão dele, nas gotículas de suor que lhe escorriam pela nuca e na veia dilatada na têmpora transpirada, que ele estava absolutamente concentrado e preparado para o que viesse. Ao contrário do rapaz, que envergava o projétil em punho e começava a explorar o piso subterrâneo, Kim decidiu guardar a arma que Brian lhe confiara sob o casaco e presa entre as leggings elásticas, decidindo que não saberia usá-la, mesmo que a linha de luz lhe indicasse o alvo a disparar. Ela saiu da cabine do ascensor e esperou que o seu corpo se revolvesse em tremores incontroláveis; esperou que o medo tomasse conta das suas pernas torpes e a impedisse de dar mais um passo e seguir Jake, quando se apercebesse que não havia como voltar atrás.

Ela nascera e morrera ali. Os seus maiores temores ganhavam vida ali e, no entanto, ela não sentiu nada do esperado. Kim não sentia o pulsar frenético do coração nos tímpanos, na respiração ansiosa, nem o suor pegajoso ou tremor nas mãos. Ela conseguia sentir uma ansiedade que era bem-vinda e que a forçava a querer saber tudo sobre si, sem o medo a retrair-lhe as ações.

Ela não seguiu Jake de imediato, apesar de consciente da sua presença por perto, e demorou-se na escuridão do fosso acima deles, seguindo a teia de tubos que descia pelas paredes, demorando-se nos grossos canais que se interligavam lá em cima, divergindo sobre centenas de bolsas que ela reconhecia pelas memórias, e se concentravam numa máquina que ela não sabia identificar mas que já vira antes.

Ela lembrava-se de acordar numa sala semelhante. Mais do que as memórias visuais do local, que lhe aceleravam finalmente o coração, ela revivia o momento pelo odor intenso a desinfetante que se entranhava nas narinas e lhe dava náuseas, pelos sons das grandes turbinas que renovavam o ar acima deles e que se misturavam nos sons individuais dos embriões em desenvolvimento dispostos no armazém embrionário imenso.

Jake parecia tão arrebatado quanto ela e Kim viu que ele se debatia com algo que não partilhava das memórias dolorosas. O rapaz sujeitou todo o peso do corpo forte contra a máquina central, curvando-se contra os ecrãs que rodeavam o equipamento.

Curiosa, Kim seguiu para perto dele, observando o que cativara a atenção do moreno e percebeu que os grandes ecrãs holográficos que a máquina projetava exibiam informação detalhada sobre os processos a decorrer na incubadora. Ela conseguia ver o tempo de gestação de cada indivíduo, com uma identificação numérica diferente da sua, conseguia ver os gráficos que oscilavam em tempo real com as quantidades de nutrientes, oxigénio e outras substâncias imprescindíveis à maturação daqueles seres e, por momentos, Kim agradeceu que o seu cérebro não tivesse parado antes de ela obter informações básicas sobre o desenvolvimento humano para perceber o que faziam naquele sítio.

— Nem todos têm uma identidade como tu — comentou Jake depois de aclarar a voz enrouquecida, provavelmente pelo forte cheiro a éter e tecidos vivos em desenvolvimento. O rapaz voltou a atentar nos ecrãs e apontou para os gráficos que mostravam o desenvolvimento de centenas de indivíduos apenas numerados, como ela já havia notado. Kim não se conteve e tocou no gráfico, mesmo quando Jake lhe puxou o casaco para demovê-la.

Depressa surgiu uma projeção gráfica, emitindo uma animação da evolução de um pequeno emaranhado de tecido pulsante, como Kim vira nas paredes no fosso, e todos os estágios de desenvolvimento até à formação de pessoas adultas, como ela e Jake.

Kim tornou a olhar para cima, para a escuridão sobre os canais que comunicavam entre placentas artificiais, agora sabendo que todas as massas celulares que notara viriam a ser seres como ela; que muitos morreriam como ela antes de terem direito a ver a luz do dia se não fossem absolutamente perfeitos.

— Eu não percebo porque são só mulheres — murmurou Jake, tocando nos ecrãs como ela fizera. Os seres menos desenvolvidos, entre aglomerados de células a fetos minúsculos e confundíveis com qualquer outro animal que não o humano, não tinham uma identificação como Kim. — Vês aqui? Elas só são marcadas como tu mais tarde, quando estão mais desenvolvidas.

Kim não tinha memórias da sua criação e resolveu que não queria recriar aquele período da pior forma, que não queria pensar na quantidade de vidas perdidas naquela sala antes de lhes ser dada uma identificação, cada ser descartado para a morte como um objeto.

Distraída nos pensamentos que a afligiam, ela afastou-se da máquina e caminhou pelas placentas gelatinosas e húmidas que ela recordava. De repente, o ruído persistente das turbinas e os líquidos que envolviam os fetos não eram o suficiente para abafar as batidas cardíacas que provinham das bolsas artificiais.

O ambiente da sala, carregado de uma humidade densa que lhe dificultava a respiração, refletia todos os cuidados assépticos e o controlo sobre todos os seres em desenvolvimento. Kim, não obstante, avançou sem reticências para uma das placentas e tocou na sua superfície molhada, sentindo a película viscosa e maleável ceder sob os seus dedos sujos de poeira.

Dentro do saco translúcido ela observou com apreensão e peso no coração uma rapariga deitada na posição fetal, cujos dedos se dobravam sobre o rosto e procuravam a boca entreaberta em movimentos lânguidos e espontâneos, como um bebé. Ela deteve-se nos cabelos longos e escuros, nas unhas compridas e frágeis que pareciam querer partir-se dos dedos enrugados ao mínimo movimento, nas pálpebras inchadas e cerradas, na pele tão fina que lhe permitia ver a teia de veias que lhe escureciam a tez pálida, mas que tornavam tudo errado porque ela era adulta e nunca seria um bebé.

Apesar da melancolia e injustiça inerentes ao pensamento, a morena não notou que sorria, enquanto se debruçava sobre a placenta e encostava a cabeça à superfície húmida e se concentrava no bater do coração da rapariga, tão apressado quanto o seu costumava ser. O som acalmava-a mais do que a fascinava.

Kim continuou a percorrer o longo corredor de embriões em diferentes estados de desenvolvimento, deslumbrada com as diferenças entre eles, serenada pelos diferentes batimentos cardíacos que soavam pelo armazém inteiro, como se este fosse um ventre real, e que ela não havia notado. Jake provavelmente ainda não tinha notado.

A morena continuou a sua descoberta, tocando e ouvindo cada placenta com quase reverência, a expressão a iluminar-se quando os fetos reagiam à sua presença através de pequenos movimentos instintivos. Ela chegou ao fim de mais uma das imensas fileiras de raparigas e surpreendeu-se com o acesso a outra zona do complexo.

Quase camuflada por entre tubos metálicos e caldeiras fumegantes havia uma porta blindada que lhe permitia notar a presença de luzes do outro lado. Curiosa, o seu primeiro impulso foi avançar para a porta até notar que Jake não a seguia. Rapidamente a rapariga olhou em seu redor, procurando por ombros fortes cobertos por tecido preto e cabelos revoltos aclarados pelo sol de verão. Jake continuava debruçado sobre a máquina centrada no armazém, e Kim teve que estreitar as pálpebras para perceber que ele comunicava pelo dispositivo que partilhava com David e Brian.

Então, inspirando todo o ar saturado de humidade e antisséticos, ela resolveu descobrir a próxima zona enquanto Jake se demorava a falar com os outros. Assim que abriu a porta, as memórias e o reconhecimento voltaram em força.

Ela lembrava-se com clareza daquela zona. Com pouco esforço, Kim conseguia recordar-se do local exato em que despertara e vira pela primeira vez. Provavelmente o mesmo leito gelatinoso onde acordara acabara por ser utilizado por uma nova rapariga tão vil quanto Alana ou tão errada quanto ela. Um defeito. Morta.

 A sala era menor do que o grande armazém embrionário e não havia nenhuma máquina central, nem grossos tubos enleados no teto alto, comunicando entre todos os corpos as diferentes substâncias de que dependiam para sobreviver durante a gestação artificial. Tal como ela se recordava, dezenas de raparigas semelhantes permaneciam deitadas em longas fileiras, os corpos apenas iluminados pelos grandes candeeiros acima deles. As placentas gelatinosas haviam sido abertas e os corpos nus permaneciam deitados, cobertos por uma camada fluida e viscosa que mantinha a pele húmida e hidratada.

Kim caminhou entre os leitos gelatinosos e os candeeiros, notando que todas as raparigas naquela sala eram absolutamente iguais e, no entanto, o que lhe chamou à atenção numa delas não se devia à homologia evidente entre elas.

Como ela se recordava, havia ecrãs individuais que mostravam informações diversas sobre os indivíduos. Como ela recordava, a máquina perto do seu próprio leito viscoso emitira um aviso silencioso num tom de alerta vermelho e depressa a vieram buscar até ela perder os sentidos de novo.

Ela tornou a ver o sinal luminoso perto de uma das raparigas e não conseguiu ignorar o apelo instintivo de se aproximar e tentar reverter tudo. O ecrã, ligado aos imensos tubos e elétrodos que rodeavam o corpo feminino, projetava a imagem do cérebro dela e toda a atividade neuronal em tempo real. Kim resfolegou, maravilhada com o tom brilhante das sinapses a ocorrer em diferentes zonas do órgão vital.

Ela ousou tocar no ecrã e depressa surgiu um holograma que projetou o cérebro em linhas simples, indicando as diferentes zonas e mostrando que as manchas brilhantes que a maravilhavam constituíam memórias. Kim franziu o cenho com o significado da pequena mancha no cérebro da rapariga, e tornou a carregar no visor tátil.

Em segundo plano havia a reprodução de um vídeo em loop, que repetia sequências de imagens aleatórias. Ela viu o espectro de cores e cada uma delas ser associada a vários objetos materiais aleatórios, e depressa percebeu que o que via se tratava do que implementavam na cabeça da jovem inconsciente. O mesmo que lhe fizeram a ela e que a determinara como um erro que não merecia viver.

O aviso vermelho que piscava, constante, indicava o mesmo destino que Kim recebera. Com a compaixão a comandar-lhe as ações, Kim ousou tocar na pele húmida, recordando o quão sedosa a sua lhe parecera e tudo o que acontecera depois.

A morena decidiu que podia salvá-la. Ela realmente podia, se de repente o corpo da rapariga não se tivesse revolvido em convulsões e espasmos erráticos, enquanto os olhos se reviravam rapidamente sob as pálpebras ainda semicerradas.

Kim debruçou-se sobre o ecrã e notou que a atividade cerebral se tornava intensa e dispersa, iluminando as zonas anteriormente sem atividade e, de repente, a morena já não achava o tom brilhante fascinante. Havia algo profundamente errado dentro da mente da rapariga inocente e ela sentiu-se inútil enquanto se dividia entre a projeção do cérebro e o corpo envolvido por espasmos.

— Hey. — Kim forçou os ombros da rapariga contra o leito gelatinoso para impedir-lhe os movimentos quase violentos. — Acorda. Acorda... — suplicou num sussurro, ousando tirar os elétrodos da cabeça dela e terminar de uma vez com a tortura que aquelas representações mentais forçadas implicavam. — Acorda!

De um momento para o outro tudo tornou a ficar sereno, o ambiente apenas a ser perturbado pelas turbinas do armazém ao lado, pela própria respiração ansiosa e a impotência que berrava na sua cabeça. As convulsões terminaram e o corpo voltou a ficar imóvel, assim como a representação do cérebro dela voltou a ser uma imensa mancha escura, sem qualquer tipo de atividade.

— Acorda? — A súplica saiu com incerteza, sem perceber que a rapariga havia morrido às suas mãos, sem saber o que a escuridão naquele ecrã representava para além da morte.

— Doutora, está tudo controlado aí?

Kim sentiu-se petrificar, as mãos trémulas ainda no rosto imóvel e húmido, de repente agradecida por não ter reagido à voz desconhecida com um salto violento. Apesar de não ter revelado o seu disfarce e ainda se manter de costas para o dono da voz, a sua mente começou a berrar instintivamente por Jake. Jake que estava do outro lado da porta. Jake que possuía a única voz masculina que ela queria ouvir naquele instante.

— É preciso chamar o Mike para levar essa para cima? Doutora? — continuou o homem, esperando por uma resposta breve. Kim ouviu os passos mais próximos e forçou a voz:

— P-para cima? — A morena não ousou tirar as mãos do rosto da rapariga, temendo que o temor que a percorria a denunciasse.

— Sim, ele faz o turno hoje. Há mais coisas para levar para cima só desta noite.  

Ela sentiu o sorriso na voz do homem e um calor gelado percorreu-lhe as costas e concentrou-se na nuca arrepiada, abafando-lhe os tímpanos e escurecendo-lhe a visão quando ela percebeu que se recordava daquele tom de voz. Ela não conseguia perceber de onde, de tantas as vozes que ouvira quando estivera naquele local e ainda não podia contar com o sentido da visão. No entanto, ela reconhecia-o e o pânico tornou-se real.

Ele não a tinha atacado, esforçava-se a sua mente para a acalmar, e ela tinha uma arma sobre o casaco. Que não sabia usar mesmo que o seu corpo torpe a deixasse mover-se, acrescentou a outra parte.  

— Mas se quiser posso levá-la eu — insistiu o homem, tocando no ecrã ao seu lado e parando o sinal luminoso vermelho.

— S-sim — assentiu ela, rodando as ancas para continuar de costas para ele, a voz trémula a denunciá-la apesar do esforço. — Mais tarde.

O homem não respondeu e Kim deixou de respirar durante o que lhe pareceu uma eternidade, olhando apenas para o corpo definitivamente morto sob as suas mãos. Ela não ouviu passos de novo e fechou os olhos para confiar nos outros sentidos, esperando que ele tivesse ido e não tivesse sido descoberta.

Quando ela pensou que conseguira, que o disfarce e as roupas que vestia a tinham deixado escapar, o desconhecido surgiu à sua frente para observá-la de perto. Kim reagiu de imediato e recuou com o sobressalto, soltando o cadáver que era a única coisa que separava o homem dela naquele momento. Ela fechou os olhos de imediato, sentindo o mundo desabar ao seu redor, querendo acordar numa nova realidade se se concentrasse o suficiente para elevar a mente para outra dimensão, uma em que a levasse para bem longe dali, para bem perto das pessoas que amava e a faziam sentir-se segura. Ela queria-o mais do que tudo, porque elas não sentiam medo e tudo no corpo de Kim revelava o quão aterrorizada estava. O seu disfarce caíra e a sua falsa segurança também.

A morena abriu os olhos novamente, focou o homem que a olhava com curiosidade e tudo se tornou negro. Negro como no dia em que acordara e fora forçada à inconsciência de novo; negro como quando aquelas mãos ásperas lhe socaram o estômago e lhe indicaram que se deitasse com falsa delicadeza; negro como quando aqueles olhos, igualmente negros e sugadores de tudo o que existia de bom nela, se deliciaram no seu corpo. Negro como quando ele a forçara contra a bancada de metal e lhe mostrara o que existia para lá do limiar da dor, de como a rasgara e a fizera temer a vida até Jake.

Kim paralisou entre o bolso da bata branca, cujo logotipo lhe causava náuseas e de onde ela retirara a caneta para se salvar e mutilá-lo sem pensar, até à prótese metálica que o homem possuía sobre um dos olhos. Ela ainda conseguia ver as cicatrizes avermelhadas que lhe infligira. Ela conseguia notar na expressão do homem o reconhecimento e então soube que o seu pesadelo mais temido ganhara vida e ela passaria por tudo pela segunda e última vez.

— Tu? — grunhiu o homem, incrédulo com a presença dela. Num movimento repentino, as mãos grandes cravaram-se no braço da rapariga e afastaram a manga do casaco para ver a identidade dela. — Tu — repetiu ele, a sua expressão a transformar-se com a confirmação. — Foste tu que me fizeste isto! — apontou, retirando o tapa-olho metálico e forçando-a a ver a orbe mutilada, cuja ferida aberta ainda não tinha cicatrizado totalmente.

Kim sentiu o estômago embrulhar-se, o ácido queimar-lhe o esófago e não conseguiu focar a visão no homem. Ela só conseguia pensar que ele não morrera. No local mais profundo e esperançoso da sua mente, ela realmente pensara tê-lo morto. O sangue que ela trouxera no corpo fizeram-na crer que ele havia morrido.

— Deficiente nojenta, devia ter-te morto naquele dia! — bramiu ele e só então Kim conseguiu reagir. As pernas dormentes moveram-se por instinto e começou a correr o mais rápido que conseguia, em direção à porta. AJake.

Um puxão repentino no cabelo preso fê-la sentir os olhos humedecerem-se de lágrimas que nunca havia vertido, pela dor dos cabelos arrancados pela raiz, pelo empurrão que a fez deslizar pelo chão coberto de fluidos que ela não queria identificar.

Ele tornou a puxar-lhe o emaranhado de cabelos negros e arrastou-a pelo pavimento sem atrito, erguendo-a até ao nível do seu rosto mutilado. Ela não esperava a bofetada que fizera o sangue concentrar-se no seu nariz agora dormente, a cabeça a enevoar-se por segundos até um novo puxão a forçar à realidade.

— Vais preferir ter morrido naquele dia, coisa — vociferou o de bata, cuspindo-lhe o rosto dorido a cada palavra, o hálito bafiento a agravar as náuseas. Porque eu vou arrancar-te a carne dos ossos à pancada — ameaçou, cravando a mão livre sobre o pescoço ainda marcado por Alana e dificultando-lhe a respiração enquanto a forçava a partilhar do mesmo ar que ele expelia. — Quando desmaiares de dor eu vou parar e começar tudo de novo quando estiveres consciente para sentires o que eu senti quando me fizeste isto. — Kim deixou de ouvir as ameaças e todos os seus instintos mais básicos faziam-na reagir para conseguir respirar sob o aperto da mão dele. — Talvez te foda antes de morreres. Mas pensando bem talvez me venha mais depressa quando estiveres fria e rígida e então vou começar quando estiveres quase lá. Tão apertada, submissa e silenciosa como todas as outras.

As ameaças continuaram e Kim começou a acreditar nelas, apesar de tentar não ouvi-las. Ela queria tentar chegar à arma que tinha sob o casaco e deixar de sentir a saliva que lhe salpicava o rosto, o cheiro a suor velho que ele exalava. No momento em que levou a mão à arma que não sabia usar, ele fê-la rodar e subjugou-a no chão molhado, torcendo-lhe o braço com o movimento e ela não evitou um grito angustiado.

— Foste a primeira que fodi viva e vê o que me custou!

Kim tateou as suas costas ao acaso, apertando-lhe a braguilha com força, retorcendo os dedos com o movimento desesperado para que ele saísse de cima de si. Ela ouviu o urro de dor do homem, sentiu-o encolher-se com o aperto e aproveitou para bater na zona sensível, às cegas, desesperada para livrar-se do peso sobre si.

— Filha da mãe! — grunhiu ele, torcendo-lhe de novo a mão e puxando-lhe os cabelos para erguer-lhe o rosto novamente até a curvatura das suas costas ser impossível de manter e a dor dobrá-la ao meio.

— Jake! — Kim tentou gritar, mesmo que o seu externo não se conseguisse expandir para fazer circular o ar pelos pulmões. Ele imobilizou-a sobre o chão e ela ripostou quando sentiu que o aperto sobre os cabelos desapareceu. Com o instinto a falar mais alto, Kim ergueu a cabeça com força e embateu no queixo dele, fazendo-o recuar durante algum tempo. Ela ignorou a dor que o movimento causara e esperneou sob o corpo pesado, conseguindo escapar e erguer-se.

Kim tornou a chamar por Jake e antes que pudesse dar um passo, as mãos asquerosas prenderam-lhe a perna e a queda fácil sobre o chão escorregadio terminou com a esperança de sair viva daquele local. O seu corpo dormente e dolorido caiu com um baque seco sobre o pavimento, espalhando alguns dos fluidos pelo ar com o impacto, e Kim depressa sentiu o latejar nos dentes, o sabor férreo do sangue irromper nos lábios rasgados e mais uma vez ignorou para se agarrar à única esperança, apesar de vã, que ainda possuía:

— Jake!

— Berra, deficiente. Jake! — imitou-a o homem, gritando tanto quanto ela para então arrastá-la pelos cabelos de novo e subjugá-la de novo. — Jake! — berrou, atirando-lhe a nuca contra o chão para que ela se calasse, com a força exata para ainda a manter consciente. — Tu estragaste-me a vida! — sussurrou, aproximando-se do rosto ensanguentando, para percorrer um dedo sujo sobre o maxilar escoriado, limpando-lhe o sangue que escorria do nariz e se misturava com o dos lábios. — O meu trabalho aqui é eliminar merda como tu, percebes? Ninguém pode meter em causa o meu trabalho porque tu estás morta, percebeste também? Percebes tudo o que eu digo, coisa? — ergueu o tom de voz enquanto lhe cravava os dedos nojentos no pescoço e os descia pelo tronco até a imobilizar por completo. — Percebes? Percebes? — continuou, sentando-se sobre o corpo franzino e insinuando-se sobre ela, dividido entre matá-la com as próprias mãos e fazê-la sofrer pelo que ela lhe fizera.

Antes que o homem pudesse colocar em prática os seus planos sádicos, um tiro rasgou a barreira do som e misturou-se com o gemido surpreso que ele emitiu. As mãos depressa largaram o corpo feminino e pressionaram o ombro baleado, a confusão e a dor a tomar conta do rosto dele.

Kim não conseguiu perceber o que a rodeava, apenas sentindo o peito subir e descer a um ritmo frenético quando o oxigénio não era suficiente, nunca o suficiente para a manter à deriva; quando o sangue que se acumulava na boca e escorria pelo seu rosto a enfraquecia mais e mais. Só quando o homem saiu de cima dela e se afastou agarrado ao ombro é que ela reagiu, recuando como podia para longe, até embater numa das placentas destruídas.

Ela sentiu o pânico atingi-la de uma forma que nunca havia sentido antes, que não fazia sentido porque ela conseguia ver a miragem de Jake surgir na fileira de raparigas inconscientes, envergando a arma em punho e recarregá-la antes de dispará-la novamente, sem hesitar.

O tiro certeiro foi direcionado à virilha do homem e ela fechou os olhos com força quando viu Jake aproximar-se o suficiente para sentir-se segura. Os berros excruciantes do outro apenas serviram para aumentar-lhe a pulsação e o pânico incontrolável, agora que estava segura. Ela não conseguia perceber. Jake continuava a empunhar a arma, as luzes nos candeeiros começaram a desfocar-se e ela não quis ver. Ela não queria lidar com o sangue, com a expressão transfigurada de Jake, o homem mutilado que a iria destruir de vez em questão de segundos.

Ela ouviu o homem suplicar, sentindo-lhe a voz perto dos ouvidos, sentindo-o arrastar-se pelo chão como a forçara a fazer, e imaginou o rasto de sangue que o acompanhava, o que serviu para que ela apenas cruzasse os braços sobre a cabeça e se encolhesse enquanto se esforçava apenas em respirar.

As súplicas continuaram enquanto o homem se conseguiu arrastar e Kim questionou-se porque Jake não terminava aquilo de uma vez. Porque ele seguia pacientemente o homem moribundo e não terminava com o sofrimento de todos. Quando ela ouviu o homem chorar por entre lamúrias de dor e desespero, Jake disparou de novo. Os sons gorgolejantes saíram da boca do homem, enquanto era óbvio o esforço para conseguir respirar entre a asfixia, e ouviu-se outro tiro.

Kim assustou-se quando sentiu partículas mornas embaterem no seu rosto já quase dormente pela dor e ousou abrir os olhos para perceber. A rapariga arrependeu-se de imediato quando notou o rasto de destruição aos seus pés. Literalmente aos seus pés, jazia o corpo desfigurado do homem que constituíra o seu pior pesadelo, pedaços dele sobre a sua própria pele e roupa.  

Kim sentiu de novo o pânico, a respiração errática, e procurou instintivamente por Jake, pela expressão que a faria sentir-se protegida de novo e que asseguraria que tudo iria ficar bem, mesmo que não fosse verdade.

E ela encontrou-o. Ela encontrou-o longe e absorto, apesar de estar mesmo ali, os olhos raiados de sangue pelo cansaço, enquanto revistava o que restava do corpo do homem. Jake não expressava emoção alguma e Kim sentiu-se afundar de novo, insegura e assustada como no primeiro dia.

Talvez a expressão dela fosse demasiado clara, afinal, porque Jake depressa virou a sua atenção para a rapariga encolhida que tentava encontrar a melhor forma de respirar e lidar com o que via.

— Kim — ele sussurrou tão baixo que ela quase não o ouviu, no entanto, foi como se tivesse gritado pois a morena retraiu-se de imediato com o toque masculino. — Respira, Kim. Tens que respirar fundo e devagar — incentivou o rapaz, pousando as mãos familiares sobre as costas e afagando-as com delicadeza enquanto se acocorava à sua frente e a impedia de continuar a olhar o cadáver desfigurado.

Kim inclinou-se imediatamente em direção a ele, à sua âncora, e concentrou-se no toque suave e no som que era o seu favorito do mundo. Ela esforçou-se para respirar fundo e devagar, apesar do bater frenético do coração a obrigar a inspirar, sôfrega por ar.

— Era ele — conseguiu dizer quando o sufoco a deixou.

— Eu sei.

— Era ele, Jake!

— Apenas respira — aquietou o irlandês, tentando despir-lhe o casaco sujo pelos braços trémulos e rígidos, que a mantinham numa posição defensiva, para então limpar-lhe o rosto com o tecido. — Respira — disse e repetiu-o pelas vezes necessárias até Kim conseguir acalmar-se. — Está tudo bem, foi só demasiada adrenalina. Os ataques de pânico parecem o fim, mas está tudo bem — informou no mesmo tom sereno, apesar de a sua expressão ainda não demonstrar emoção. Ele parecia tão ou mais cansado do que ela, e ainda assim insistia em acalmá-la da melhor forma que sabia, massajando-lhe o peito sobre o top limpo, que latejava e lhe apertava o coração acelerado em espasmos asfixiantes. — Agora estás bem, ok? Está tudo bem.

Kim assentiu e engoliu a saliva ensanguentada que acumulara na boca ferida para então conseguir recobrar a respiração e o controlo sobre si mesma.

— Tu mataste-o — balbuciou quando conseguiu e viu Jake cerrar os maxilares no mesmo instante. — Os teus olhos, Jake. Tu mataste-o.

Kim não queria dizer nada daquilo, ela nem pensara no que Jake fizera até então. Ela apenas queria sentir-se segura, mas o que a atingia naquele momento era a morte. A forma tão crua e sádica que lhe fora mostrada a morte, que ela nunca conhecera realmente. Ela nunca vira ninguém morrer, apesar de lidar com a morte de perto desde sempre. Nunca tivera que lidar com ela e não queria saber lidar com a visão que lhe tiraria o sono durante algum tempo naquele momento.

 — Tu... — Ela não conseguiu continuar quando sentiu a saliva acumular-se na boca e o estômago revolver-se uma vez mais, fazendo-a expelir o seu conteúdo ácido de uma vez. Ela sentiu o sabor da bílis na língua e o ardor na garganta, enquanto Jake lhe puxava os cabelos com suavidade e ela se controlava para não fugir do movimento. Recordar a mesma ação há apenas minutos atrás fê-la regurgitar de novo, e de novo, até o seu estômago vazio se contorcer sobre ele mesmo e não haver mais nada para expulsar.  

***

NOTA DE AUTORA

Bem, hoje não me vou alongar (digo sempre isto), por isso até falo por tópicos: 

1. Estou confusa sobre o que vocês sabem sobre a Kim e sobre o que vão perceber sobre este capítulo, por isso gostava que me dissessem se fez sentido e se perceberam até agora tudo o que eu disse sobre ela, se perceberam como ela foi criada e porque foi considerada um erro! Neste capítulo demonstrei um exemplo parecido que acabou em morte... mas digam as vossas dúvidas todas e eu tento responder até ao final. 

2. Eu sei que este capítulo é violento e muito gráfico, mas eu decidi não florear a morte nem florear as reações da Kim em relação à morte (sim, aquilo era um ataque de pânico, não era o medo habitual. Os ataques de pânico devem-se à produção excessiva de adrenalina e a adrenalina é produzida para preparar o corpo para atividades intensas. Não estamos preparados para muita adrenalina ao mesmo tempo e dá nisto. Parece que as pessoas sentem que vão morrer e é horrível por momentos, mas tudo passa). 

3. O Jake podia ter morto o homem de uma vez e não ter feito o que fez... Porquê? Mesmo que ele se quisesse vingar, é preciso muito sangue frio para matar uma pessoa, quanto mais daquela forma. Estou à espera que alguém refira porque o fez se ainda se lembrarem de pormenores iniciais.

4. Quero agradecer a todas as resistentes que ainda me lêem, apesar do tempo que eu demoro, e espero que todas as outras que entretanto desistiram voltam no final. Eu não me importo se só voltarem quando isto acabar! Mil obrigadas a quem ficou entretanto e ainda se dá ao trabalho de me dar a sua opinião s-e-m-p-r-e. Obrigada <3

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