Bia
Acordei em um dos piores dias da minha vida, sendo mimada pelos cuidados da Mayza, me servindo café na cama.
Ter que me arrumar para encontrar com o Joseph faz todas as possibilidades de humor esvair-se de meu ser, mas a presença da Mayza me acalenta a alma. O jeito que me olha, o cuidado constante, o carinho com que me trata é tudo muito além do que já pude imaginar ter com alguém. Apesar de todo meu desejo em ficar com ela, tenho receio de ao ficar, por tudo a perder, como sempre faço. Por isso, tenho preferido a paz e a amizade dela, anulando meu desejo e sentimento, do que a delícia do prazer de estar com ela apenas uma vez e perdê-la para sempre.
Após o café matinal, me preparei com a polícia, com escutas e pessoal disfarçado na pista de vôo e demais lugares que estarei com o Gordon e fui logo ao seu encontro.
O avião pousou dentro do horário previsto e ao vê-lo descer e acenar para a imprensa que o aguardara, meu estômago revirou-se. Ao me ver, abriu o sorriso amarelo e asqueroso. Antes mesmo de chegar próximo o bastante, seu odor fétido já era possível de sentir: charuto misturado a álcool.
- Prazer em vê-la, Bia - cumprimentou-me assim que ficou à minha frente.
Respondi apenas com um sorriso sem vontade e andamos apressados até o carro que nos aguardava. Assim que entramos no automóvel, sua boca de latrina, vomitou as palavras:
- Estava certo que ganharia esse prêmio Bia - falou, olhando para fora - Prometi que o principal jurado faria as honras de desposar a Mirela, que olha - olhou para mim e mordeu os lábios inferiores - Está um pitelzinho.
Ouvi em silêncio suas palavras como uma flechada a me acertar. Meu coração disparou e minha vontade era acabar com sua vida ali mesmo.
- Que é? Não vai falar nada? Gato comeu sua língua - tocou meu queixo - Ou alguma gata nova? - sorriu com desdém - Fale alguma coisa, querida.
- Não tenho nada a falar - tirei sua mão nojenta do meu rosto.
- Que isso! Está muito mal criada! - segurou em minha mão - A Mirelinha não é assim. Ela é educada e muito útil. Tenho certeza que o Sr Alvarés se sentirá muito bem recompensado por ela.
- Cala a boca, Joseph - gritei com ódio - Você é ridículo!
Meu coração disparado, fazia meu corpo inteiro tremer de raiva e ao mesmo tempo incapacidade de fazer alguma coisa para salvar minha irmã. Sabia que a Laura estaria tentando, mas ainda não tinha certeza se conseguiriam, portanto, não poderia transparecer a ele que estava por dentro dos planos para acabar com sua vida.
- Sou um ridículo? - perguntou sorrindo ironicamente - E você é uma ingrata! Te dei uma vida de luxo e cuido de sua irmã como filha. Tenho os melhores planos para ela e a você, uma carreira brilhante.
- Chega! Te ouvir me causa náuseas - gritei mais uma vez.
- Ok! - sorriu outra vez - Guardarei minhas palavras para discursar na premiação, e depois, terei muito tempo de conversa até Paris com seu novo cunhadinho - revirou os olhos.
Não faço ideia de onde tirei forças para não o enforcar com o cinto ali mesmo. Tudo nesse homem me enoja. Desde sua cara feia, com essa barba por fazer, nojenta e ruiva até seu mal gosto para vestir-se.
Chegamos ao local da premiação, e mais uma vez a imprensa nos aguardava. Ao descermos do carro, meu telefone tocou e ao olhar o visor, contemplei um número internacional. Minhas pernas bambearam com a possibilidade de ser notícias de Paris, ao mesmo tempo que tive medo de ser descoberta. Atendi então, fingindo ser oferta de cartão, mas ao ouvir a voz da Laura do outro lado da linha, me pedindo para ver os noticiários, senti o coração bater na garganta.
Saí da comitiva e acessei as páginas de notícias. Foi difícil conter a emoção ao contemplar a imagem da mansão em chamas. Ao mesmo tempo que me preocupei com a Mirela por estar no mesmo lugar, me senti aliviada por vislumbrar aquele lugar, sede de tanto sofrimento, despedaçar-se e saber que seria apenas o começo da ruína do Joseph. Voltei para a comitiva, sedenta de olhar com desdém para a cara do Joseph mas ainda receosa por não obter notícias da Mirela.
A cerimônia de premiação começou e ao ser chamado seu nome, foi aplaudido e ovacionado com entusiasmo por todos aqueles homens brancos, héteros, ricos e podres, iguais a ele. Subiu ao palco e começou seu discurso:
- Boa noite! Estou imensamente feliz e honrado em estar aqui hoje, apesar de já ter quase certeza que ganharia essa premiação de empresário do ano. Fico feliz em saber que sou eu o ganhador, e não uma certa concorrente, pouco digna dessa menção honrosa - revirou os olhos fazendo graça e todos riram e o aplaudiram - Inclusive, fiquei sabendo que ao invés de estar preocupada com a vida profissional, essa pessoa tem se dado o luxo de .. - meu telefone vibrou e no visor, outro número internacional, diferente do que a Laura me ligou.
Apressadamente saí da área da imprensa e fui para onde poderia atender a chamada que insistia em tocar.
- Pois não?! - atendi falando quase em sussurro.
- Bia? - ouvi a voz mais doce que meus ouvidos já puderam me dar o prazer em ouvir. A voz que me acalma desde que eu tinha 10 anos e aprendeu a falar meu nome antes de saber falar "mamãe". Meu corpo inteiro estremeceu-se com esse som dócil e meigo. Senti meus olhos marejarem-se e um sorriso se abriu em meus lábios antes que eu pudesse pensar em sorrir.
- Mirela? - sussurrei seu nome, segurando o nó na garganta que não me deixara falar.
- Bia, consegui sair da mansão! - ela falou com voz alegre e aliviada.
- Meu amor! Que feliz saber disso! - as lágrimas escorriam pelo meu rosto, enquanto uma das minhas mãos trêmulas segurava o telefone a outra, abafava o choro - Onde você está?
- Eu consegui que uma pessoa me emprestasse o telefone e te liguei porque é o único número que sei, de tanto ver o Joseph te ligar, memorizei - falou com voz faceira - Estou num posto de gasolina, na rodovia. Eu e as meninas estamos bem, mas a Alice - ficou em silêncio e meu coração apertou-se.
- O que aconteceu com ela?
- Acho que explodiu junto com a casa. Vimos a ambulância passar correndo e não sabemos dela. Ela só pediu pra gente correr sem parar e procurar pela namorada dela, Laura Veigas. Você sabe quem é?
- Sim meu amor! Me ouça. Procure abrigo nesse posto e fiquem aí Vou falar com a Laura e ela vai enviar o pessoal dela te buscar. Aguarde aí - falei tão apressada, que quase não conseguia respirar por isso.
- Tá bom! Vamos ficar aqui.
- Mirela?! - a chamei com emoção.
- Oi. Diga - me respondeu com doçura.
- Estou orgulhosa de você! - as lágrimas escorriam pelo queixo - Logo estaremos juntas.
- Não vejo a hora disso, Bia! Quero ver a mamãe.
Ouví-la me pedir para ver nossa mãe, terminou de me desmontar. Minha doce Mirela, é ainda uma menina, que foi privada de ter a infância com os pais. Apenas uma menina, indefesa e sozinha nos arredores de Paris. Tão longe de casa. Tão valente. Tão inteligente.
- Logo meu amor - respondi aos prantos - A mamãe vai ficar muito feliz em te ver. Aguarde aí.
- Te amo Bia! Um beijo.
- Eu te amo mais, pequena! Um beijo! Se cuida. Se proteja!
Desligou e eu permaneci com o som da sua voz ecoando em minha mente. Minha irmãzinha, meu pedacinho de mim, o motivo que eu aguentei até agora tantas atrocidades e desconfortos para que ela pudesse ter o mínimo de segurança e conforto, agora, livre das garras do monstro do Joseph.
Por alguns instantes me permiti vivenciar essa delícia de prazer por ter conseguido o que sempre desejei. Agradeci aos céus por ter visto em mim ainda, um pouco de dignidade e ter me ajudado nessa árdua missão. Sentia meu coração derramar-se em lágrimas de contentamento. Uma quentura confortável me invadia e minha vontade era correr e gritar ao mundo. Minha irmã renasceu das cinzas! Minha pequena! Que orgulho!! Ela conseguiu. Que sentimento maravilhoso de liberdade e esperança.
Liguei para o número que a Laura me ligou e depois de muito tocar, um homem atendeu e de repente, meu sorriso sumiu.
- Preciso falar com a Laura Veigas - falei com tom sério, limpando as lágrimas.
- Senhorita Bia? - o homem perguntou.
- Sim. Preciso falar com a Laura Veigas.
- Um momento, senhorita. Sou o Sr Tony. A senhorita Veigas está em visita da senhorita Alice que no momento está na uti.
- Meu Deus sr Tony - a alegria momentânea de saber da minha irmã, se dissipou no ar ao saber que a Alice está mal - Mas é grave?
- Ainda não sei, senhorita. A Laura já está tempo lá dentro e agora vários médicos e enfermeiros também entraram no ambiente. Mas me diga, o que precisa falar com ela?
- Minha irmã conseguiu sair da mansão e precisa ser resgatada, urgente!
- Mandarei o pessoal buscá-la. Onde está?
- Ela só me falou que está em um posto de combustível próximo da mansão. Não sei qual é nem a localização exata.
- Fica tranquila senhorita. Agora mesmo já enviarei nosso pessoal para resgatá-la. Qual nome dela?
- Mirela! Ela me falou que estão em várias meninas. Eu estou com o Joseph agora, não vou poder falar muito, mas se possível me mantenha informada.
- Sim, senhorita! Farei o possível. Te aviso assim que nós a encontrá-la.
- Obrigada. Quando a Laura puder falar, pede para me ligar, por favor.
- Farei isso! Disponha.
Voltei meus olhos para o salão e Joseph ainda falava à multidão, que sorria de suas falas ácidas e cheias de podridão. Pela primeira vez o olhei com desdém e muita coragem.
O sentimento de estar vencendo, de tê-lo em minhas mãos, de saber todos os seus negócios corruptos, começou a fazer sentido. Me senti poderosa e sedenta de vingança. A medida que o som de sua voz, obrigatoriamente entrava por meus ouvidos, me lembrava desde quando cheguei em Paris e fui separada da Mirela. Quanto tempo aguardo por esse momento. Agora, senti meu coração disparado, não por emoção ou medo, e sim por raiva. Raiva do tempo de vida que ele me roubou. Dos meus sonhos destruídos. Da pessoa que ele me fez ser. Da ausência de família e amigos. Dos amores que nunca amei, dos desejos que nunca realizei. Esse homem, feio e fedido, asqueroso e arrogante, corrupto e cruel, agora, torna-se uma formiga em minhas mãos e tenho a chance de esmagá-lo impetuosamente.
Voltei ao meu lugar, sem desviar os olhos da sua imagem. Um dos seguranças à minha frente, distraído e carregado na gargalhada causada por uma das falas ridículas do Joseph, nem percebera que seu coldre estava aberto e, com a leveza de uma pluma, retirei de sua cintura sua pistola automática. Cega de desejo acabar com o Joseph, me muni de esperança em tirar sua vida ali mesmo, na frente de todos e fazer seu sangue escorrer pelo salão. Apertei a coronha da pistola e a ativei. Senti meu indicador encostar no gatilho. Minha garganta seca e minha boca amarga, me fazia lembrar de todo amargor causado por esse ser. Fechei os olhos e suspirei, certa de que o que faria seria o melhor. Quando elevei o cotovelo para direcionar a arma, senti uma mão tocar meu ombro. Olhei para o lado e um dos policiais à paisana meneou a cabeça para mim, em negativo.
- Não estrague tudo! Você não merece perder a chance de ser feliz, por ele - ele falou baixinho.
Caí em mim da atrocidade que estava prestes e decidida a fazer. Atiraria contra o Joseph, e perderia a chance de ter minha irmã em meus braços.
- Olhe ao redor - sussurrou em meu ouvido - Somos todos do seu time. Ele será preso assim que sair da cerimônia.
Respirei profundo e apenas consenti com a cabeça. Travei a pistola e a guardei na cintura, por baixo da blusa. O coração ainda disparado e desejosa de acabar com ele. Recorri à felicidade em ouvir a Mirela e foquei a atenção nesse momento. O discurso acabou, as pessoas o aplaudiram em pé. Ele começou a descer para se sentar e atendeu ao celular. Percebi correr o olho pelo salão até que me encontrou ao fundo o encarando, de braços cruzados. Não se sentou. Veio direto em minha direção sem desviar o olhar. Senti nele a fúria de um homem em ruínas, sentindo seu castelo desmoronar-se, procurando um lugar para se segurar.
- Foi você que tentou dar show? - perguntou com os dentes cerrados.
- Não sei do que está falando - o respondi igualmente com os dentes cerrados - Quem acabou de dar um show de horrores foi você.
- A localização da mansão! Só você sabia. Foi você, não foi?
- Tire suas próprias conclusões - dei de ombros e sorri.
- Idiota! Cavou a cova da própria irmã. Te mando fotos dela com formigas saindo pela boca, depois, é claro, da noite mágica que ela dará ao Alvarés.
Passou por mim, empurrando meu ombro e se dirigiu para a saída. Meu sangue ferveu ao ouvir essas coisas. Não o deixaria sair ileso. Assim que ele cruzou a porta da saída, ouvi quando os carros de polícia ligaram as sirenes e o cercaram. Imediatamente corri para a saída e presenciei o policial de dentro do carro, com a arma apontada em sua direção deu voz de prisão:
- Senhor Joseph Gordon! O senhor está preso por enriquecimento ilegal, formação de quadrilha, corrupção, abuso e tráfico de menores, tráfico de mulheres, tráfico internacional de drogas, dentre outros crimes.
Todo o pessoal presente na cerimônia, no momento voltou atenção ao que acontecia na porta do evento. Joseph ao ouvir tais palavras, começou a gargalhar.
- Vocês estão loucos? Eu sou Joseph Gordon, o vencedor do prêmio "Grandes Empreendedores". Sou homem, branco, rico. Vocês não podem me prender. Que provas têem contra mim?
- Senhor, coloque as mãos atrás da cabeça e ajoelhe-se - continuou o policial, ainda com a arma direcionada a ele.
- Ajoelhar? - ele gargalhava - Você será banido da polícia, senhor. Está cometendo um erro.
- Repito - continuava o policial - Ajoelhe-se e coloque as mãos atrás da cabeça.
- Você terá que fazer mais do que isso para me prender - gargalhou outra vez.
Percebi o segurança vindo em sua direção e seu carro estacionando lateral à polícia. Não poderia permitir que ele conseguisse fugir. Imediatamente peguei a pistola embaixo da blusa, a destravei e num lapso de revolta pensei: Foda-se! Meu coração disparou e eu gritei:
- Joseph!
Ele se virou e eu atirei. Atirei em suas partes íntimas. Sem medo. Sem pudor. Sem pensar nas consequências. Ele caiu de joelhos, gritando e segurando seu sexo ensanguentado.
- Você é louca, Bia? - gritava, urrando de dor.
- Aproveite o show! Esse é só o começo do seu fim - levantei as mãos para o alto e me rendi à polícia.
A multidão saia em polvorosa. Muitos corriam, outros passavam olhando assustados. A cerimônia foi suspensa. A polícia o rendeu e os paramédicos prontamente o atenderam. Um policial me algemou e falou:
- Você está presa em flagrante por tentativa de homicídio e tem direito a um advogado.