Capítulo 2

203 14 1
                                    


Kauã

Finalmente o inferno havia sido encerrado. Eu e minha irmã esperamos muito tempo pela chance de ter uma vida nova, em um novo abrigo. Claro, eu não enxergava a possibilidade de um dia ser adotado. Talvez Kauane conseguisse por ser bem mais nova que eu, tendo apenas 3 anos. Mas por minha causa ela nunca conseguiria encontrar um lar, apenas pelo fato da minha idade avançada — 9 anos —, e porque tinha o poder de fazer com que os adultos se sentissem intimidados. Tinha sido diagnosticado com hiperlexia e super-habilidade, quando eu já estava dentro do orfanato. Pois é, eu era uma criança estranha, que não sabia fazer amizades. As pessoas me julgavam pelo fato de eu ser um superdotado, diziam que eu me achava melhor que os demais. Às vezes era confundido com uma criança com síndrome do espectro autista. Então, quem iria querer um filho estranho como eu?

Para piorar a situação, meus fortes traços indígenas me deixavam destacado dos demais. Os outros meninos me chamavam de todo tipo de apelidos, dia e noite, o que fazia com que eu me afastasse ainda mais. Passava a maior parte do meu tempo com um livro em mãos, ou cuidando de minha irmãzinha.

Naquela época pouco importava para mim se tínhamos pais ou não, pois meu plano era quando eu enfim saísse do abrigo, e alcançasse a maioridade, iria para a faculdade e levaria Kauane comigo. Não importava o que diziam, lar é onde seu coração está com pessoas que você ama e que te amam também!

Um certo momento nos mudamos de abrigo, para um lugar completamente diferente do que eu havia conhecido. Logo de cara pude notar que era o oposto do anterior. Estivemos em muitos abrigos diferentes, então eu achava que esse seria só mais um de muitos que viriam pela frente. Contudo a diretora, tia Ana, parecia ser uma pessoa legal, então resolvi dar uma chance.

— Crianças. Quero que conheçam uma pessoa muito especial.

"Ah, essa não..."

Pensei assim que ela falou. Mais um curioso viria conhecer os "órfãos coitados".

— Esse é o tio Raul, ele é quem nos dá um suporte muito grande e nos ajuda sempre em nossos projetos. A partir da próxima semana ele irá dar aulas extras de matemática e para os mais velhos, irá ensinar sobre administração e empreendedorismo. Quero que vocês tenham uma boa formação porque todos são capazes de alcançar os seus sonhos!

A diretora falava com uma animação empolgante, tentando nos contagiar. Alguns abriam um sorriso de satisfação com a novidade, e eu? Fiquei no mínimo curioso para saber quem seria esse "super-herói" sobre quem a moça falava com tanta empolgação.

— Pode entrar tio, dê um "oi" para as crianças. — A senhora abanou as mãos para que ele saísse de dentro de sua saleta.

Então um homem alto e forte, que mais parecia o Thor daquele filme que eu assisti uma vez — que era raro acontecer —, muito bem vestido e com cara de rico, surgiu nos olhando curioso, analisando os nossos rostos, recebendo de volta olhares aflitos e carentes. Mas quando chegou a mim, repousou por um tempo maior, pois eu o encarava de forma diferente, não estava implorando sua atenção nem ao menos por seu carinho e compaixão. Eu apenas o desafiava.

Raul

Quando entrei naquela sala vendo no rosto de cada criança uma tristeza distinta, como se eles clamassem em silêncio. Bem como se por toda sua vida, estivessem esperando por alguém que nunca chegaria. Entretanto apesar do modo em que eles viviam e de todas as probabilidades, havia ainda uma esperança de que um dia suas histórias iriam mudar. Porém não foi o que vi num certo garoto.

No momento em que eu passeava os meus olhos por aquele grupo que tinha em média 15 crianças, percebi um olhar diferente sobre mim vindo de certo rapazinho. Rapazinho este de pele parda e olhos puxados, traços indígenas, mas com os cabelos negros escorridos que não podiam disfarçar suas origens. Estava sentado destacado dos demais numa mesa um pouco mais afastada, ao lado de uma menininha com os mesmos traços, com uma franjinha cobrindo sua testa. Ela brincava com uma velha bonequinha de pano, com fiapos soltos e uns dois furos por onde se desprendia um chumaço de espuma.

Meu coração se apertou de uma forma que desconhecia. Uma compaixão misturada à pena, especificamente por aqueles dois que aparentavam ser irmãos. O menino me encarou com coragem, olhar indômito e sua feição marrenta parecia desconfiar da veracidade de minhas ações. Um convite implícito para um desafio de provar-lhe minhas boas intenções.

Enquanto Dona Ana contava as boas novas para os demais, eu e o indiozinho duelávamos em silêncio somente com o olhar. Tentando descobrir à distância, o que havia dentro de cada um.

Tive uma intuição de que aquela criança tinha muita história para contar, e quem sabe mais experiência de vida do que eu, em mais de 3 décadas. Posso não ser mulher, que tem o tal do sexto sentido aguçado, mas sou quase um Sherlock, meu poder dedutivo estava em dia!

— Será que eu poderia conversar pessoalmente com algumas crianças? — Perguntei para a diretora quando já estávamos numa repartição mais isolada das crianças, logo após termos encerrado a apresentação das novas atividades que iríamos realizar em conjunto.

— Pode sim, mas não é recomendado criar laços com eles. Seja moderado. — Disse a mulher sentada na cadeira giratória atrás de sua mesa de escritório. — Até mesmo nós, não podemos nos apegar a eles. Apenas cumprimos nosso trabalho e fazemos somente o que nos é apto. — Colocou suas mãos sobre a mesa entrelaçando os dedos.

Num primeiro instante não tive retórica. Eu sabia que era uma situação muito delicada. Balancei-me de um lado para o outro na cadeira onde eu estava, fitando o chão pensativo. Voltei meus olhos para ela me esforçando para não mostrar meu abalo, e aceitei.

Eu teria outras oportunidades para chegar até aquele menino, e descobrir o que uma criança de sua idade já escondia tanto para se colocar na defensiva da forma que fez.

Ao sair da sala da diretora Ana, "dei de cara" com uma mulher loira vestindo uma blusinha social, e com um rabo de cavalo no topo da cabeça, seus olhos que mesclavam entre os tons de mel e dourado escorriam até sua nuca.

— Bom dia. — Me aproximei mais e a cumprimentei. Um interesse súbito de saber de quem se tratava aflorou dentro de mim. Mal eu sabia que não era mais uma mulher que eu conquistaria facilmente.

— Bom dia. — Acenou com a cabeça sem me dar muita atenção e continuou rumando pelo corredor até entrar em uma das salas.

O que havia naquele lugar para que as pessoas se tornassem tão misteriosas? Definitivamente eu estava instigado a saber mais.

------------------------------------

Eaí, me conta: O que está achando dessa história? ♥

Pai por Adoção (Amostra)Dove le storie prendono vita. Scoprilo ora