Entardecer

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Os campos escoceses são lindos na primavera. O contraste entre a paisagem verde, a nova floração colorida e o aroma das flores trazido pelo vento resultam em dias propícios para passeios e aventuras.

Contemplar as paisagens e criar histórias no imaginário são o resultado de uma mistura que fazem os dias ainda mais especiais para Catherine. Junto de Rosalie, cavalga pela imensidão de terras verdes e céu azul, apreciando o ar fresco entrando pelos pulmões. Porém, sempre que quer ficar só, a menina busca em Annis o refúgio para os sentimentos que ainda não consegue colocar em palavras.

Nem sempre a vida vinha sendo fácil, já havia travado grandes batalhas e as principais disputas vinham dos conflitos com o psicológico, que ainda é o responsável por promover os maiores questionamentos sobre a vida — e era nisso que ela gostava de se apoiar: nas perguntas. Talvez não fosse possível obter todas respostas sempre que coloca a imaginar as situações, mas pode admitir que a somatória daquela imensidão de pensamentos é realmente incrível e que de certa forma acarinha o coração.

— Queria tanto que você soubesse falar, Annis. Queria que me dissesse como é a sua vida e se você gosta de morar comigo. — Para alegria da criança, a égua relincha e arranca um sorriso em meio aquela melancolia toda. — Ei, garota, isso foi um sim? Espero que tenha sido. Vamos, vamos mais rápido, o mais rápido que conseguir. Quero sentir que estamos voando.

E na verdade estavam. Com os braços abertos, enquanto se mantém de pé em cima da égua, a menina faz exatamente aquilo que Francis já havia pedido diversas vezes para que não fizesse.

Desde pequena, Rosalie tinha a habilidade e a destreza no trato com os cavalos. Annis foi um presente dado pelo avô, mas antes disso ela já se aventurava com os outros animais da propriedade. Ela sente desde pequena algo vindo de dentro dela, como se fosse um aviso constante para sempre estar ao lado dos animais, dando carinho e atenção a eles, encontrando amizade e companhia quando se sente triste e sem conseguir encontrar as palavras necessárias para explicações.

Assim que a mãe morreu, a menina passou uma boa parte dos dias montando nos cavalos. Vez que outra insistia em trocar de animal, porque acreditava que já estavam cansados o suficiente. Aos cinco anos e já bastante falante, a morte da mãe a levou até a beira do precipício. Era cedo para admitir e a família sabia, mas a criança não estava bem psicologicamente. Foi então que preferiu trocar a conversa com os humanos pela conversa com os animais. E foi assim que, em pouco menos de dois meses, ela adquiriu bom conhecimento sobre eles e desenvolveu afinidade com questões mais práticas.

— É tão bom sentir esse vento, não é? Eu acho. Papai iria brigar comigo se me visse aqui desse jeito, mas isso porque ele não sabe quem você é de verdade. Sei que você não me faria nenhum mal, não é mesmo? Você nunca me deixaria cair.

Como cúmplices, Rosalie e Annis desbravam os arredores da residência. Algumas vezes vão longe demais em escapulidas em que ninguém toma conhecimento. Por mais que Francis insistisse e todos recomendassem dos perigos advindos das distâncias desconhecidas pelos olhares atentos, ela insistia em dizer que nada de mal aconteceria, porque a melhor amiga está junto dela.

— Você já sentiu como é diferente o calor do pôr-do-sol sobre você, Annis? É tão especial. Quando estamos no fim de tarde nós sentimos algo diferente vindo dele. Não sei se me entende, acredito que sim, mas... — A égua relincha novamente.

— Ei, o que foi? — Annis retoma o andar descompassado, assustando Rosalie, que puxa as rédeas tentando tomar o controle para si, enquanto o animal insiste em galopes desacertados.

— Ei, ei, está tudo bem. Foi só um susto, viu? É um coelho, você não precisa ter medo. — Disse, enquanto faz carinho no pescoço da égua.

— Eu sei que algumas vezes pode parecer assustador um coelho aparecer bem na sua frente, mas eles não fazem mal para ninguém. — Enquanto a menina insiste em conversar com a água, Annis decide retomar a marcha em pequenos e orgulhosos galopes, resultando em uma criança pulando sobre o animal.

— Esqueci de contar uma história triste, você não ficou sabendo? Papai pediu que eu conversasse com ele, mas eu não sei o que dizer sobre o que aconteceu, porque, talvez, eu não tenha entendido o que aconteceu. Eu estava no estábulo procurando pela Catherine e o Ian me machucou. Se você tivesse lá para me salvar, eu fugiria com você, mas você não estava. Foi tão triste. Ele rasgou meu vestido e machucou meu pescoço. — Por um instante a égua parou e aguardou as instruções das rédeas da menina para que seguisse. — Me machucou, é verdade! Eu fico muito feliz que Catherine tenha chegado a tempo de me salvar, porque eu fiquei com muito medo. Eu não sei porque ele fez mal para mim. Eu nunca fiz nada ruim para ele. Como alguém pode ser mau assim? Eu não sei, mas fiquei triste e você tinha que saber o que aconteceu. Espero que entenda porquê eu sumi nos últimos dias, mas é que eu estava muito triste. Todos da nossa casa ficaram. Você devia ver como papai ficou.

Ao chegar no estábulo, Rosalie entra devagar e auxilia a égua até a baia correta. Aquela é a primeira vez que volta ao local após a violência. Como sempre faz, retira a encilha e o buçal, colocando ao lado sobre um banco, completa o recipiente com água e oferece pouco mais de ração.

— Desculpe, eu sei que falei demais hoje, mas é que você sempre me escuta. Obrigada por ser minha amiga, Annis. Eu amo você! Até amanhã!

Antes de sair, Rosalie conferiu os cascos da égua e faz carinho na mesma. Naquela tarde, Gavin havia pedido que ela não fosse até o estábulo, pois não queria que a menina tivesse as memórias retomadas, porém não comentou sobre o assunto com a menina, pois acreditou ser desnecessário. Da mesma forma que deixou a égua preparada do lado de fora do estábulo, ele esperava que a criança o avisasse assim que chegou, mas não foi isso que aconteceu.

Assim que Rosalie virou de costas e foi em direção à saída, a imagem de Ian se projetou exatamente na frente dela, resultando em estremecimento imediato e olhos cheios de lágrimas. A única alternativa viável e inconsciente foi fugir da memória, como se aquilo fosse realmente possível. Entrando rapidamente em casa, ela atravessou a cozinha com rapidez e foi na direção do escritório, enquanto limpa as lágrimas nas mangas do vestido.

— Fran, o que aconteceu? Por que você está chorando?

Recebendo um abraço apertado dela, Francis a levanta no colo e segura com força. Ele não sabe o que se passa, mas espera que a filha não tenha retomado as memórias dolorosas mais recentes.

— Papai, eu sei que eu não fiz nada. Como eu tiro o medo de dentro de mim? — Perguntou em meio aos olhos inundados.

E foi assim que ficou com a menina até que ela enfim adormecesse, apagada pela própria dor e o choro compulsivo. A verdade é que ele não sabe ao certo como será possível afastar dela o que ela vem sentindo com tanto sofrimento, mas acredita que o fato dela ter conversado brevemente sobre o assunto permitirá a abertura de novas portas. Ele espera encontrar o melhor médico logo, porque confia que alguém será capaz de ajudá-la a entender melhor a como dissipar tudo aquilo que vem causando dias e mais dias de aflição.

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LiberdadeWhere stories live. Discover now